quinta-feira, 13 de agosto de 2015

As poéticas e a convergência


Relato da apresentação do projeto de curadoria de Nelly Richards para o pavilhão chileno da 56ª Bienal de Veneza, realizado no Museo de Bellas Artes no dia 13 de agosto de 2015


Hoje, no Museo de Bellas Artes de Santiago, a curadora Nelly Richards apresentou ao público o projeto curatorial Poéticas de la Disidencia. O projeto foi aprovado para representar o Chile na 56ª Bienal de Veneza, através de um concurso público realizado pela primeira vez pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile (CNCA). A proposta vencedora de Nelly Richards se baseou na obra das artistas Paz Erázurriz e Lotty Rosenfeld, ambas chilenas.

Em comum entre as artistas e a curadora está um fator geracional. Tanto Lotty Rosenfeld quanto Paz Erázurriz iniciaram suas carreiras durante um dos períodos mais terríveis da história chilena, o golpe de estado militar que levou à ditadura de Pinochet e à abertura do país ao neoliberalismo mais selvagem da América Latina (só não perde para a atual situação brasileira de radicalização da direita). E Richards, nascida na França, veio viver no país nos anos 1970, justamente o período da instituição desse processo político. Esse dado biográfico, longe de ser apenas um detalhe curioso, me pareceu importante na construção do discurso curatorial e da escolha das obras. Existe uma espécie de reconhecimento e cumplicidade entre essas mulheres, no sentido de indicar um olhar crítico e político ao entorno comum. Nesse caso, ao contexto chileno.

E durante sua apresentação, Richards destacou por vários momentos que o ponto central do seu projeto de curadoria tinha a ver com a questão da história e memória locais. A relação do contexto com o global pareceu ser bastante importante para sua construção discursiva. E ela encontra nas obras de Erázurriz e de Rosenfeld essa ligação com o local, uma noção de vizinhança e pertença que, ao mesmo tempo, extrapola os limites do lugar. É uma reinvindicação de identidade, uma tentativa de assumir o sul como lugar simbólico, não para deixá-lo intocado, mas para questionar uma hegemonia mundial que o deixa esquecido.

Para ela, se faz importante esse questionamento do local e do contexto no seio de um evento como a Bienal de Veneza, super internacionalizado e espetacularizado. Ao falar do fenômeno da bienalização da arte contemporânea, parece ecoar Simon Sheik, sem citá-lo diretamente. Para Sheik, por conta da sua ampla proliferação pelo mundo, especialmente nos últimos 20 anos, as bienais se tornaram um ramo da economia em crescimento. Contudo, para este autor, elas raramente são discutidas como um ramo da economia, mas principalmente como um modelo de exposições e como produtoras de discursos.

Esse papel econômico das bienais, diz a pesquisadora francesa Raymonde Moulin, tem a ver com a capacidade de legitimação, validação, exibição e troca de informações que esses eventos proporcionam. Nesse sentido, para Moulin, os grandes eventos internacionais, como a Bienal de Veneza ou a Documenta de Kassel, além de constituírem esse momento de encontros periódicos para o mundo cosmopolita da arte internacional, são também lugares privilegiados para a troca de informação. Além disso, estes eventos exercem também a função de qualificação dos criadores, tal como sucedia no Salão de Paris do século XIX. Enquanto atuam como academias informais, participam na elaboração de uma hierarquia dos valores estéticos e se constituem em uma etapa obrigatória de uma carreira artística, tanto do ponto de vista da reputação do artista como do preço das obras.

Tendo claro que a Bienal de Veneza é uma das mais prestigiadas do mundo (e também a mais antiga, em funcionamento desde 1896), seria ingênuo da parte de Richards não reconhecer o poder globalizante deste evento. A reivindicação de uma conexão com o contextual e o histórico, especialmente da história política recente do país, através de Rosenfeld, ou do “refugo” humano do neolibralismo, através de Erázurriz, dá a impressão de uma tentativa de enfrentamento a essa condição mundializante que pode ser neutralizante. Em sua apresentação, Richards afirmou que se fez a pergunta “como fazer para que no cenário globalizante o contexto das obras não fossem subsumidos ou neutralizados?”. Se o capitalismo consegue tornar tudo intercambiável, negociável, falar desde um lugar se torna importante, um ato de resistência. E ao falar em borramento das fronteiras causada pela bienalização, Richards parece temer a diluição.

Ao indicar a preferência pelos trabalhos de Erárzurriz e Rosenfeld para a construção do seu projeto, além da questão da história e da memória, que encontra presente em ambos os trabalhos (resolvidos de maneiras distintas), também relaciona uma noção de corpo maltratado pelo capitalismo. Em Erázurriz, esses corpos aparecem de forma evidente, chapados em fotografias preto e branca, mostrando de maneira mais ou menos crua seus estigmas marcados em gestos, formas, rostos e olhares. São pessoas comuns, mas ao mesmo tempo extraordinárias. São os sujeitos que vivem em condições de extrema pobreza, ou de marginalização constante que os torna construções corporais e identitárias que causa estranheza para a “maioria normalizada”: são loucos e suas miradas delirantes, são travestis e suas maquiagens e trajes exuberantes, são trabalhadores rurais empobrecidos e sua face jovem estranhamente envelhecida. E toda essa estranheza é perturbadora por apresentar, ao mesmo tempo, uma sensação de familiaridade. Para Richards, esse ruído entre as noções de normalidade e anormalidade que a obra de Erázurriz provoca é um importante vetor político: o da desconstrução de noções hegemônicas sobre os corpos e as identidades, além da evidência das consequência da violência da desigualdade social.

Já em Rosenfeld, Richards se identifica com a economia política do signo que seus vídeos põem em evidência. Assemelhando-se um pouco da estética visual de Juan Downey (precursor da video-arte no Chile) o trabalho de Rosenfeld apresenta uma obsessão pela imagem midiática e sua desconstrução. Os vídeos reúnem performances realizadas no final dos anos 1970 pela artista e outros trabalhos que se desenvolvem a partir das imagens televisivas. A remodulação das imagens midiáticas é um dos métodos principais dos vídeos que, segundo Richards, intentam provocar uma espécie de “choque” dadaísta. A sequência nervosa, irritante até, de imagens entrecortadas e ruídos, de fato produzem um incômodo grande no espectador, que se vê obrigado a observar, a ver, o que a artista apresenta. É uma tentativa de tirar o espectador da “dormência” midiática, diz Richards sobre o trabalho. Eu, apesar desse discurso mais óbvio do afã político da desalienação do espectador, também vi um esquema de montagem de imagens e sons bastante elaborado e impactante. O nervoso causado pela sequência sim, de fato, é bastante deslocador.

E apesar de possuírem poéticas bastante distintas (o vídeo que se relaciona mais com o questionamento do capitalismo de maneira mais evidente, através da mídia e da publicidade, de um lado, e do outro, fotografias quase intimistas de pessoas em ambientes distanciados no tempo e no espaço), Richards encontra nas duas artistas convergências críticas. Para a curadora, ambas questionam esquemas de poder, apresentam corpos fragmentados pelo capitalismo, apresentam uma crítica ao masculino, relacionando-o ao poder e ao dinheiro, falam de enfrentamento e resistência. Erázurriz fala de enfrentamento e resistência ao convocar o feminino (muitas vezes através das imagens de travestis e das mulheres que fotografa), de buscar uma comunidade com esses corpos invisibilizados. Já Rosenfeld, traz a resistência no enfrentamento revolucionário que apresenta em seus vídeos. A não aceitação das regras do jogo. A subversão dos signos do capitalismo, como o sinal de +, o qual a artista ressignifica para que deixe de ter apenas uma ideia de somar para simbolizar a repressão e a violência através do lucro.

Poéticas da dissidência, então, passa a ter um sentido quase literal: a escolha da curadora por duas poéticas distintas em que a questão do dissenso, como diria Rancière, são fortes e presentes. São duas artistas que, surgidas no momento mais duro da história do Chile, o da sua ditadura, têm a trajetória marcada, de distintas maneiras, pela consciência crítica do momento político. Coincidem na consciência de um ser latino-americano, um ser outro que, por isso, se torna desejo de reconhecimento e voz. Mas as coincidências param só aí?

O não dito pela curadora a respeito da coincidência, que levou a escolha dessas duas artistas, aparece dito em outros lugares, como no release da mostra, por exemplo. Em algum momento do documento, aparece a informação de que “a principal exibição da 56ª Bienal de Veneza, Todos os Futuros do Mundo, curada por Okwui Enwezor, também estará, em parte, inspirada na história do Chile. Depois do violento golpe de Estado em que o general Augusto Pinochet derrotou o governo de Salvador Allende, em 1973, parte da Bienal de Veneza de 1974 esteve dedicada ao Chile, num gesto de solidariedade com o país e contra o fascismo. Em vista da atual agitação ao redor do mundo, Enwezor faz referência à Bienal de 1974 como uma inspiração curatorial de sua exibição”. Parece que entre Enwezor e Richards houve uma coincidência de inspiração.

Coincidência ou não, aos que se interessam minimamente em observar as dinâmicas do mercado de arte, verá que é melhor usar outro termo para isso: alinhamento de discursos ou agenda. Enquanto Enwezor fala, este ano, em Todos os Futuros do Mundo e toca na temática dos conflitos mundiais, no ano passado, Charles Esche (e outros cinco curadores) foram falar sobre coisas que não existem (sujeitos e lutas sociais invisibilizadas, conflitos, desigualdades e tentativas de saída desse cenário seja via imaginação ou reintegração da comunidade) na 31ª Bienal de São Paulo. Não que a Bienal de São Paulo tenha o poder de pautar a de Veneza (muito mais antiga e importante), mas que sim é possivel a existência de uma convergência entre interesses curatoriais e discursivos no interior de um mundo da arte contemporânea internacionalizado, onde esses agentes acabam participando de uma esfera cosmopolita, fazendo surgir uma espécie de economia do discurso artístico: falar sobre o o outro e o invisibilizado, o conflito, o caos social e ambiental, e as possíveis saídas para tudo isso, está na agenda do mundo da arte. E esta edição da Bienal de Veneza parece mostrar isso.

Chama a atenção, inclusive o fato de que, nesta edição, a Bienal tenha escolhido a Enwezor. Parece que ter um curador nigeriano é  importante para ajudar a reforçar uma imagem de que a Bienal de Veneza está plural, aberta, democrática e abraçando outros espaços e países do mundo. Nas notícias sobre esta edição do evento, quase sempre, ao se falar do curador, há uma referência ao seu país de origem. Inclusive, em uma delas, me chamou a atenção o fato de que na coletiva de imprensa feita com o presidente da Bienal, Paolo Baratta, e o curador, alguém perguntou o que ele “sentia” ao ser o primeiro curador africano da Bienal. Na matéria, a resposta dada por Enwezor foi a de que ele “disse que o importante é sua trajetória marcada por um profundo interesse nas artes africana, europeia, asiática, sul e norte-americana, dos séculos XX e XXI, e, fundamentalmente, sua visão de um mundo sem fronteiras.” Alguém pergunta a um curador inglês, espanhol, francês o que ele sente em ser um curador francês em uma bienal? 

Esse fato fala muito ainda sobre um mundo da arte ainda extremamente hegemônico e ocidental, o qual, ao tentar absorver o dissidente, parece sempre tentar capitalizá-lo: Enwezor aqui aparece como o símbolo do discurso da quebra de fronteira, do cosmopolitismo democrático e miscigenado o qual, na prática, ainda segue sendo exatamente o contrário. Existe uma pequena parcela, que participa da elite legitimada do mundo da arte, que é cosmopolita e que pauta o mercado, as instituições e os eventos do mundo da arte. Para uma grande maioria, ainda está muito distante participar desse universo. Além disso, poucos países dominam o cenário econômico e discursivo do mundo da arte. Por exemplo, a recente ganhadora do Leão de Ouro de melhor artista da Bienal de Veneza foi uma estadunidense, Adrian Piper. O mundo da arte e o seu mercado, seguem sendo majoritariamente dominados pelos Estados Unidos e alguns países europeus, como Inglaterra, Alemanha e França. O resto do mundo participa em menor medida, pois aparece como fornecedores interessantes de novidades para o mercado (daí o importante movimento de proliferação das bienais por todos os lados a partir dos anos 2000).

Nesse sentido, Nelly Richards tem razão ao tentar descobrir o lugar do contexto, o lugar da fala e do outro, num cenário que tenta neutralizar as diferenças para encobrir a desigualdade. Mas confrontando o seu discurso com o contexto mais amplo, tem-se que ele mesmo é uma replicação, está operando na convergência. A própria bienal está falando sobre a crítica e o confronto. Está, inclusive, lembrando do Chile e do seu terrível momento político. Aí nos perguntamos: onde é que fica a dissidência aí? Para mim, permaneceu com as poéticas e seguirá com elas, independente de Nelly Richards e da representação no pavilhão da Bienal de Veneza.

Para mais informações sobre a curadora e as artistas, segue link da página da Bienal de Veneza: 
http://universes-in-universe.org/esp/bien/bienal_venecia/2015/tour/chile/nelly_richard


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Década de 1980: a volta da pintura, a ampliação do mercado e a situação da crítica


Texto inédito

Desde finais da década de 1970 e início dos anos 1980, alguns fenômenos marcaram a experiência mundial. Cessada, ou pelo menos aplacada (ao menos em aparência), as revoltas sociais dos anos 1960 (especialmente os eventos de 1968), triunfava absoluto o neoliberalismo. Personagens como a primeira-ministra britânica, Margareth Tatcher, e o presidente estadunidense Ronald Reagan representam, em seus discursos e ações, a agenda do neoliberalismo diante do mundo: recrudescimento conservador nas pautas políticas e sociais conectado com uma ideia de flexibilização na dimensão econômica que, em outras palavras, representava diminuição de direitos sociais, precarização do trabalho, privatizações, diminuição do papel do Estado como provedor de políticas públicas de bem-estar e justiça social (aumentando, ao contrário, o seu papel policialesco) e aumento do lucro para empresários e banqueiros.

A arte produzida neste período também  foi influenciada por estes acontecimentos mais amplos. E um dos eventos mais importantes ocorridos nesse momento é a chamada “volta da pintura” e a emergência de um mercado de arte super aquecido. E a alusão a esse momento da arte em que emergem as ideias sobre seu período pós-moderno é fundamental pois a década de 1980 é, aparentemente ao menos, um dos marcos do que hoje é conhecido como arte contemporânea. E nas análises desse período, pululam as críticas em relação aos seus procedimentos, movimentos e relação com o mercado, ao passo que parecem menos visíveis as ações críticas realizadas pelos artistas, 

Segundo Belting, algumas exposições realizadas no período dos anos 1980 “permitem reconhecer que o temor de perder as imagens dos homens ou ainda a pintura como medium desencadeou novamente o apelo a uma mudança de curso ou a uma nova reflexão” (2006:267).  Mostras da época - que celebraram uma pretensa volta ao pictórico e escultórico -, apresentavam um clima de vitória da arte sobre a anterior "tentativa de assassinato" desta, realizada pelos movimentos conceitualistas. E esse pretenso triunfo da arte sobre sua "tentativa de homicídio" interessou bastante ao mercado e à mídia desse período.

Um exemplo interessante do clima artístico deste período, em que as leis de um mercado em intensa efervescência se impunham de maneira agressiva, é o fato de eventos como a Documenta de Kassel - que na década anterior havia abrigado obras realizadas em vários meios, ecoando a produção do período -, declarar uma intenção conservadora em sua versão de 1982, a Documenta 7. Segundo Douglas Crimp (2005), em carta divulgada para os artistas convidados a participar do evento, Rudi Fuchs, curador da mostra, “por um lado, declarava que iria restituir à arte sua preciosa autonomia, enquanto, por outro deixava claro o desejo de manipular as obras de arte individuais de acordo com sua auto-imagem inflada de artista mestre da exposição. (…) Fosse ou não fosse a intenção dos artistas participantes, Fuchs faria um esforço para assegurar que as obras não refletissem de modo algum o seu ambiente: o mundo ao redor, os costumes e a arquitetura, a política e a culinária” (CRIMP, 2005:210).

Segundo Crimp, Fuchs, em seu texto, além de afirmar-se na posição de criador de uma segunda obra com sua exposição (questão que emerge a partir da mudança do status do marchand para o curador, que passa a ser um criador de exposições-arte), revela um rechaço às obras experimentais e realizadas em outros meios (a exemplo do vídeo e performance), além daquelas que criticavam as formas institucionalizadas de recepção e produção da arte (Crítica Institucional). Deixa claro, desse modo, uma preferência por pinturas e esculturas, a maioria de estilo neo-expressionista que, no período, dominava o mercado de arte em Nova Iorque e outras regiões do mundo ocidental, diz Crimp.

E essa tendência de retorno se materializou de maneira mais evidente em dois movimentos ícones do período: a transvanguarda italiana, assim nomeada pelo crítico de arte Bonito Oliva, e o neo-expressionismo alemão. Hal Foster resume esses dois movimentos como sendo o primeiro uma espécie de fetichismo dos estilos e modos passados que nega a historicidade da arte e sua imbricação na sociedade; e o segundo como uma tentativa de reviver um estilo moderno (o expressionismo) e um tipo moderno (o artista como primitivo) de uma maneira nada irônica, mas bastante anacrônica.

Segundo a pesquisadora argentina, Viviana Usubiaga, Bonito Oliva desenvolveu não apenas uma denominação, mas uma verdadeira teoria da transvanguarda, em que ideias como o fim da narrativa linear, da noção de progresso, entre outras, apareciam. Para esta autora, Oliva afirmava que até a década de 1970, a arte de vanguarda havia operado uma espécie de darwinismo linguístico, do qual a arte da transvarguarda se pretendia liberada. Desse modo, “sublinhava uma nova subjetividade do artista, tanto no prazer de suas pulsões e imaginários privados como no reencontro com a matéria da pintura (…). Junto ao hedonismo, o nomadismo era a atitude básica do artista transvanguardista, entendida como a possibilidade de transitar livremente fora de todos os territórios, sem nenhum impedimento” (USUBIAGA, 2012:34). Desse modo, termos como transitoriedade, apropriação, ecletismo, niilismo ativo e hedonismo definem as obras transvanguardistas, fenômeno que se estende até a América Latina durante a década de 1980.

Já o neo-expressionismo alemão realiza uma tentativa “sincera”, nas palavras de Foster, de retomar o expressionismo o que, para o autor, se revela um ato paradoxal visto que as condições sociais que tornavam uma arte crítica na Alemanha da primeira guerra já não são as mesmas. É como se os artistas tratassem o expressionismo não mais como um movimento histórico específico, mas como uma espécie de categoria essencial e natural, estabelecendo uma relação mística com a cultura alemã. Esse deslocamento temporal que não considera mudanças históricas fundamentais acaba por alienar das atuais formas de alienação engendradas pelo capital, diz Foster. E o que era “protesto protopolítico no expressionismo diante da sujeição converteu-se, no neo-expressionismo, numa exposição ideológica da subjetividade” (1996:73).

Ao ver esses dois movimentos como tentativas de recuperação de processos artísticos anteriores à década de 1960 que acabam por revelar-se acríticos, Foster parece aceitar a tese do fracasso da vanguarda que antes rejeitava em Bürger. Sendo assim, realiza uma analogia entre as vanguardas que, na década de 1920, provocaram becos sem saída artísticos, mas que retornaram como tentativas de reelaboração nos anos 1960. Essas tentativas, ao que parece, provocaram novos becos sem saída, a exemplo do minimalismo e conceitualismo, citados por Foster. Mas, para este autor, a reelaboração destes novos buracos no simbólico resultaram mais alienantes do que críticos. Nas palavras de Foster, “a nova arte internacional de figuração expressionística e a postura boêmia nos são vendida como um bálsamo após anos de abstração árida e de envolvimentos pós-estúdio.” Isso leva a que ele se pergunte “e se essa arte assinalasse uma alienação face à história e não um retorno a ela – uma aceitação da divisão cultural do trabalho (o papel do artista como um romântico, um homem de espetáculo, fornecedor de bens de prestígio) e uma legitimação da sujeição social e das tendências autoritárias do presente?” (1996:65)

Esta questão é respondida posteriormente por Foster como: sim, essa pretensa nova-antiga arte, uma espécie de regressão às formas anteriores da pintura e da escultura, é aistórico e alienante. Essa aparente nostalgia pela história, a qual, como diz Belting, parece uma tentativa de encontrar na pintura e escultura (Belting destaca as neo-expressionistas) um símbolo do pensamento contemporâneo, um espírito da época. Segundo este autor, trata-se de uma grande tentação de seguir essas palavras de ordem e construir novamente, a partir delas, a história da arte segundo seu decurso ordenado. Porém, essa alusão à história parece ser realizada apenas para descartá-la, afirma Foster. Uma tentativa de exibir uma liberdade diante da história que, em lugar de contestá-la e criticá-la, realiza um movimento ao mesmo tempo histérico e amnésico.

Porém, estas regressões à pintura, escultura, ao maneirismo acadêmico e até alusões a obra renascentista, não compõem todo o cenário complexo da década de 1980. Embora aparecessem determinando grande parte do movimento do mercado, dos seus agentes, instituições e eventos como Documentas, Bienais, não foram totalizantes. Havia ainda cenários em que tanto a Pop Art como a Arte Conceitual também coexistiam com essas novas formas, marcando um retorno ao visual desta última (além de uma, aparentemente nova, aliança com o mercado). A estas práticas conceituais, realizadas por volta de fins da década de 1980 e os anos 1990, Peter Osborne vai chamar como neo-conceituais. Como exemplo, cita a obra do artista Jeff Koons e suas esculturas de objetos comuns em que o kitsch aparece como característica mais evidente.

Mas esta não foi toda a produção de Arte Conceitual da época. A apropriação e a manipulação de imagens midiáticas ainda foi utilizada como estratégias com intenção crítica. O retorno ao visual desse período (segundo diagnóstico de Osborne) foi acompanhado por uma ênfase crescente na instalação como método de produção, o que resultou na instituição desta como gênero artístico no período dos anos 1980. Isso porque, segundo Osborne, “o marco conceitual contribuiu à definição da instalação, não mais no sentido da disposição de uma obra já existente, mas no sentido de uma produção in situ da obra, em relação direta a seu contexto específico” (2002:80).

Ou seja, vários artistas seguiram produzindo a partir do caminho aberto pela Arte Conceitual, criando ações e obras que desafiavam não tanto o status quo da arte, mas que reivindicavam agora a ampliação de um exame social, institucional e estético. Segundo Hal Foster, nesse momento de produção artística, em que as críticas e os desmoronamentos dos limites parece já haverem sido todos realizados, a preocupação primordial não é mais com as propriedades da arte tradicional ou modernista – com o refinamento do estilo ou a inovação da forma, nem com o sublime estético ou a reflexão ontológica sobre a arte. E, em suas palavras, “embora esteja alinhada com a crítica da instituição da arte baseada nas estratégias de apresentação do readymade duchampiano, não se envolve, como seus antecessores minimalistas se envolviam, com uma investigação epistemológica do objeto ou com uma interrogação fenomenológica até uma resposta subjetiva” (1996:140).

Desse modo, para Hal Foster, esse tipo de ação artística representa o que ele chama de “a mais provocativa arte norte-americana do momento presente” (período da década de 1980) e a situa em uma encruzilhada – das instituições de arte e da economia política, das representações de identidade sexual e de vida social. Essa produção assume que seu objetivo deve estar situado desse modo e coloca-se à espera desses discursos para depurá-los e expô-los ou para seduzir e extraviá-los. Em suma, “esse trabalho não põe entre parêntese a arte para um experimento formal ou perceptivo; em vez disso, procura suas filiações em relação a outras práticas (na indústria cultural e em outras partes); tende também a conceber seu tema de modo bem diferente” (1996:140). Ao reconhecer, na produção da década de 1980, ações que ativam a criticidade e continuam (e ampliam) as ações desconstrutivas e críticas da década de 1960, o autor escapa de cair na noção pessimista (e que, para ele, também é cínica) de que a arte nesse período perdeu toda a capacidade crítica e só pode ser pastiche e/ou cópia acrítica.

Desse modo, a tese de Foster de que ainda existe uma arte crítica na década de 1980 é baseada na prática de alguns artistas que ficaram conhecidos (grande parte deles) como segunda geração da Crítica Institucional. Retomando o diagnóstico feito por Foster (o da ampliação da crítica), há que se dizer que a prática da Crítica Institucional nos anos 1980 se amplia para, não só desvendar estruturas subjacentes nos museus, mas entendê-los como espaços produtores (e reprodutores) de formas de conhecimento e discursos (ideológicos) que são excludentes, desiguais ou economicamente determinados. Em sua segunda fase, a Crítica Institucional operava não apenas no desvelamento (e também), mas na interferência nos modos de produzir conhecimento existente nos museus.

Nesse momento de retomada, a questão da definição do que é Crítica Institucional se tornou mais evidente (e, acreditamos, também necessária). A necessidade vinha da própria prática que pedia novos questionamentos sobre o que é instituição – algo já iniciado pelos próprios artistas da primeira geração – e sobre a inserção em um outro contexto, agora de abertura para o neoliberalismo, financeirização da arte e processos de estabilização dos novos sujeitos emergidos nas lutas dos anos 1960 na arena política (feministas, movimentos negros e queers).

E foi a partir daí que a reflexão sobre a Crítica Institucional tomou corpo e começou a alargar seu campo para além da instituição como museu, galerias ou colecionadores. Se a primeira geração já se havia dado conta de que os artistas, eles mesmos, são também instituição, participam para sua existência, reprodução ou ruptura, a segunda geração desenvolve de maneira ainda mais ampla essa consciência, tornando o sujeito-artista e sua prática o fundamento da Crítica Institucional. A instituição agora é reconhecida como um conjunto de discursos e práticas que, se por um lado são autônomos (no sentido de que conformam seu próprio mundo), por outro estão em estreita conexão com outras instituições sociais que o modelam e conformam também.

Para Hal Foster, os artistas recentes enfatizam mais a manipulação econômica do objeto de arte – sua circulação e consumo como signo-mercadoria – do que sua determinação física pela moldura. Ou seja, escapam ao foco na moldura do museu que era enfatizada mais pela primeira geração. Porém, assim como os primeiros, eles procuram revelar o caráter definicional dos suplementos de arte, só que tendem a dar mais destaque ao que aparece como insignificante institucionalmente (o supervisto) do que ao transparente (o não visto) – isto é, as funções como o arranjo de pinturas em galerias, museus, escritórios, lares, e formas como o press-release e os convites para a exposição que, tido como triviais em termos de arte, de fato fazem muito para posicioná-la, determinar seu lugar, recepção, significado (1996:144).

Daí que foi possível para os artistas da segunda geração, como Andrea Fraser, Fred Wilson, Reneé Green, Lousie Lawler, Barbara Kruger, Allan McCollum - tidos como os mais citados -, iniciarem uma prática de questionamento que incluíam as discussões feministas, o pós-colonialismo, além da própria crítica ao apoio que as artes prestavam à ideologia neoliberal, através dos museus-empresas. Não somente o museu, ou o sistema de arte, estão em jogo nas práticas críticas desses artistas, mas posições e definições de sujeitos, uma episteme que subjaz não apenas as relações museológicas que se estabelecem, mas também relações sociais que determinam lugares, seguindo uma hierarquização quase sempre desvantajosa para negros, mulheres, homossexuais. O museu é o lugar de explicitação dessas relações sob determinadas práticas. A visão do outro (especialmente o negro) como exótico ou selvagem, a posição da mulher como objeto passivo da representação (especialmente de seu corpo) e quase nunca como agente no fazer representativo; enfim, o questionamento do outro como objeto, do museu como lugar do espetáculo e ambiente privilegiado da crescente financeirização da arte (e do artista). A revelação e questionamento de uma episteme colonialista e instrumentalizadora são os marcos críticos dessa nova fase da Crítica Institucional (e que continuam até hoje no trabalho de alguns dos artistas citados, especialmente Andrea Fraser).

Porém, a aceitação dos trabalhos dessa nova geração não foi pacífica. Alguns críticos veem nesse momento, uma tentativa de ampliação da Crítica Institucional que acabou por reificá-la mais. E uma dificuldade de aceitação que nos parece central nesses críticos é o fato de que essa nova geração modificou o entendimento do que é instituição, tornando-a generalizada. Entender essa noção ampliada, essa noção sociológica da instituição, parece tarefa difícil pra muitos críticos, que acabam, por conta disso, sem conseguir enxergar um outro lado da crítica dessa segunda geração em suas práticas e escritos.

Por exemplo, o crítico Brian Holmes (2007), reconhece, na geração dos anos 1980, a entrada das questões levantadas pelo feminismo e a historiografia pós-colonial, mas acredita que esses artistas permanecem, em sua prática, presos à instituição, realizando o que ele acredita ser uma espécie de impotência transformadora. Referindo-se mais diretamente ao trabalho da artista Andrea Fraser (quem irá desenvolver um conceito de instituição a partir da teoria sociológica bourdieusiana), Holmes diz que “a mistura entre a análise determinística de Bourdieu sobre a clausura dos campos socio-profissionais, com uma confusão entre a jaula weberiana e o desejo foucaultiano de distanciar-se de si mesmo, se internaliza em um tipo de governamentalização do fracasso, que impede ao sujeito fazer outra coisa que não seja contemplar sua própria prisão psíquica, mesmo compensado com alguns luxos estéticos” (2007:04).

Ao encontrar a Crítica Institucional como imersa em uma realidade circular e reificadora, Holmes sente a necessidade de recorrer a algumas ferramentas conceituais, a exemplo da noção de transversalidade, elaborada pela escola francesa de análise institucional (particularmente, Guatarri), para pensar em possíveis saídas. Para o autor, este conceito ajuda a teorizar os agenciamentos heterogêneos que conectam atores e recursos do circuito artístico com projetos e experimentos que não se esgotam no interior de dito circuito, mas que se estendem a outros lugares. “Se se definem como arte os projetos que daí resultam, dita denominação não carece de ambiguidades, já que se baseiam em uma nova circulação entre disciplinas que, com frequência, incorpora uma verdadeira reserva crítica de posições marginais ou contraculturais – movimentos sociais, associações políticas, universidades ou cátedras autônomas – que não podem reduzir-se a uma institucionalidade omniabarcante” (2007:05).

Desse modo, Holmes parece querer enfatizar a prática coletiva, em rede e fora de definições institucionais e disciplinares como uma possível terceira geração da Crítica Institucional (e/ou como uma prática de crítica possível no contexto artístico e social atual). E é compreensível sua tentativa de entender não só o conceito de campo, mas também o de mundo da arte criado por Arthur Danto, como fechado, determinístico e, para ele, até fetichista, visto que pretende realizar uma compreensão da arte como operando em um campo ampliado, fora da estética. Mas aqui acaba por reproduzir, realizando uma reflexão epistemologicamente distinta (usando a teoria de Bruno Latour como base), novamente a ideia de reaproximação de arte e vida da vanguarda. A completa eliminação de instituições e definições, a imersão da arte no ativismo político, em outras disciplinas, implica, como consequência, a eliminação da ideia de arte. E isso é o que ele pretende aparentemente.

Desse modo, ele só consegue ver as ações de Crítica Institucional realizadas nos anos 1980 como algo “sem nenhum tipo de relação antagonista, nem sequer agonística, com o status quo, sem nenhum afã de modificá-lo” (2007:06). E ao colocar a ação dos artistas dos anos 1960 como um exame crítico necessário, e ver a dos artistas dos 1980 como uma espécie de aceitação da condição institucional por não desmoronar de vez o que os anteriores iniciaram - a ideia de instituição-, Holmes, em nossa opinião, se coloca em uma espécie de encruzilhada. Parece-nos que há uma certa ingenuidade nessa ideia de Holmes, visto que parece não levar em consideração que essas operações, invariavelmente, estarão no campo, dentro dele, serão absorvidas por ele, ampliando-o ainda mais. E o que fazer dessa crítica proposta por ele quando seja arte? Quando seja estética? Quando esteja no campo novamente? Há saída nessa sua proposta? Talvez as práticas de Crítica Institucional poderiam ajudar a responder essas questões.

O próprio Peter Osborne não parece muito entusiasmado com a produção que identifica como sendo neo-conceitual. Deste modo, dá a impressão de que, a exemplo de outros como o próprio Benjamin Buchloh e até mesmo Lucy Lippard, parece tentado a ver a Arte Conceitual como constituindo um momento histórico único e específico na arte, o qual não se pode retomar – ao menos não com sinceridade. Porém, entende que o desafio crítico da Arte Conceitual segue vigente na arte contemporânea. Mas não cita muitos exemplos de ações nem de projetos que permanecem críticos nesse período o qual, para ele, está irremediavelmente tomado pelo mercado, além da anteriormente citada emergência da instalação como ação artística conceitual efetiva nesse período. Mas acredita que a busca de rigor intelectual da Arte Conceitual pode prover uma mirada crítica ao que se produz atualmente em seu nome (e a partir dos seus métodos). Em suas palavras:

A arte conceitual é uma categoria dos anos 1960, e os anos 1960 são um território em disputa por razões que vão mais além da história da arte. (...) Uma das causas é que a vanguarda dos anos 1960 redescobriu e readaptou alguns procedimentos básicos inventados pela vanguarda europeia entre as duas guerras mundiais (Dada, Surrealismo, Futurismo, Construtivismo), sob novas condições sociais e artísticas. No processo, transformou seus significados. A arte conceitual forma um vínculo crucial com uma particular história cultural e política, o que Jeff Wall chamou de o sonho de um modernismo com conteúdo social, que continua até nossos dias. Para outros, estes sonho está acabado. Fica também a questão sobre o papel das estratégias conceituais na arte atual. Nos anos 1990, o mundo da arte internacional esteve dominado por um conjunto formalmente diverso de objetos e práticas pós-conceituais que combinam a herança da arte dos anos 1960 com as novas orientações do mercado e a antipatia sobre a teoria que distingui a reação contra as vanguardas nos anos 1980. A busca de rigor intelectual da arte conceitual, em sua investigação sobre o que Rosalind Krauss chamou de condição pós-meio, pode nos prover de um ponto de vista crítico desde o qual deveria ser julgada a arte do presente. Inversamente, os novos usos das estratégias conceituais na arte recente dão às obras canônicas dos anos 1960 e 1970 um novo relevo” (2002:17).

Aqui, para mediar essas críticas, é importante ter em mente o que diz Hal Foster sobre as estratégias da própria vanguarda, as quais, para ele, são mais performáticas que literais e uma ideia da história como não-essencial, definitiva e irrecuperável. Essa consciência da história na pós-modernidade levará, sim, a realização de apropriações que serão mais favoráveis a um mercado ávido por novidade. Porém, a crítica também não é uma dimensão que ocorre uma única vez e de uma mesma forma.

As novas condições do campo artístico dadas através da emergência da arte contemporânea neste, seguida pelas transformações realizadas pelas vanguardas e a ampliação pós-moderna, fazem emergir outras formas de crítica, as quais as vezes não parecem muito evidentes aos críticos e historiadores. Se as apropriações aparecem como pastiche ou retomadas problemáticas, algumas outras realizam o mesmo jogo na aparência, mas também estão inserindo o ruído e o questionamento no interior deste campo altamente ampliado, pluralizado e diversificado. São agentes duplos que jogam o jogo da instituição e do mercado (e são vistos por alguns críticos, como Holmes, como sendo inócuos ou, até mesmo, masoquistas), mas a tensionam desde dentro, visto que sabem que esta tem o poder de fagocitação bastante ampliado atualmente, principalmente depois do discurso pós-modernista validar uma espécie de “vale tudo”. A arte contemporânea não é um gênero apenas. É também resultado de um discurso, de uma disputa ideológica no interior do campo da arte que resultou na mudança do papel de agentes, na configuração das instituições e exige do público e dos críticos uma nova postura diante dessa produção. Dentro deste contexto, também a ação crítica passou por transformações importantes e precisa ser melhor observada.