terça-feira, 25 de outubro de 2016

Resumão 9º Congreso de Sociología - Dia 3


O Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte no 9º Congreso Chileno de Sociología contou com uma diversidade de trabalhos concentrados nas áreas de música, artes visuais e literatura de países como Chile, Argentina, Brasil e México. A coordenação do GT ficou a cargo de Marisol Facuse (Prfª. Drª Universidad de Chile), Laura Lattanzi (Prfª. Drª Universidad de Chile), Tomás Peters (Profº Drº Universidad de Chile y Carolina Ibarra (Universidad Arcis).

Dia 3

No último dia do Congresso, as últimas mesas discutiram temas relacionados ao uso da cultura pela máquina política estatal, gestão cultural e políticas públicas e a relação entre identidade e produção cultural. Foram apresentados vários trabalhos interessantes, estando apenas um destoando do nível das discussões. Esse trabalho em particular apresentava dados estatísticos que demonstrava uma concentração de equipamentos culturais nos bairros de Providência e Santiago Centro, em Santiago, sem entrar em uma discussão mais aprofundada sobre qual relação era possível estabelecer entre produção cultural e presença de museus, salas de concerto, de teatro, etc. Os dados estatísticos, como vários pesquisadores sabem, não falam por si e nem sempre podem ser inferidos destes diagnósticos completos e/ou taxativos sobre determinada realidade. Além do mais, é preciso investigar e ter claro de que fontes estes dados provêm, para não incorrer em erros de análise básicos. Por exemplo, durante a apresentação, o autor desse trabalho afirma que há apenas dois estúdios de gravação de música no setor de Providência e que esta realidade poderia afetar a produção musical. O dado a que se refere este autor provavelmente é um dado oficial (ele era representante do Conselho Nacional de Cultura do Chile) que não condiz com a realidade de infinidades de estúdios particulares que existem pela cidade. A produção musical da cidade é profícua e ocorre, em grande parte, por fora de circuitos oficiais e documentados pelo Estado, para dar apenas um pequeno exemplo. O trabalho não apresentou relações mais complexas entre instituições e produção de cultura e em que medida a presença ou falta delas interfere nesse processo.

Passando aos trabalhos interessantes, me chamou atenção na primeira mesa a apresentação da antropóloga Carla Pinochet (Chile), especialmente pelo debate que gerou depois. O trabalho, intitulado Ciudad, Festival Y Democracia. Sobre El Papel De La Cultura En El Chile Contemporáneo, discutia a relação entre a instauração do processo democrático no Chile e a realizações de festivais populares. Estes eventos, de caráter massivo, dialogavam com uma espécie de reivindicação popular da celebração e da ocupação do espaço público após anos de ditadura, repressão e negação do público. Porém, afirma a autora, é preciso atentar para a dimensão instrumentalizante que esses eventos alcançaram a partir do momento que foram capitalizados por forças políticas do momento para gerar benefícios eleitorais. Ao mesmo tempo que havia a afirmação de uma dimensão democrática e cidadã na realização destes eventos (alguns dos festivais passaram a realizar serviços cidadãos como de retirada de documentos), por outro lado eram realizados por produtoras particulares e os artistas participantes, ao menos no período Lagos, eram escolhidos, em sua maioria, por sua simpatia com o movimento chamado “Nova Concertação”. Desse modo, Pinochet centra o interesse da sua pesquisa nessa relação paradoxal entre a reivindicação do coletivo, do democrático e do popular versus a organização vertical desses eventos e a instrumentalização dos mesmos por forças políticas que se estabeleciam no poder na época. Estes eventos de caráter massivo, segundo a autora, não geraram uma política cultural permanente (não haviam investimentos em estruturas culturais para além da realização destes festivais). A presença de produtoras privadas, diz ainda Pinochet, marca uma característica do estado neoliberal chileno em que o poder privado passa a adquirir o protagonismo na realização de políticas estatais (processo aprofundado ainda mais no governo de Piñera) e, nesse caso, será a iniciativa privada que protagonizará a realização destes eventos, como acontece até os dias atuais. Essa relação com produtoras privadas faz com que o foco passe a estar no número de público e não em um processo de formação destes. Segundo Pinochet, o conteúdo das ações culturais deste festival pode ser considerado “circense”, ou seja, espetacular e não geram uma participação. Para a autora, não existe um processo de formação de audiências e esses eventos não produzem nenhum impacto em níveis de violência dos locais onde ocorrem nem são permanentes no tempo. A autora situa esse tipo atuação política, apoiada na realização de grandes eventos, como Tecnologia da Felicidade no interior das políticas democráticas. O debate que esse trabalho gerou foi bastante interessante pois se centrou em algumas questões relativas ao público e às noções de “alta” e “baixa” cultura. Foi questionado a definição um pouco taxativa da autora sobre o conteúdo de algumas ações ser “circense” e isso significar uma relação com uma noção de baixa qualidade. Também se questionou uma ideia de passividade do público que poderia subentender de sua explicação. A autora considerou alguns dos comentários como importantes, mas justificou seu foco na relação entre políticas de estado populistas e a relação disso com a esfera privada e mercantil na produção de grandes eventos populares. Obviamente, é preciso tomar cuidado com certas definições de cultura do espetáculo e alienação para não reproduzir preconceitos culturais em relação à cultura popular e de massa. Na minha opinião, a autora realiza uma pesquisa bastante interessante e a atenção aos conteúdos culturais enfatizados é extremamente necessária e a análise dos mesmos, estando embasada em parâmetros mais analíticos e relacionados ao objetivo da pesquisa, será fundamental.

A segunda mesa se centrou na discussão sobre identidade, mestiçagem, afirmação cultural e processos de exotização na experiência e produção cultural. O primeiro trabalho apresentado, da autora Constanza Lobos (Chile), tratou das relações de integração cultural (mestiçagem) a partir da análise de práticas culturais de músicos imigrantes no Chile. A autora apresenta, a partir de três estudos de caso, diferentes estratégias adotadas pelos músicos imigrantes em sua trajetória no Chile. A partir da análise da trajetória destes grupos, como se formaram, de onde vieram, onde tocam, que repertório executam e como, em seus discursos, definem e representam suas práticas, a autora define três processos distintos: 1) assimilação cultural; 2) Transculturação; 3) Reafirmação da Identidade Cultural. No primeiro caso, o grupo abandona sua música tradicional para incorporar demandas do mercado chileno no seu repertório; no segundo, se trata de um grupo que adaptou elementos da música tradicional de sua cultura, misturando-os a outros elementos; no terceiro caso, o músico em questão faz uma constante afirmação de sua identidade, tocando apenas um repertório próprio que se relaciona com a música tradicional do seu país. A conclusão a que chega a autora é a de que há um processo ainda incipiente de mestiçagem, existindo uma forte afirmação identitária dos imigrantes e pouca noção de uma identidade transnacional. Segundo a autora, falta uma maior integração destas comunidades à cultura chilena e vice-versa, onde haja um real intercâmbio e enriquecimento cultural a partir destas influências diversas.

Na segunda apresentação da mesa, da autora Marisol Facuse (Chile), as noções de tradição e autenticidade que aparecem mencionadas na primeira apresentação, são melhor problematizadas. Apresentando o trabalho Identidades Nacionales, Autenticidad Y Exotización En Las Músicas Migrantes Latinoamericanas, Facuse centra o interesse de pesquisa nas transformações identitárias através de relações coletivas que impactam na prática musical. Facuse centra sua análise nos migrantes latino-americanos no Chile, evidenciando como relações de poder estão também incluídas na relação entre identidades culturais que compartilham o fundo comum da colonialidade. Nesse processo, segundo a autora, persistem a disputa pela autenticidade e processos de criação do exotismo que acabam por gerar valores e juízos no processo de transmissão das práticas culturais. Em sua investigação, Facuse identificou que processos relacionados a noções de autenticidade e originalidade podem gerar dificuldades e/ou resistências na transmissão de práticas ou na realização destas em outros ambientes urbanos e culturais. Porém, acredita que práticas como a musical possuem uma potência de gerar novas sociabilidades fundadas na integração e no reconhecimento mútuo, para contrapor-se à realidade atual de distanciamento, etnofilia (fascinação pelo outro), curiosidade e exotização, de um lado, e resistência de transmissão cultural através de uma afirmação de autenticidade, de outro. Em sua análise identifica que a realização dos carnavais, por exemplo, incorporou elementos festivos (musicais e dançantes) nos protestos de rua chilenos. Ou seja, a realização destas festas insere novos modos de ocupação do espaço urbano e diferentes práticas musicais associadas. Em resumo, para Facuse, apesar de ainda permeado por resistências , preconceitos e desigualdades, o processo de transculturação acontece e é possível observá-lo em práticas musicais, alimentares e de vestimenta que se modificam e são incorporadas. O interessante desta análise é propor uma observação da transculturação em seus detalhes, não tomando os processos de resistência nem os de aculturação como totais e/ou homogêneos. Nos exemplos relatados, a complexidade da noção de representação cultural (conceito de Lefevbre) tornava visível uma experiência migratória de representar o que já não está. A reencenação de festividades, a reprodução de práticas musicais, dançantes, alimentares, são essa constante reivindicação de uma originalidade que se perdeu no processo de migração, mas que se pretende recordar, representar. E no processo de contato entre estas distintas tentativas de manter o eu, do lado de quem imigra e do lado de quem recebe o imigrante, as porosidades são por onde as mudanças ocorrem.



sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Resumão 9º Congreso Chileno de Sociología - Dia 2


O Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte no 9º Congreso Chileno de Sociología contou com uma diversidade de trabalhos concentrados nas áreas de música, artes visuais e literatura de países como Chile, Argentina, Brasil e México. A coordenação do GT ficou a cargo de Marisol Facuse (Prfª. Drª Universidad de Chile), Laura Lattanzi (Prfª. Drª Universidad de Chile), Tomás Peters (Profº Drº Universidad de Chile y Carolina Ibarra (Universidad Arcis).

Dia 2

O segundo dia começou com uma primeira mesa em que a relação entre teoria estética e sociologia ficaram mais evidenciadas. Além do meu próprio trabalho, apresentaram-se também Tomás Peters com o trabalho Lo Crítico-Cultural en el Arte Actual: Diálogos E Influencias Entre Pierre Bourdieu, Hans Haacke Y Andrea Fraser; e Gino Bailey com a conferência El Arte Prospettico como un habitus de una sociedad basada en las relaciones espaciales.

O trabalho de Peters se baseou no livro Free Exchanges, no qual um diálogo entre Pierre Bourdieu e Hans Haacke revela a dimensão sociológica de parte da prática artística do período, evidenciada especialmente pelo que ficou conhecido posteriormente (na década de 1980) como Crítica Institucional. Peters apresenta essa relação, mostrando trabalhos artísticos de Andrea Fraser, artista que marcou, na década de 1980, a construção do cânone da Crítica Institucional e propõe ao final a análise de um trabalho a partir destas questões. O trabalho escolhido por ele foi o do artista chileno Felipe Rivas, uma vídeo-instalação onde o artista se masturbava em frente a uma fotografia de Salvador Allende que se tornou polêmica e acabou censurada da exposição In-Visible para a qual havia sido selecionada. O trabalhou gerou uma série de ruídos ao interior da política institucional chilena ao ironizar a figura de Allende, produzindo uma reação institucional em cadeia.

Essa discussão ecoou na minha própria apresentação, visto que trato especialmente de analisar os trabalhos artísticos em sua relação com o campo da arte. A conferência que apresentei se chamou Agenciamentos Artísticos: uma proposta de análise sociológica dos trabalhos artísticos e se tratou dos resultados da pesquisa realizada para a minha tese recém defendida. Defendo aqui uma proposta de análise sociológica dos trabalhos artísticos em que estes sejam tomados como agentes, entes ativos em seu processo de significação e reprodução no campo, não apenas objetos de análise. Para criar esse conceito e esse método de análise dos trabalhos, me baseei na ideia de campo da arte, de Bourdieu, de práticas artísticas agonistas de Chantal Mouffe, de obra inorgânica de Peter Bürger, além da noção de artista cúmplice e agente duplo de Hal Foster. A noção de que os trabalhos artísticos realizam lutas discursivas no interior do campo também se relaciona com a prática da Crítica Institucional que inseriu, no interior do campo da arte, práticas artísticas que se constituem a partir da instituição onde se inserem (e de sua crítica).

A mesa seguinte foi dedicada a discussões relacionadas ao campo da literatura e contou com trabalhos bem interessantes. Foram abordadas questões como processos de canonização e o sistema literário, estética literária em meios digitais, mudança social a partir da análise de novelas chilenas do período pós-ditadura e a noção de “ensemblage” e diversidade nas práticas literárias chilenas atuais. Mas o destaque que dou aqui foi em relação ao debate gerado posteriormente a apresentação dos trabalhos. A discussão se centrou em temas como o questionamento de noções de sujeito e a relação com a ideia de autor. Também se discutiu a ideia de relação sujeito-objeto como exteriores, propondo uma noção de que ambos se constituem em relação e, desse modo, a obra e o espectador estão em um processo intrínseco de construção um do outro.

Me chamaram a atenção nessa mesa particularmente os trabalhos de José Rivera, Posdictadura, Neoliberalismo Y Epocalidad. Representaciones Del Cambio Social En La Novela Chilena Reciente. Los Casos De Bolaño, Leonart, Zambra, Contreras Y Labbé e o de Carolina Gainza, Literaturas Y Estéticas Digitales: Análisis De Literatura Digital En Chile. No primeiro, me chamou a atenção como o autor realiza a análise da mudança epistemológica ocorrida no interior da cultura e da sociedade chilena no século XX, desde a ditadura, o processo de instauração do neoliberalismo e o período posterior a isso. Me interessou a análise que o autor realizou, observando a construção dos personagens nas obras de novelistas canônicos, como Bolaños e Contreras, e em como estes expressavam em seus dramas uma mudança de estrutura de pensamento e epistemológica. O exemplo de análise que ele utilizou se tratava de um personagem criado por Bolaños que era neto de um francês imigrado para o chile a finais do século XIX. O avô era um médico que havia vindo ao Chile para realizar voluntariado, no seio de uma estrutura colonial francesa em que este era o iluminado que trazia a luz à escuridão, ou seja, trazia a cura e o conhecimento para um lugar desprovido do mesmo. A conexão do neto com o avô é que este também é médico e, assim como este, também imigra para realizar trabalho voluntário. Só que este imigra do Chile para a África, circulando entre distintos lugares periféricos. E ao contrário do avô, o neto já não crê que irá levar a luz, o conhecimento, a salvação. E essa falta de crença o leva a tornar-se viciado em morfina e, posteriormente, a traficar a droga. Esse exemplo exposto por Rivera apresenta um choque entre duas estruturas epistemológicas, de fins do século XIX e fins do século XX. O avô crê no progresso, acredita estar no topo do processo civilizacional, considera os “outros” a partir da sua cultura “superior”, civilizada. O neto não tem mais uma noção de missão e parece representar o que ficou conhecido como pós-modernidade, ou momento de descrença e contestação da modernidade (ou período do fim das utopias, fim das meta-narrativas e até, para alguns mais descrentes, fim da história).

O segundo trabalho interessante foi o de Carolina Gainza, que focou sobre a literatura digital e os processos de criação nesse meio através de um mapeamento de ações realizadas por poetas de Santiago, Chile. O interessante dessa pesquisa é como Gainza propõe uma observação dos processos de produção literária em meio digital enfatizando questões que o estruturalismo e o pós-estruturalismo já deixava evidente em suas críticas à noção de autor: a ideia de que o sentido deriva de uma única fonte sendo único e unidirecional. A noção de hipertextualidade, ou seja, a derivação de um texto em outros textos é fundamental para entender a existência de produções literárias no meio digital. E além disso, o meio digital insere também a noção de hipermídia: a ampliação do texto para imagens e sons. O interessante desse trabalho é o interesse de Gainza em observar como funciona o processo de criação no meio digital e em como estes geram textos e modos de se relacionar distintos. Ou seja, como a poesia em meio digital, além de ser vista como melhor ou pior que no meio tradicional (o livro), interessa a Gainza como motivadora de outras relações de leitura e de outros sujeitos criados nessa relação a exemplo do que ela define como poeta-hacker, por um lado, e leitor-operador: o leitor como ativador de códigos para realizar a poesia. Mas Gainza também enfatiza, e isso é importante, que essa capacidade ativa do leitor não é ampla, sendo limitada pela própria proposta poética em questão. É importante lembrar nesse ponto que a arte conceitual, o minimalismo e outras neovanguardas já no final dos anos 1960 colocaram a questão do espectador ativo em evidência, com o objetivo de questionar a epistemologia do espectador passivo, ou mero observador. A noção de espectador emancipado colocava em evidência uma relação entre espectador e obra vertical e hierárquica e propõe uma ideia de espectador como participante da construção do sentido e da ação do trabalho artístico. Mas também é importante observar também como essa noção de espectador ativo também pôde ser apropriada pelo museu-espetáculo ou a noção de exposição blockbuster, servindo a um ativamento acrítico e voltado a uma ideia de entretenimento, mais do que de ativação sensível. Além de tudo isso, Gainza enfatizou também a noção de hackeamento, cara à cultura digital, que se relaciona a uma inserção provocadora de quebras no interior do sistema. A noção de hackeamento é onde reside parte da potência política das ações poéticas em meio digital; outra parte reside na noção de compartilhamento e questionamento da propriedade intelectual que a cultura digital põe em evidência.

As mesas seguintes contaram com discussões que iam desde a análise da indústria do comic (Diego Rivera e o estudo sobre os comics de Marvel e DC Comics e sua relação com a política estadunidense), passando por trabalhos centrados na relação entre performance e espaço urbano. Neste último, as discussões variaram entre a análise do movimento estudantil chileno e suas estratégias de ativação do espaço público (Marcela Valdovino, Chile), a noção de performatividade nas manifestações sociais chilenas (José Parra, Chile), chegando na análise da estruturação de um campo de práticas performáticas na cidade de Córdoba, Argentina (María Cabezas, Argentina).

Este último trabalho me interessou particularmente pela relação que Cabezas estabelecia entre identificar os circuitos de performance que estavam constituindo-se em Córdoba a partir da observação das redes que estes grupos criavam, suas interações e as propostas performáticas que elaboravam. Apesar de achar que a autora passou muito tempo da sua análise em uma explicação da dificuldade de definição do conceito de performance, deixando de explorar melhor estes outros aspectos interessantes da sua proposta, acredito que haviam elementos importantes para uma proposta de análise sociológica da performance urbana em seu trabalho. Cabezas se centra na observação do festival Convergências, na edição realizada em 2014, para identificar os artistas que trabalham com a peformance na cidade e passaram a constituir uma rede de práticas que começa a “institucionalizar-se”, segunda a autora. Com institucionalizar a autora está entendendo que estas práticas começam a habitar espaços como o da universidade, mas ainda sem chegar aos museus. Sua análise se complexifica quando começa a preocupar-se em não apenas observar e identificar quem são esses grupos, mas em como interatuam e como a performance está imbricada com todos estes aspectos, e também com os aspectos urbanos que ativam em sua existência. Realiza, portanto, uma análise da performance considerando os elementos estéticos desta, observando questões de sintaxe performática em sua relação com o entorno onde ocorre. A autora conclui sua apresentação afirmando que ainda encontra dificuldades para definir a performance como prática artística e/ou ação de intervenção em um ambiente urbano e coletivo; também afirma ter dificuldades de acesso a informações e aos próprios participantes destas redes performáticas que ainda são fechadas e restritas aos seus membros. Inseriu o facebook no processo de construção da análise por ser o modo mais eficaz de acessar essa rede (que poderia funcionar como um elemento performático mais). A única coisa que senti falta nessa apresentação foi de entender como a autora usa a teoria de Latour (citada por ela como marco teórico) para analisar todos esses elementos. Apesar de explicar o uso da ideia de redes e de mediação de Latour, faltou, para mim, uma melhor relação entre as ideias de Latour com a análise da própria performance que tornaria esse trabalho ainda mais interessante. Ou seja, a performance como um complexo que inclui a ação direta na rua, as pessoas e objetos que participam dela, até o facebook como mobilizador desta. Acredito que a autora intui essa relação e chegará nela em algum momento.

A última mesa do dia apresentou trabalhos em que a relação entre artistas, instituições e mercado foram o centro. O primeiro versou sobre a relação entre artistas e mercado no Chile (Maria Vargas, Chile). Em seguida, foi discutida a relação da institucionalização da arte e o estabelecimento de capital social entre os artistas de Monterrey (Tânia Alonso, México). Por último, se apresentou a relação entre trabalho artístico e novas tecnologias na área da música independente na Argentina (Guillermo Guiña, Argentina). O enfoque nessa mesa estava em questões mais estruturais, com exceção do primeiro que, através da metodologia da produção de relatos de vida, tentou observar a relação dos artistas com o mercado de maneira mais micro (quase individual).

Sobre este, gostaria de comentar que acredito que o tema é bastante relevante e importante, mas penso que esse estudo realizado sobre os artistas e a relação com o mercado me pareceu estar ainda em processo. Havia um importante foco nos artistas, em seus relatos biográficos, suas percepções e estratégias de relação com o mercado. Mas senti falta de uma análise estrutural dessa relação. Em um dos casos estudados, apareceu a relação que a artista estabelecia com o mercado, suas estratégias de criar público e gerar interesse para seu trabalho, produzindo valor, através de ferramentas como o facebook. Mas senti que a apresentação dessas estratégias não vieram acompanhadas de uma análise mais acurada sobre as mesmas. O que significam essas estratégias pessoais no interior da estrutura do mercado de arte neoliberal chileno? Essa pergunta ficou sem resposta para mim. Mas penso que o avançar dessa pesquisa talvez aponte essas questões para as autoras que a apresentaram.

O trabalho da mexicana Tania Alonso versou sobre o processo de institucionalização da arte na cidade de Monterrey, México, e como isto gerou processos de produção de capital social entre os artistas locais. A autora faz um breve relato histórico-geográfico da cidade, evidenciando o caráter industrial e empresarial da mesma e relaciona esse dado com os processos de institucionalização da arte que começa a se formar aí em meados da década de 1990. Essas características, segundo Alonso, fazem com que Monterrey esteja mais identificada ao discurso da arte contemporânea e a uma noção de profissionalização, diferenciando-se das cidades mais ao sul do México em que a produção cultural se identifica a uma identidade cultural indígena. A autora não utiliza a noção de campo da arte de Bourdieu para se referir a esse processo de institucionalização, preferindo o conceito de institucionalização de George Dickie o qual, segundo ela, se baseia nos escritos de Artur Danto. Media essa noção de institucionalização com o conceito de capital social de Bourdieu em sua análise dos processos de profissionalização dos artistas e do mercado local.


O último trabalho apresentado nesse dia, do autor Guillermo Guiña, chamou a atenção para processos de precarização do trabalho na relação com novas tecnologias digitais na produção musical independente. Particularmente me interessou a relação que Guiña estabelece com a noção de espírito do capitalismo de Boltansky e Chiapello, no qual se evidencia como a emergência do discurso empresarial, relacionada à rearticulação do capital que tornou o neoliberalismo hegemônico na década de 1980, insere noções empresariais na cultura. Entre os termos mais comuns desse léxico empresarial na área da cultura, estão as noções de flexibilidade, liberdade, autonomia relacionados à ideia de indústria criativa. Processos que geram o artista produtor, empresário de si mesmo que compete em um cenário de desigualdade (enfatiza como as indústrias de streaming como Spotify são concentradoras de renda no cenário aparentemente democrático da rede digital). A inserção dessas noções de auto-gestão (até mesmo da noção de gestão) na cultura, no plano político, significa um giro na noção de incentivo em produção cultural para o apoio a projetos de economia cultural. O interessante da análise foi apresentar como grupos de artistas independentes passam por um processo de precarização do trabalho musical, em que as novas tecnologias não interferem positivamente no processo de pré-produção e de produção musical. Ou seja, o enfoque do autor era em processos laborais na produção artística e sua precarização e desvalorização sistemática versus noções românticas de autonomia e liberdade no seio de um processo de transformação do artista em empreendedor de si mesmo e concorrente em um mercado desigual e excludente. Se as novas tecnologias, por um lado, parecem facilitar a divulgação e a difusão do trabalho, não são significativamente positivas em processos de gravação e produção do material musical que ainda exigem investimentos em equipamento e em espaços físicos. O mercado de streaming concentra os lucros com as músicas vendidas e se beneficia da renovação da oferta musical realizadas pelos próprios artistas que se auto-gestionam. A análise do autor ainda evidencia relações de trabalho precárias em que os músicos são obrigados a tocar sem receber pagamento em várias situações, com o intuito de ganhar visibilidade. Num contexto de incentivo à auto-gestão, de pouco ou nenhum financiamento estatal na produção musical (cultural), de mercado competitivo e desigual, os músicos independentes são transformados em empreendedores, investidores e administradores dos seus próprios trabalhos, passando a competir individualmente com outras instâncias e agentes da indústria cultural mais organizados e melhor posicionados. E no meio de todo esse processo, a condição de precariedade se mantém obscurecida por uma estrutura de sentimento (Williams) em que a condição de marginalidade da arte é vista de maneira romantizada, segundo Guiña. Esse trabalho despertou meu interesse porque, a meu ver, lança perguntas que acredito ser fundamentais no debate da relação entre arte, mercado, políticas públicas e prática artística são: quais são os tabus que a arte enfrenta na relação com a noção de trabalho? Como considerar o trabalho artístico em um sistema produtivo? Seria a arte um trabalho como outros? E se sim, como proteger os artistas de determinadas dinâmicas precárias e desiguais dos mercados de arte? Creio que estas são questões importantes para refletir e pesquisar.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Resumão 9º Congreso Chileno de Sociología - DIA 1

O Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte no 9º Congreso Chileno de Sociología contou com uma diversidade de trabalhos concentrados nas áreas de música, artes visuais e literatura de países como Chile, Argentina, Brasil e México. A coordenação do GT ficou a cargo de Marisol Facuse (Prfª. Drª Universidad de Chile), Laura Lattanzi (Prfª. Drª Universidad de Chile), Tomás Peters (Profº Drº Universidad de Chile y Carolina Ibarra (Universidad Arcis).

Dia 1

A primeira mesa do GT concentrou trabalhos que investigavam a relação entre processos de modernização, relações de poder e a prática artística. A primeira mesa do dia (12.10) teve como título Genealogía De Una Convención Artística: "Los Gobernadores" Signados Por La Colaboración Y La Competencia, 1870-1875 e foi apresentada por Roberto Velázquez (Chile). Nesse trabalho o autor propunha analisar a série de retratos pintados no século XIX, conhecidos como Los Gobernadores, a partir de suas condições sociais e políticas de produção, com o objetivo de criar ou evidenciar uma nova narrativa sobre essas obras icônicas da historiografia e imagética chilena. Em sua apresentação, Velázquez relacionou a época de produção dessa série como sendo um período de ímpeto modernizador na sociedade chilena que gerou, entre outras coisas, o início da estruturação de um mercado de arte local. O autor também cita a Howard Becker e Paul DiMaggio como sustentação teórica desse interesse de observar o fundo político e social desse trabalho que, entre outras coisas, foi legitimador de uma convenção artística no período, especialmente por contar com a ação direta dos próprios governadores na difusão e criação de trabalhos como os da série.

O interesse do autor na construção e criação de uma convenção artística chilena, hegemônica em determinado período histórico, interessante por um lado, não contou com uma apresentação mais evidente sobre em quê consistia essa convenção. Em termos estéticos, não ficou claro qual era essa convenção e qual tipo de estrutura pictórica ou escultórica favorecia (e em detrimento de quais outras). Segundo o autor, não era sua preocupação de pesquisa analisar a obra visto que esta já havia sido bastante analisada anteriormente. Sua ideia era deslindar relações de poder que subjaziam às mesmas. De um certo ponto, o autor conseguiu identificar a participação efetiva dos próprios governadores na ação de difusão e produção desse tipo de trabalho artístico, ao realizar ações como criação de museus, a exemplo de Vicuña Mackena. Mas não fica claro quais outros atores essa rede mobilizou nem que trabalhos artísticos participaram desta. Entendendo que a proposta de Velázquez se dê no nível mais histórico que no sociológico propriamente, é compreensível que seu interesse se centre em processos de modernização e a relação de construção de narrativas desde posições de poder a partir da análise de uma série de trabalhos. Porém, ainda encontro complicadas as análises que se refiram a trabalhos artísticos que os deixem tão em segundo plano, as vezes sem quase mencioná-los. Se existe um trabalho artístico em questão em uma análise, ainda que este seja utilizado apenas como exemplo, é preciso observar, mesmo que minimamente, o que este tem a dizer sobre a questão de pesquisa que dele se depreende. Os trabalhos artísticos não são entidades mudas e inertes. Contém em si uma cadeia de relações que eles passam a incorporar e atuar sobre. Deixar de escutá-los significa perder uma grande dimensão de informação e pesquisa e empobrecer a análise. Do meu ponto de vista, é preciso estar bastante atento a essas questões.

Na sequência dessa exposição, Carlos Araya (Chile) apresentou o trabalho Literatura, Modernidad y Niñez. literatura para niños en el contexto de la modernización de chile entre fines del siglo XIX y comienzos del XX. Foi uma apresentação particularmente interessante pelo nexo realizado entre a noção de construção moderna da ideia de infância e a relação disso com a tradição oral no processo de produção de uma literatura infantil no Chile de fins do século XIX e início do século XX. Relacionando a produção de autoras canônicas como Gabriela Mistral e Marta Brunet no início do século XX com um processo de produção de uma literatura pedagógica que remete ao período de 1530, o autor vai tecendo uma narrativa em que a construção do fenômeno “infância chilena” vai sendo permeado tanto por processos colonizadores, de um lado, como de afirmação cultural local, por outro (cita, por exemplo, a criação de uma gramática Araucana como meio de recuperar a tradição oral desta cultura por Felix José Augusto no início do século XX). A tradição pedagógica das cartilhas coloniais se encontra, na obra de Gabriela Mistral, por exemplo, com a exaltação da cultura mapuche na realização da tarefa política de educar a infância em uma tradição folclórica original. Essa relação se torna mais evidente e estabelecida na obra de Mistral, segundo o autor, a partir da década de 1930. E a partir da análise de alguns trabalhos, Araya vai evidenciando disputas de poder e discursos políticos que estes contêm, em especial a intenção política de enfocar na infância. Ao chegar na década de 1950 em sua análise, o autor observa a entrada, nesse período, de obras para crianças vindas dos Estados Unidos e o impacto desse processo na quebra da construção de uma infância folclórica que se vinha estabelecendo até o momento. Evidentemente que o objetivo do autor não foi o de observar a atualidade desse processo, mas esta apresentação despertou em mim a curiosidade de observar a relação de imaginários sobre a infância e a literatura infantil no período atual. Considerando que, ao entrar em disputa no contexto cultural chileno, o imaginário estadounidense não faz desaparecer o anterior (folclórico), mas torna-se hegemônico e passa a lutar constantemente por negar o anterior para manter a sua hegemonia, a pergunta que esse trabalho deixa para pesquisadores que possam vir a se interessar por esse tema poderia ser: como estaria esse processo de construção da infância e sua relação com a produção literária atualmente, em um contexto de neoliberalismo ampliado no interior da cultura, da política e da econômica chilena?

Esta mesa contou ainda com o trabalho do pesquisador Gustavo Miranda (Chile) sobre a relação entre música e os partidos comunistas no período da década de 1970. O argumento central dessa apresentação foi o de observar como, a partir da musicalidade, é possível entender o cultural e o processo de construção de militância política. Apresentou essa relação a partir da análise de dois selos discográficos relacionados aos partidos comunistas do Chile e do Uruguai evidenciando como a relação musical extrapolou a partidária na criação de vínculos entre os dois países. Por uma dificuldade particular de não conseguir entender bem o autor em sua pronúncia, perdi um pouco da apresentação e de como se estabeleceu aí a música produzida por estes selos nessa relação política com o partido comunista.

A segunda mesa do dia focou em processos de produção cultural e espaço urbano apresentando distintas pesquisas que iam desde a análise da imagética urbana do graffitti e sua relação com um imaginário social mais amplo em Valparaíso, até uma pesquisa de cunho mais intervencionista sobre produtores culturais em bairros periféricos de Santiago. Começando pela segunda, se trata de um projeto realizado em conjunto com a Corporação de Cultura do bairro Independência, periferia de Santiago. A apresentadora, Dayenú Miza (Chile), é moradora do bairro e participa da corporação, a qual iniciou um processo de pesquisa para mapear os produtores culturais locais e dar suporte às suas ações. A autora apresentou um estudo de cunho exploratório realizado com a comunidade de produtores locais do bairro o qual deu a conhecer o perfil destes. Chamou a atenção o dado sobre estrangeiros na comunidade, um número bastante significativo do total de moradores. A pesquisa e a Corporação são parte de um movimento de articulação comunitária e de visibilização política e cultural que, ao parecer, são bastante importantes no contexto de poucas políticas públicas para a cultura em Santiago (e no Chile, de maneira geral). E também aparece como um instrumento de luta urbana em que os bairros periféricos passam a autogerir-se para lutar contra o abandono institucional que os lança na precariedade, tornando os moradores destes lugares agentes ativos num processo de construção de redes e de revalorização do seu espaço urbano. Não ficou claro para mim em que estágio esse projeto está, nem que resultados efetivos tem alcançado nessa construção coletiva de visibilidade e produção cultural, mas o objetivo de articulação é claro e me parece uma importante pauta política a ser discutida: empoderamento e articulação de comunidades para enfrentar a máquina de produção de precariedade e invisibilidade do neoliberalismo.

O trabalho sobre o Graffitti Mural em Valparaíso, apresentado por Marcela Suazo (Chile), contou com uma apresentação teórica bem estruturada. A autora deixa claro seus marco teóricos principais, baseados na ideia de capital cultural de Bourdieu, de construção social do espaço urbano de Lindon e de hegemonia cultural de Williams. O objetivo foi o de identificar quais eram os imaginários urbanos relacionados às disputas na prática do Graffitti em Valparaíso. Observando um conflito entre os graffiteiros e os agentes institucionais, a autora relacionou o que ela identificou como quatro imaginários sociais na base dos discursos destes distintos agentes e nas justificações de seus posicionamentos em relação à prática do graffitti. Estes imaginários foram assim listados por Suazo: 1) Cidade Patrimonial, 2) Cidade Artístico-Cultural, 3) Cidade Turística, 4) Cidade reconhecida pelo graffitti mural. A partir de cada um destes imaginários articulavam-se, por um lado, discursos contra a prática - a partir da justificação de que esta atentava contra a dimensão patrimonial da cidade (Valparaíso foi considerada patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO) -; e , por outro, discursos a favor - a partir da justificação de que Valparaíso é considerada uma cidade de vanguarda cultural e reconhecida por sua produção de graffitti mural. Além desses conflitos relacionados a estes imaginários culturais, a autora também identificou conflitos internos entre os agentes praticantes do graffitti mural e sua relação com a institucionalidade municipal. Enquanto alguns defendiam uma autonomia e independência da prática, mesmo ao custo da precariedade financeira, outros defendiam uma profissionalização da prática (e uma aproximação com editais de financiamento e da instância institucional). Em suas conclusões, a autora afirmou que encontrou uma relação entre a prática do graffiti mural e a projeção de uma imagem desejada de cidade. Porém, há uma relação de tensão entre distintos imaginários (e, obviamente, distintas imagens de cidade) em disputa nesse processo, gerando práticas divergentes. Também encontrou conflitos entre a ideia de autonomia e marginalidade com a qual a prática do graffitti tradicionalmente se relaciona com outra em que essa produção passa a ser considerada artística e passível de profissionalizar-se. E dentro destas disputas interessantes que a autora rapidamente apresenta, senti falta de ver como esses imaginários apareciam nos graffitis produzidos por estes grupos estudados. O trabalho se centrou na identificação de imaginários urbanos e nas disputas no interior do campo do graffitti (sua relação entre prática e instituição), mas não observou em que medida o próprio graffitti participa desses processos. Seria bastante mais interessante esse trabalho se a autora tivesse observado a relação do graffitti, as cores que usam, o tipo de traço, as figuras enfatizadas, os muros que são pintados e o diálogo com o entorno, com um tipo de imaginário urbano identificado. Mais uma vez, senti falta de ouvir o trabalho artístico falar e participar da análise.


O dia encerrou com a apresentação de Adolfo Albernoz (Chile) sobre as arpilleristas de Peñalolén. A prática da “arpilleria”, como é chamada aqui no Chile, ficou famosa quando a artista Violeta Parra a tornou mundialmente famosa. Basicamente, se trata de construir quadros e desenhos a partir da costura usando grandes pedaços de tecido. Em sua apresentação, Albernoz enfatiza a formação do grupo de arpilleristas de Peñalolén, durante a década de 1970, como uma importante rede de apoio e proteção às mulheres cujos maridos foram desaparecidos ou presos pela ditadura militar de Pinochet. Os ateliês serviam, por um lado, como forma de sobrevivência mínima para as mulheres, garantindo alguma renda para manter as famílias após o desaparecimento dos seus maridos e, por outro, funcionavam como meio de denúncia destes desaparecimentos. Em seu momento inicial, estas mulheres não se reconheciam artistas e as obras circulavam e eram vendidas no interior de uma rede de solidariedade social e política na qual o teor artístico ou qualidade estética destes trabalhos não eram considerados como determinantes para a aquisição dos mesmos. Porém, a força da mobilização conseguida por estas mulheres e seus trabalhos levou a que fossem reconhecidas como patrimônio cultural chileno. A partir de então, e com o fim da ditadura, essa produção passa a ser incorporada em um outro mercado, não mais esse da economia solidária, mas o da economia da valorização estética do trabalho artístico. No interior desse processo, afirma Albernoz, as arpilleristas passam a sofrer pressão para produzir a partir de determinados critérios estabelecidos por esse mercado, a exemplo da exigência por usar materiais considerados mais valiosos (melhores tecidos, por exemplo) e por aprimorar os traços e as figuras, além de uma exigência por ressaltar temas mais “leves”. Há um evidente processo de racismo e preconceito cultural embutido nessa relação, como deixa expresso Albernoz. Porém, e essa foi a parte mais interessante de sua fala para mim, o autor afirma que apesar de verticais e desiguais, esses processos de incorporação das arpilleristas (que ele identifica como ocorrendo desde antes, no período dos anos 1970 quando a igreja encomendava obras) não são totais nem determinantes para os trabalhos das arpilleristas. Há uma dimensão de escape em que estas, por não estarem completamente vinculadas a estes discursos institucionais da arte, realizam. Não estando a produção da obra vinculada a um processo de venda posterior, permite que as arpilleristas diferenciem distintas demandas, incluindo a delas próprias de produzir algo pelo simples desejo de fazê-lo. Apesar de não aprofundar mais em sua fala essa relação entre artesanato, cultura popular e mercado de arte, pelo curto tempo da apresentação, Albernoz deixou uma pista interessante de uma análise que pode ser feita a partir da relação entre estes mundos da arte.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Blog Reflejo no 9º Congreso Chileno de Sociología


Fui selecionada para participar do GT de Sociologia da Arte do 9º Congreso Chileno de Sociología, que se realizará na cidade de Talca (sul do Chile) entre os dias 11, 12, 13 e 14 de outubro. Desde o Blog Reflejo irei divulgar  um resumo e comentários sobre alguns dos trabalhos apresentados no congresso, com o intuito de ampliar a discussão realizada para o Brasil. 

O GT de sociologia da arte conta com a coordenação da professora Marisol Facuse (Universidad de Chile) e da professora Laura Lattanzi (Universidad de Chile). Quem quiser acompanhar, clica aqui no Reflejo. 

Abaixo segue a programação completa do GT:

MIÉRCOLES 12 DE OCTUBRE 2016
HORARIO
TÍTULO PONENCIA
AUTOR (ES)
9:20 a 10:40
GENEALOGÍA DE UNA CONVENCIÓN ARTÍSTICA: "LOS GOBERNADORES" SIGNADOS POR LA COLABORACIÓN Y LA COMPETENCIA, 1870-1875.
ROBERTO VELÁZQUEZ
LITERATURA, MODERNIDAD Y NIÑEZ. LITERATURA PARA NIÑOS EN EL CONTEXTO DE LA MODERNIZACIÓN DE CHILE ENTRE FINES DEL SIGLO XIX Y COMIENZOS DEL XX.
CARLOS ARAYA M.
CONSTRUYENDO PARTIDO DESDE LA MUSICALIDAD. LOS SELLOS MUSICALES COMUNISTAS EN CHILE Y URUGUAY: LOS CASOS DE “DICAP” Y “CANTARES DEL MUNDO”.
GUSTAVO MIRANDA M.
VIOLENCIA, CORRUPCIÓN Y PODER DISCIPLINARIO. A PROPÓSITO DE LA REPRESENTACIÓN DE LA MARGINALIDAD EN LAS CINTAS CANOA, EL APANDO Y LAS POQUIANCHIS DE FELIPE CAZALS.
JUAN SILVA E.
10:55 a 12:15
PRÁCTICAS DE PRODUCCIÓN ARTÍSTICA-CULTURAL EN LA COMUNA DE INDEPENDENCIA
DAYENÚ MEZA C.
GRAFFITI-MURAL EN VALPARAÍSO. IMAGINARIOS URBANOS EN TENSIÓN; DISPUTAS Y NEGOCIACIONES EN RELACIÓN A LA INTERVENCIÓN GRÁFICA Y CONFIGURACIÓN SOCIAL DEL ESPACIO URBANO.
MARCELA VALDOVINO S,
DE LO POLÍTICO A LO CULTURAL EN LA PRODUCCIÓN DE LAS ARPILLERISTAS DE PEÑALOLÉN.
ADOLFO ALBORNOZ























JUEVES 13 DE OCTUBRE 2016
Horario
Título ponencia
Autor (es)
9:00 a 10:20
LO CRÍTICO-CULTURAL EN EL ARTE ACTUAL: DIÁLOGOS E INFLUENCIAS ENTRE PIERRE BOURDIEU, HANS HAACKE Y ANDREA FRASER
TOMÁS PETERS
EL ARTE PROSPETTICO COMO UN HABITUS DE UNA SOCIEDAD BASADA EN LAS RELACIONES ESPACIALES.
GINO BAILEY B.
"AGENCIAMENTOS ARTÍSTICOS": UMA PROPOSTA DE ANÁLISE SOCIOLÓGICA DOS TRABALHOS ARTÍSTICOS
RAÍZA RIBEIRO C.
PERSPECTIVAS PARA UNA PRÁCTICA RELACIONAL. EL ARTE Y EL DISENSO
PAULA ARRIETA G.
10:30 a 11:50
ENSAMBLAJE Y ESTABILIZACIÓN DE LAS PRÁCTICAS CULTURALES EN LA LITERATURA CHILENA: CONFIGURACIÓN DE LA BIBLIODIVERSIDAD.
VALENTÍN OSSES C.
PROCESOS DE CANONIZACIÓN Y SISTEMA LITERARIO
HORACIO SIMUNOVIC D.
LITERATURAS Y ESTÉTICAS DIGITALES: ANÁLISIS DE LITERATURA DIGITAL EN CHILE
CAROLINA GAINZA C.
POSDICTADURA, NEOLIBERALISMO Y EPOCALIDAD. REPRESENTACIONES DEL CAMBIO SOCIAL EN LA NOVELA CHILENA RECIENTE. LOS CASOS DE BOLAÑO, LEONART, ZAMBRA, CONTRERAS Y LABBÉ.
JOSÉ RIVERA S.
12:00 a 13:20
TATUAJE: ENTRE EL MERCADO Y EL ARTE
BEATRIZ PATRIOTA P.
LA INDUSTRIA DEL CÓMIC Y SU EVOLUCIÓN HISTÓRICA: UNA LECTURA SOCIOLÓGICA DE SU CONTENIDO Y ARTICULACIÓN POLÍTICA
DIEGO RIVERA L.
ARTE POPULAR COMO OBJETO SEÑALADO
VALENTÍN MELLADO V.
POR QUE UMA MÚSICA É BOA? NOTAS SOBRE SOCIOLOGIA, PSICOLOGIA E ESTÉTICA MUSICAIS
LUCAS GIGANTE
14:20 a 15:40
LA MOVILIZACIÓN ESTUDIANTIL EN CHILE Y SUS ESTRATEGIAS DE ACTIVACIÓN DEL ESPACIO PÚBLICO
MARCELA VALDOVINOS S.
O PATO DE BORRACHA DO ARTISTA HOLANDÊS FLORENTIJN HOFMAN NA POLÍTICA BRASILEIRA
CLEBER FERNANDO G.
VULNERABILIDAD Y DESPOJO. AMBIVALENCIAS PARA UNA ESTÉTICA PERFORMATIVA DE LA MANIFESTACIÓN SOCIAL EN CHILE
JOSÉ PARRA Z.
LA PERFORMANCE EN CÓRDOBA, UNA PRÁCTICA EN AUMENTO
MARÍA CABEZAS
15:50 a 17:10
UN CONCIERTO DE JAZZ EN LA GRAN CIUDAD: DISTINCIÓN, OMNIVORISMO E INTERMEDIARIOS CULTURALES… Y LA MIRADA DE UN CREADOR
FACUNDO QUIROGA
LUZ EN EL PATIO DE BUTACAS, UN ESTUDIO SOBRE PÚBLICOS DE TEATRO
MARÍA DEL PRATO
MÚSICA PARA MIS OÍDOS”: REFLEXIONES EN TORNO A LA ESCUCHA MUSICAL EN TRÁNSITOS COTIDIANOS

MARÍA VILLAGRA G.
LA FUNCIÓN DEL CINE NACIONAL: OBSERVACIONES EN TORNO A LAS POLÍTICAS DE PROGRAMACIÓN DEL NOVÍSIMO CINE CHILENO EN EL CIRCUITO DE FESTIVALES INTERNACIONALES
DUSAN COTORAS S.
17:20 a 18:40
ENTRE EL ARTISTA COMO EMPRESA Y EL ABSURDO DEL MERCADO: RELATOS DE VIDA DE ARTISTAS VISUALES CHILENOS
MARÍA VARGAS S.
LA INSTITUCIÓN DEL ARTE Y SU INFLUENCIA EN EL CAPITAL SOCIAL DE LOS ARTISTAS VISUALES EN MONTERREY, MÉXICO
TANIA ALONSO G.
TRABAJO ARTÍSTICO Y NUEVAS TECNOLOGÍAS. EL CASO DE LA MÚSICA INDEPENDIENTE EN ARGENTINA.
GUILLERMO QUIÑA

CONTRADICCIONES DEL MODELO DE PRODUCCIÓN ARTÍSTICA-TEATRAL EN CHILE; ENTRE DISCURSO, CREACIÓN Y CIRCULACIÓN
JOSÉ NEIRA A.
VIERNES 14 DE OCTUBRE 2016
Horario
Título ponencia
Autor (es)
9:00 a 10:20
CIUDAD, FESTIVAL Y DEMOCRACIA. SOBRE EL PAPEL DE LA CULTURA EN EL CHILE CONTEMPORÁNEO
CARLA PINOCHET C.
LA CULTURA ESTÁ MÁS CONCENTRADA QUE LA ACTIVIDAD ECONÓMICA
PATRICIO ALTAMIRANO A.
GESTIÓN CULTURAL MUNICIPAL Y DERECHOS CULTURALES EN LA ARAUCANÍA: LA RELACIÓN POLÍTICA Y ARTE, UN ANÁLISIS DESDE LA PRAXIS
RODRIGO HIRIARTE LL.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Peter Burguer e Hall Foster: duas posições para a análise da obra de arte contemporânea

A questão da arte autônoma no seio da sociedade burguesa já foi, por muitos autores, referenciada como um giro fundamental na história da arte e o marco da passagem desta para sua modernidade. Autonomizar-se significava, para o artístico, liberar-se de funções sociais, de obrigações representacionais, seja teológicas, sejam políticas, para permitir-se pensar a si mesma. O ganho dessa consciência de si, pela arte, implicou em sua secularização, em sua racionalização e, segundo Weber, em sua constituição como esfera autônoma (como campo, diria Bourdieu).

Essa constituição da arte como esfera autônoma implicou, por outro lado, em um cada dia maior afastamento da arte da práxis vital. Esse diagnóstico, já encontrado pelos autores da Teoria Crítica, é visto como o sintoma de uma outra dominação da arte: se esta já não está mais sujeita à religião e a funções sociais de integração, agora serve como via de escape de uma ideologia burguesa de originalidade e distanciamento do social. Para Benjamin, isso é representado pela aura dada à obra de arte, por exemplo.

Peter Bürguer (2008), um dos autores mais importantes para se compreender a arte de vanguarda e seus processos de ruptura no início do século XX, parte deste diagnóstico também. Para ele, considerar a autonomia do campo artístico como uma categoria da sociedade burguesa é o caminho para a reflexão que permite compreender o processo através do qual a arte se desligou do contexto da práxis vital. Sendo assim, ele enxerga o modo como essa autonomia se apresenta, como erguida sobre fortes ideais estéticos – filiados ao pensamento humanista, de orientação filosófica essencialista –, retirando, por essa operação, todo o caráter de construção histórica do processo de autonomização do campo artístico.

Igualmente aos teóricos de Frankfurt, Bürguer identifica que a sociedade burguesa operou a cisão entre o conjunto de elementos que envolvem e compõem a atividade artística e a práxis de vida. Isso gerou uma espécie de “falsa representação da total independência da obra de arte em relação à sociedade” (BÜRGUER, 2008:101), ou seja, sua autonomia. Em outras palavras, o status de autonomia que a esfera da arte adquiriu no contexto da sociedade burguesa, passando, assim, a se configurar como um campo propriamente dito, traduziu a completa separação entre o mundo da arte e o mundo da vida comum.

E é a partir do questionamento que a arte de vanguarda fará a essa ruptura e distanciamento da instituição-arte burguesa em relação à praxis vital que Bürguer baseia a sua análise. Partindo de sua própria constatação de um cenário pessimista, Bürguer vê, exatamente no contexto em que o esteticismo chegou à sua exacerbação, a possibilidade de crítica contra a arte burguesa emergir. Para ele, o movimento de autocrítica só pode ser articulado porque a arte deixou de apresentar uma função e se tornou um fim em si mesma. Dessa maneira, a perda de função da arte como um elemento basilar da arte burguesa foi a condição de possibilidade do momento de autocrítica empreendido pelos movimentos históricos de vanguarda.

Nessa empreitada, aproxima-se de Benjamin por, da mesma maneira que este autor, pretender buscar nos movimentos de vanguarda elementos emancipatórios diante de sua atual configuração – seja como instituição-arte, seja como mercadoria. E, igual a este, verá nos movimentos de vanguarda a operação de um questionamento que não era somente estético, visto que as manifestações da vanguarda tinham como proposta questionar e romper os valores estéticos do sistema de arte enquanto valores da sociedade burguesa de maneira geral. A crítica ao esteticismo, não era somente um questionamento da instituição-arte burguesa e seu afastamento da vida. Era um questionamento dos seus valores, do sistema social burguês que representava. Ou seja, enquanto o esteticismo transformava o distanciamento entre a arte e a práxis vital em conteúdo das obras, os vanguardistas almejavam, a partir da arte, constituir uma nova práxis vital, radicalmente diferente da práxis de vida burguesa, basicamente orientada por uma racionalidade voltada para os fins.

Em outras palavras, as vanguardas operaram não só um movimento estético, mas também social de questionamento da racionalidade instrumental dominante no mundo da vida. E, operando um movimento de autocrítica – uma espécie de desconstrução no interior da instituição-arte – inciaram um processo artístico de aproximação da arte com a vida e, também, de destruição do que era a arte dentro da instituição burguesa.

A arte de vanguarda, portanto, precisava abandonar o caráter de objeto aurático, cuja origem atestava sua autenticidade e, portanto valor de culto, para ser jogada de volta à cidade, à vida. Foi aí que Duchamp fazia um mictório de escultura, ao assiná-lo com um nome falso, operando uma ridicularização do sistema legitimador da instituição-arte (para a qual a origem era um importante sinal de valor da obra). Com essas e outras ações ruptoras, a vanguarda pretendia uma não-arte. Mas com isso não pregava o fim da arte em si mesma, mas a desarticulação do que era essa arte burguesa.

E esse desmantelamento se dava nos níveis da produção e, também, da recepção artística. Ou seja, a tendência vanguardista recusou, ao mesmo tempo, o tipo de produção artística da arte burguesa, de caráter individual, e, também, o tipo de recepção da obra de arte verificado no contexto de desenvolvimento da arte na sociedade burguesa, também individual: aquela recepção que demonstra uma nítida e profunda separação entre quem produz o trabalho de arte e quem o recebe. Desse modo, quebram não somente com o tipo de produção aurática, seguindo benjamin, mas com uma espécie de recepção aurática também, que reforçaria esse caráter sagrado que se impingia às obras. Ou seja, passa-se de um tipo de recepção individual, sagrada, ritualística, inacessível, para um de tipo mais coletivo e acessível, no sentido de que a arte poderia ocupar, inclusive, o espaço de convivência das pessoas – a cidade.

Tornar a arte acessível, dessacralizada, devolvê-la ao nível da experiência, desmantelá-la em seu modo de produção/recepção burguesa, impor uma nova forma de produzir arte, tudo isso fazia parte do projeto das vanguardas históricas. Porém, diz Bürguer, a história as condenou e elas fracassaram em seu projeto ao tornarem-se, anos depois, musealizadas. Isso porque as neo-vanguardas dos anos 1960 retomam todas essas práticas inciadas no início do século XX, mas agora, sem uma pretensão tão violentamente desconstrutiva, dentro da instituição-arte.

Para Bürguer o fracasso começa a se der a partir de uma absorção dos processos ruptores das vanguardas. Por exemplo, por se configurar numa experiência única e de caráter impactante, a estética do choque não apresenta um efeito duradouro, na medida em que sua repetição transforma o sentimento de estranheza que ela suscita em algo já conhecido, familiar. O choque, defende Bürger (2008), passou a ser esperado pelo público que, ao tomar conhecimento das nada convencionais manifestações dos dadaístas e das escandalosas reações que elas provocavam, passou a ir a esses eventos com a expectativa de ver o que tanto estava sendo repercutido nos grandes veículos de comunicação de massa. Tal situação produziu, então, a institucionalização da estética do choque e, com isso, o projeto das vanguardas de destruição da instituição arte e do retorno da arte à práxis vital parecia estar fracassando. A instituição-arte parece ter vencido a vanguarda, reabsorvendo-a em seu interior e reproduzindo-a, tornando-a arte aí dentro.

É aí que Bürguer, que vinha muito próximo de Benjamin em sua análises das vanguardas (caráter de aberto e fragmentário das obras vanguardistas, a noção de alegoria em contraposição à de aura) se aproxima de Adorno em seu diagnóstico final. As vanguardas morreram porque foram absorvidas de volta pelo mercado. Segundo ele, ao invés de se alcançar efetivamente a recondução da arte em direção a uma nova práxis vital (que não a do burguês), o que se conseguiu foi, com a indústria cultural, o desenvolvimento da falsa superação da distância entre arte e vida. E será esse o diagnóstico inspirador para vários autores que se debruçarão posteriormente sobre a arte pós-moderna (ou arte contemporânea): esta não passa de um pastiche do que foi o modernismo, o resultado de um fracasso altamente mercadorizável e acrítico.

E desde esse ponto, é importante observar quais caminhos distintos a tipo de análise se pode tomar, através da leitura que faz Hall Foster (1999) das neo-vanguardas, por exemplo. A análise de Foster sobre as neo-vanguardas é sempre muito intrigante. O fato de ele se utilizar de teorias psicanalíticas para entender o processo criativo realizado pelos artistas que retomavam ações inicialmente realizadas por vanguardas como o Dadaísmo e o Surrealismo já demonstra o quanto este teórico quer desbravar este fenômeno, ao invés de rechaçá-lo. A partir de Freud, Foster pensará as neo-vanguardas como retornos que tentam resolver um trauma: as vanguardas foram eventos culturalmente traumáticos, não digeridos nem entendidos na época de seu primeiro acontecimento, que precisaram ser retomados para, de fato, se realizarem em sua plenitude de potência.

Dessa maneira, Foster acredita existir dois momentos de retorno neo-vanguardista. Um primeiro aconteceu no início dos anos 1950 e, para ele, foi um momento de retorno acrítico, de mera repetição das ações de vanguardas anteriores. O segundo, ocorrido nos anos 1960, representa um retorno mais lúcido e crítico, no qual as neo-vanguardas finalmente conseguem realizar a crítica à instituição-arte preconizada pelas vanguardas. A ampliação da consciência histórica, da formação acadêmica dos artistas são fatores apontados por Foster para essa realização mais crítica do segundo retorno neo-vanguardista. Mas a explicação freudiana é ainda mais interessante para entender o fenômeno por ele apontado.

A partir dessa visão psicanalítica, Foster acredita que na primeira neo-vanguarda ocorre um processo de repetição que parece necessário ao processo de reconhecimento, visto que este conteúdo (a ação da vanguarda) havia sido reprimido no momento de sua primeira manifestação. A segunda retomada acontece num momento posterior. Dessa maneira, já realizada a repetição, esse conteúdo anteriormente reprimido pôde ser elaborado e, dessa forma, criticado. Sendo assim, para Foster, o chamado fracasso da vanguarda histórica e da primeira neo-vanguarda em destruir a instituição-arte capacitou a segunda neo-vanguarda à submeter a um exame desconstrutivo esta instituição. Um exame que, uma vez mais, se amplia até abarcar outras instituições e discursos no que ele chama de “arte ambiciosa” do presente (1999:26,27).

Ao assumir esse ponto de vista sobre as neo-vanguardas, ele bate de frente com Peter Bürguer. O principal erro deste autor, em sua visão, é o de não perceber a dimensão performática das vanguardas e, por isso, tomá-las como um projeto “real” de mudança social e artística ampla que fracassou. E ao assumir essa visão romântica da vanguarda, Bürguer cega para a possibilidade de uma segunda retomada dessas ações performáticas como possibilidades reais de crítica para a arte no período pós-guerra. Sem desconhecer a importância deste autor para a descoberta da dimensão histórica da arte que as vanguardas revelam, Foster também reconhece que a insistência de Bürguer no fracasso da vanguarda e da impossibilidade de um novo projeto artístico o faz cegar à sua própria descoberta de que a vanguarda revela a historicidade de toda arte. Dessa maneira, ele cega para a possibilidade da existência do que Foster chama de arte ambiciosa (ampliação da crítica pré-guerra da instituição-arte, produzindo novas experiências estéticas e intervenções políticas) (1999:16).

Para Foster, Bürguer deixa de perceber as dimensões miméticas e utópicas das vanguardas ao tomar ao pé da letra a retórica romântica de ruptura e revolução destas. A dimensão mimética da vanguarda seria a capacidade de mimetizar o mundo capitalista moderno degradado a fim de não aderir a ele, mas burlá-lo. A dimensão utópica, por sua vez, está no fato de que a vanguarda propõe o que pode ser, quanto o que pode não ser como crítica do que é. Para Foster, a ação vanguardista de ruptura e revolução é retórica no sentido de que é contextual e performativa, não podendo ser tomada como ampla e profunda, como projeto a ser empreendido (à maneira que Bürguer entende) (1999:17).

E a partir da sua crítica à Bürguer e de sua vontade de recorrer à Freud para compreender a ação das neo-vanguardas, é possível perceber como Foster está lidando como elas: como ações performativas, contextualizadas, que operam rupturas na instituição-arte a partir do seu interior. Para ele, o fato de as neo-vanguardas serem “institucionalizadas” não é um problema, ou um índice claro de fracasso ou negação da crítica. Ao contrário, para ele são as neo-vanguardas que estão institucionalizadas as que parecem possuir a capacidade crítica mais acentuada.

Porém, ao mesmo tempo, são essas as neo-vanguardas responsáveis por constituir o mercado de arte contemporânea altamente volátil e incorporador de novas ações, sejam elas precárias, efêmeras ou críticas. E essa dupla face das neo-vanguardas, que depois se revelará a dupla face da arte ambiciosa do presente, como o autor revela, estará sempre presente na obra de Foster, como uma sombra. A análise pós-estruturalista e desconstrutiva derridiana que este autor parece se empenhar em desenvolver, o deixa alerta para a possibilidade da adesão disfarçada de crítica como um modus operandi da arte, inaugurado pelas ações das neo-vanguardas.

Sem negar sua base Teórica Crítica, Foster reconhece também a dimensão de captura que ronda a produção artística. Sem querer se entregar ao totalitarismo do pensamento pessimista, por conta de sua inspiração derridiana, ele vê essa captura operando, não como algo obsedante e sem saída, mas através de uma espécie de jogo, no interior do qual a prática do artista é algo fundamental.

Há, em sua visão, uma espécie de fronteira entre a desconstrução (a prática crítica) e a cumplicidade (inserção nas regras do mercado). O jogo desconstrutivo da arte abriga a possibilidade de promover críticas profundas no interior da instituição mas, ao mesmo tempo, também tende a promover uma espécie de “cinismo” adesista, como diz Foster. Em outras palavras, a arte contemporânea pode tornar-se uma ação no interior da instituição-arte que, em discurso, tenta desconstrui-la, mas que, em prática, apenas a reforça, compartilhando de seus princípios de mercado.

E é nesse momento que a performatividade artística entra em questão na “luta” contra o mercado e a neutralização da crítica que realiza. O artista como agente, mesmo que Foster não o defina dessa maneira, parece ser dotado do poder de jogar com essas regras, de fazer o jogo desconstrutivo ou o jogo cúmplice na arte, mesmo que posteriormente sua obra escape de seu alcance. E essa dimensão performática da ação política na arte é vista de melhor maneira nas ideias de agente duplo e artista cúmplice que ele desenvolve.

O artista cúmplice e sua potencial versão cooptada de agente duplo, abarcam, portanto, essa dimensão sutil e performática da passagem para um lado ou outro desse limite entre a adesão e a subversão, acima referida. Pensada por Hal Foster (1996), essa ideia permite visualizar, por um lado, a operação artística que “se faz” de cúmplice do mercado para operar críticas a partir de seu interior e, por outro, a ação que “se faz” de subversiva (ou que anula uma anterior dimensão ruptora) para se tornar melhor cotada no mercado. Através dessas construções analíticas, Foster parece visualizar uma espécie de passagem secreta, tênue e precária que, uma vez encontrada pelo artista, o dota da possibilidade de operar a crítica, mesmo estando completamente inserido no jogo mercadológico (apesar de reconhecer que, por outro lado, pode operar a reprodução desse mercado passando pela mesma passagem secreta).