sexta-feira, 27 de maio de 2016

Vazio institucional: grandes eventos, museus espetáculo e o desmonte das instituições públicas

Neoliberalismo. Essa palavra, de tão dita repetidas vezes, já se tornou uma espécie de jargão o qual quase ninguém se pergunta mais sobre o seu sentido. O que é neoliberalismo? Uma ideologia econômica. Mas que ideologia econômica é essa? Uma ideologia econômica que, em termos gerais, defende a ampliação das forças do mercado e do patrimônio privado em detrimento da esfera do Estado, diminuída e restringida ao papel de facilitador dos negócios e realizador do controle social, através da polícia. Esse encolhimento da esfera estatal resulta na diminuição ou quase ausência de políticas de bem-estar social e investimentos em amplos setores da vida social, incluindo a cultura.

Privatizar, o lema principal do neoliberalismo, se tornou uma ação com graves consequências para vários países, especialmente nós aqui na América Latina. Setores estratégicos como de produção energética, telefonia e até gestão das águas, foram vendidos para o capital estrangeiro. Enquanto isso, setores como o de cultura passaram a ser dominados por um pensamento empresarial onde o marketing ganha destaque. Em vários países, grande parte das políticas culturais foi reduzida à promoção de fundos de financiamento e acordos com o empresariado para que este financie a cultura em troca de abono dos impostos. Os artistas e demais agentes da cultura, nesse cenário, foram obrigados a especializar-se em áreas como administração, gestão de projetos e contabilidade, a fim de sobreviver a essa nova lógica da necessidade de captar recursos para produzir.

E num cenário de políticas estatais para a cultura reduzidas, priorização do financiamento privado, as instituições também sofrem impactos bastante importantes. O principal deles é diminuição do envio de verbas para manutenção, falta de política para constituição de acervos, dificuldade de estabelecimento de programações de exposições consistentes e constantes, diminuição do protagonismo das instituições no fomento da produção artística (pouca ou nenhuma realização de cursos e seminários, pouca produção de publicações, não-estruturação de setores de pesquisa e não realização de programas para artistas). Para sobreviver, muitas destas instituições são obrigadas a concorrer por patrocínios, muitas vezes participando dos mesmos editais que os artistas, gerando uma competência desigual, por um lado, e dificultando a manutenção de políticas regulares institucionais, visto que estas se vêm sujeitas às instabilidades dos editais, por outro.

Essa descrição mais ou menos genérica da situação institucional frente a falta de políticas estatais para a cultura dá uma sensação de familiaridade imediata. Causa a impressão de se estar descrevendo a situação real de vários museus pelo mundo. E essa situação de descaso leva a várias consequências no interior dos contextos culturais e sociais.

Junto com isso, a visão da cultura como um “serviço”, inserida por esse pensamento empresarial e mercadológico neoliberal, é relacionado, por vários pesquisadores, ao surgimento dos chamados museus pós-modernos, ou museus-espetáculo. São instituições constituídas, geralmente, com projetos arquitetônicos arrebatadores e situadas em lugares que estão sendo valorizados economicamente. O objetivo dessas instituições, quase sempre, é o de realizar exposições que atraiam o maior número de público possível. As noções de lucro, valorização e commoditie podem facilmente ser aplicadas para definir estas instituições que se tornam, elas mesmas, commodities para o mercado imobiliário e turístico do lugar onde se situam.

No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, uma instituição com essas características foi recentemente inaugurada, chamada Museu do Amanhã1. O fato, em si mesmo, que existam instituições voltadas para o entretenimento e o turismo não é o grave e o crítico da questão. O fato é que milhões de reais da esfera governamental da cidade foram usados na construção de um museu - que tem como sócio um dos grandes conglomerados de televisão do país, a Rede Globo, além do Banco Satander - enquanto outras instituições públicas perecem, a exemplo da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, ameaçada de fechar por falta de recursos.

A arquitetura deste museu e o lugar onde se situa, na Praça Mauá, se conectam com a recente política realizada na cidade do Rio de Janeiro, a da realização de grandes obras para tornar a cidade turisticamente atrativa para as Olimpíadas. Aliada a essa política, está a ação de higiene social, através do braço armado da polícia, que tem sido uma das principais formas de ordenar o espaço urbano nessa cidade nos últimos anos, além de indicar que tipo de política para a cultura se realiza. Aqui, muito claramente, vemos operar a lógica da espetacularização da cultura com o objetivo de gerar renda e valor.

Outro fator que atinge diretamente o setor cultural são as crises econômicas, aliadas à precariedade da estrutura estatal. Recentemente, foi anunciado, em São Paulo, o fechamento do Paço das Artes. Criado em março de 1970, a instituição chega às vésperas do seu aniversário de 46 anos com a incerteza de sua continuidade. A última exposição, do alemão Harun Farocki, está em cartaz até março. De aí em diante, é incerto o futuro da instituição que nunca teve uma sede própria em sua história. Funcionando atualmente em um prédio situado no campus da Universidade de São Paulo, terá que sair do atual endereço porque o Instituto Butantã, a quem o edifício pertence, está pedindo-o de volta. E junto com a perda do edifício, a atual diretora da instituição, Priscila Arantes, prevê um corte na verba de 15 milhões anuais, dividida com o Museu da Imagem e do Som. A esperança é a de que a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo entregue um edifício para que o Paço das Artes construa sua própria sede e possa continuar funcionando e realizando ações de fomento e exibição da arte contemporânea no país. Dentre as várias atividades realizadas pelo Paço, estão programas importantes e reconhecidos em todo o país como o edital Temporada de Projetos e o Programa de Residência Paço das Artes. Além disso, desde 2011, o Paço abriga a PARTE, umas das primeiras feiras exclusivas para a arte contemporânea.

Outra situação parecida, ou talvez mais grave, ocorre em Recife, Nordeste do Brasil. No interior de um contexto mais amplo de crise política e econômica, que toma conta de todo o país, a situação cultural da cidade se tornou mais crítica após uma sequência de duas administrações municipais que desmontaram toda a pequena estrutura que se havia conseguido construir. Seguindo a mesma lógica de política urbana e cultural voltada para a promoção de um turismo de marketing, e baseado em uma relação espúria entre instituições privadas e a esfera governamental, foram criadas duas novas instituições, o Paço do Frevo e Cais do Sertão. Situadas em uma área histórica da cidade (o Paço do Frevo) e numa antiga zona portuária da cidade (Cais do Sertão) - a qual foi completamente descaracterizada para dar lugar a empreendimentos turísticos - foram construídas em sistema de Parceria Público-Privada, onde o Estado financiou grande parte da obra e uma empresa privada ficou a cargo da administração da instituição.

O financiamento dessas duas instituições levou o Estado a alegar falta de verbas para a manutenção de outras ações culturais, como o pagamento dos artistas que participaram de ações realizadas pela Fundação de Cultura do Estado (Fundarpe), além de custar também, no nível municipal, o completo abandono de instituições que foram fundamentais na estruturação da arte contemporânea na cidade, a exemplo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM). Sem contar a destruição do Teatro do Parque, um dos mais tradicionais da cidade, que está em ruínas e a prefeitura se recusa a realizar sua reforma.

Mas o que mais indignou a cena cultural da cidade foi o anúncio de fechamento das duas instituições recém-construídas. O Paço do Frevo já demitiu funcionários e deixou vários em aviso-prévio. O Cais do Sertão também anunciou o fechamento, provocando a revolta da classe artística e da população que lutou, desde o início, contra a revitalização da qual o projeto do museu fazia parte, que descaracterizou todo o patrimônio portuário da cidade. A corrupção evidente da relação entre o governo e o setor privado chegou no limite do desmonte completo, momento em que as instituições se tornam empresas que são fechadas ao não proporcionar o lucro esperado pelos seus donos. Instituições que foram construídas com dinheiro público, que modificaram um pedaço da cidade historicamente importante e que, no final, não constituíram nenhum benefício além o de promover lucros ao setor privado. E em pouco menos de três anos de funcionamento já são descartadas e fechadas, demonstrando um completo descaso com o setor cultural pelos governos do estado de Pernambuco e da cidade do Recife, além de um evidente entreguismo do patrimônio público à irresponsabilidade administrativa do setor privado.

Importante dizer que a única instituição que funciona de maneira mais ou menos regular é o Museu do Estado que foi privatizado. Ou seja, a única instituição estatal que Pernambuco possuía está agora sob os cuidados do Banco Satander, até quando este deseje.

Com uma produção bastante prolífica e atuante, seja nas artes visuais, como na música e no teatro, Recife quase nunca, ou muito poucas vezes em sua história, contou com uma malha institucional que desse suporte e fomentasse a mesma. Iniciativas pontuais, as vezes privadas, e sem continuidade, marcam a história dos grandes momentos da produção artística. Aliás, a história da arte visual recifense é marcada pela articulação e ação em coletivos de artistas. Foi graças a vários momentos de produção em grupo que a arte pernambucana se manteve potente e ativa, no seio de uma completa carência institucional que é histórica.

E no Brasil, em geral, foram poucos os momentos em que o Estado promoveu políticas culturais. Uma primeira tentativa de estruturação estatal aconteceu no período do governo do presidente Getúlio Vargas conhecido como Estado Novo, entre 1937 e 1945. Nesse momento, participaram do governo intelectuais importantes como Mário de Andrade e foram criados órgãos até hoje fundamentais como o Serviço do Patrimônio Artístico (SPHAN) hoje tornado instituto (IPHAN). Após a época da ditadura do Estado Novo, foi no período da ditadura militar que a área da política cultural brasileira viveu um novo momento de expansão, quando novos órgãos como a Fundação Nacional das Artes (Funarte) foram criados. É importante ressaltar essa coincidência: quando o país viveu dois de seus maiores momentos de governos ditatoriais foi também quando teve maior atenção a área cultural. O aparente paradoxo se resolve quando compreendemos que a necessidade de integração nacional exigida pelo controle ditatorial, por um lado, e a necessidade de controle da produção cultural e intelectual, por outro, foram motivos que levaram à criação de inciativas estatais nessas áreas.

E, desde os anos 1980, quando a lei Sarney foi criada, o Estado, que nunca foi exatamente presente na formulação de políticas culturais e na sua estruturação, se ausentou ainda mais no Brasil. Essa lei, parecida a várias outras implantadas na América Latina, autoriza o financiamento de ações culturais através do patrocínio privado. Empresas são estimuladas a investir na cultura em troca de isenções fiscais dos governos. O que parece investimento privado é, na verdade, dinheiro público, visto que esses recursos deixam de tornar-se impostos que são, teoricamente, dinheiro dado por todos para ser compartilhado para todos. E, além de tudo isso, as inciativas culturais ficam sujeitas à lógica de marketing das empresas, o que promove a desigualdade da destinação desses investimentos, prejudicando a diversidade da produção artística.

Sem instituições fortes, estruturadas e funcionando bem, a produção artística fica à mercê desses investimentos privados e de ações coletivas ou particulares para continuar existindo. O desmonte institucional torna-se prejudicial até para o mercado de arte, visto que as galerias passam a cumprir o papel de instituições, fomentando a produção, a pesquisa e a difusão, o que prejudica sua atividade de expor, inserir o artista no mercado e vendê-lo. Além disso, são instituições fortes, que possuem políticas de acervo, que podem fazer o mercado girar também ao adquirir obras e exibir os artistas. Ou seja, até para a lógica de mercado, essa ideologia neoliberal do espetáculo e da efemeridade na área da cultura, levada ao extremo que estamos vivendo, torna-se prejudicial. É preciso uma mudança urgente nos parâmetros governamentais no tratamento da cultura e do patrimônio público. E a primeira coisa é o público, que somos nós, que somos todos, tomarmos consciência do nosso papel cidadão e começarmos a defender o público da sanha lucrativa sem limite de uma parte do privado.

1O Museu do Amanhã foi inaugurado no Rio de Janeiro no dia 19 de dezembro de 2015.