quarta-feira, 17 de junho de 2015

Grupo Fluxus: um breve preâmbulo desde Walter Zanini


Texto Inédito

Quando se pesquisa e se reflete sobre a história recente do campo da arte contemporânea, é impossível ignorar a importância e a presença do Grupo Fluxus. As práticas realizadas pelos artistas que dele fizeram parte irão influenciar em vários aspectos as práticas conceituais posteriores: a performance e o happening, os usos de novas tecnologias midiáticas, o questionamento social e político presente nas obras, o compartilhamento e o trabalho em rede, são algumas das características do Fluxus que poderão ser bastante encontradas em vários trabalhos realizados no período de fins dos anos 1960 e década de 1970 (e até em vários trabalhos produzidos atualmente).

Segundo Walter Zanini (2003), o Fluxus tem fontes de inspiração complexas e diversas, sendo possível destacar: o futurismo italiano (especialmente Luigi Russolo e seus experimentos com o ruído); o construtivismo russo da Frente de Esquerda das Artes (no que tange a uma certa ideologia Fluxus de comprometimento social da arte); o músico e performer John Cage (que ampliará a investigação musical até o nível da performance e da anulação da composição para enfatizar o som aleatório).

Emergindo em um período entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, os artistas participantes de Fluxus, especialmente o seu mentor e maior organizador, George Maciunas (lituano radicado em Nova Iorque), estiveram conectados com o período que Foster chama de primeiro retorno vanguardista, ou seja, momento em que as questões da vanguarda eram retomadas per si na tentativa de realizar um novo questionamento da instituição arte do período. Essa característica aparece de modo mais claro no discurso de Maciunas, destacado por Zanini. Segundo este autor, "Maciunas pretendia, acima de tudo, na atmosfera poética do trabalho que foi iniciador, uma arte feita de simplicidade, antiintelectual, que desfizesse a distância entre artista e não-artista, uma arte em estreita conexão com a normalidade da vida e segundo princípios coletivos e finalidades visceralmente sociais” (2003:12).

Desse modo, nos manifestos escritos por Maciunas, estava presente o questionamento do artista enquanto produtor privilegiado, o que sugeria a proposta de fim da categoria artista (ou seja, a integração total do fazer artístico com o fazer prático da vida); assim como também rejeitava o objeto de arte como um bem não-funcional a ser vendido e meio de vida para um artista e em favor de uma produção antiindividualizada. E assumir a posição contrária ao sistema artístico imperante, tinha que incluir os próprios meios de expressão de Fluxus: concertos (como eram chamados os happenings realizados pelos artistas), publicações, arte correio, videoarte, etc. Estas ações eram, na melhor das hipóteses, consideradas transitórios (uns poucos anos) e temporárias. Ou seja, estariam presentes e seriam realizadas até o momento em que as belas artes pudessem ser totalmente banidas (ao menos em suas formas institucionais) e os artistas encontrassem outra ocupação.

O nome de batismo do grupo, dado por Maciunas, foi bem representativo de como o Fluxus atuou. Escolhido do latim, a palavra que significa “mudança contínua”, “estado não-determinado”, “flutuante” representa bem o que foi o grupo, uma comunidade de artistas espalhados por várias partes do mundo (especialmente Estados Unidos e Europa) que contribuíam com distintos projetos e ações, reunidos em rede (uma das primeiras conexões em rede realizadas antes da internet, foi dos artistas do grupo Fluxus reunidos em torno da mail art).

O projeto, desde o princípio desterritorializado, iniciou em Nova Iorque, em início da década de 1960, quando artistas se reuniam na galeria de Maciunas (só para lembrar, ele mesmo um desterritorializado). Segundo ainda Zanini, a AG Galery converteu-se, “em 1961, por breve tempo, em núcleo de conferências e performances musicais (ou concertos, como eram ironicamente nomeadas)” (2003:12). Nessas reuniões, estavam presentes artistas como La Monte Young, Dick Higgins, Toshi Ichiyanagi, Yoko Ono, Al Hansen, Walter de Maria, Jackson Mac Low, Ray Johnson, Henry Flint, Philip Corner, Richard Maxfield (que foi professor de Maciunas), além de John Cage, uma espécie de mentor e mestre de vários destes artistas. Nessas ocasiões, “rememorará depois Maciunas, fazia-se tudo o que Fluxus fez mais tarde, porém sem utilizar esse nome"(2003:12).

Nessa mesma época, Maciunas acabou obrigado a ir para a Alemanha, em finais de 1961, e levou consigo um numeroso material entre partituras e outros documentos os quais esperava publicar. Nessa época, iniciou um projeto de uma revista para a qual pôs o nome de Fluxus. Porém, sem dinheiro para realizar as publicações que desejava, aproveitou as partituras para realizar festivais em Colônia, na Alemanha (onde estava residindo), contando com a participação de vários artistas que conheceu durante sua estadia na Alemanha. Entre eles estava Nam June Pake (conhecido também por seus experimentos com televisores) e Wolf Vostell.

A partir destes festivais, surgiu o que seria depois nomeado de Grupo Fluxus. Zanini relata que a “certidão de nascimento” do grupo foi a multiperformance Fluxus Internationale Festpiele Neuester Musik (Festival Internacional Fluxus de Música Novíssima), realizada no salão de festas do Museu do Estado de Wiesbaden, entre 1 e 23 de setembro de 1962. Constavam nesse projeto 14 concertos de músicos e artistas de diversas nacionalidades, ativos em dois continentes. Segundo Zanini, "o grupo fez, assim, seu aparecimento como fruto de uma internacionalização de propósitos. As performances tinham sua base na música ou antimúsica que criavam com revolucionário caráter teatral, visual e sonoro, através de ações em que além de Cage, havia a influência dos rumores de Luigi Russolo” (2003:13).

Após este primeiro festival, se seguiram vários outros, realizados em distintos lugares da europa, desde Londres, como Dusseldorf, Copenhague, Paris, Estocolmo, Oslo, Amsterdã-Haia e Nice, entre 1962 e 1963. Nesses seguidos eventos, foram agregados novos nomes e uma rede de núcleos de Fluxus foi se formando. Somente a partir de 1964 que os concertos serão realizados também em Nova Iorque. Todos esses eventos levaram a que a comunidade artística em torno do Fluxus fora bastante ampliada nos anos 1960. E apesar da óbvia maioria de estadunidenses e europeus, houve numerosa participação de artistas japoneses (radicados em Nova Iorque ou mantendo relações pelo núcleo de Tóquio), além do coreano Nam June Paik. Na América do Sul, Fluxus contou com associados como Mauro Kagel, na Argentina e Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Sílvio Hansen, Ypiranga Filho e outros, no Brasil (mais especificamente, no Recife). Os associados de Fluxus distribuíam-se ainda por numerosos países do leste europeu (como na então Checoslováquia de Mila Knizák).

Sendo territorialmente difuso, Fluxus irá se caracterizar também por uma variedade de ações e meios utilizados pelos artistas que compunham a rede. O happening será uma das principais formas de expressão artística do grupo, visto sua vinculação inicial em torno dos concertos realizados por Maciunas em que performance (realização de um ato cênico) e o uso de objetos cotidianos para a obtenção de sons, eram destaques. E como happenings que são, diz Zanini, “os concertos Fluxus tinham antecedentes nas vanguardas históricas e, em tempo mais recente, na conhecidíssima experiência multidisciplinar de Untitled Event (Evento Sem Título) de Cage, em Black Mountain College (1952) e no considerado primeiro happening no ocidente, em 1959, de Kaprow, artista próximo ao Grupo Fluxus em seus inícios” (2003:17). É importante também ressaltar a relação de Fluxus com a atividade performática desenvolvida no Japão por grupos de artistas e, sobretudo, pelo Grupo Gutai, na segunda metade da década de 1950.

As práticas de Fluxus porém não estiveram restritas ao evento e ao happening. A partir dos concertos e dos experimentos com música de alguns artistas, veio a exploração de outras tecnologias como o vídeo. O artista Nam June Paik, por exemplo, conhecido por seu um dos primeiros a experimentar a televisão como uma linguagem artística, extrapola suas pesquisas em música eletrônica, realizadas junto com Stockhausen em fins dos anos 1950 na Alemanha, e começa a realizar videoarte. Seu primeiro filme, conhecido como Zen for Film (1962) trata-se de 23 minutos de fita virgem. Este artista é considerado, inclusive, o inventor da videoarte, junto a outro participante de Fluxus, Wolf Vostell.

Outra característica importante de Fluxus destacada no início era o forte teor de intervencionismo social implícito no discurso do grupo, especialmente de Maciunas. Apesar desse projeto de intervenção social direta não ter sido exitoso (nesse sentido, é como se a tentativa de reunir arte e vanguarda tivesse falhado, dando razão a autores como Burger), vários trabalhos foram impactados por esse ideal. Um dos exemplos mais fortes está em práticas realizadas por artistas participantes de Fluxus em que o exame da condição da mulher na sociedade moderna tomavam forma. Antes mesmo do desencadeamento dos movimentos feministas – que, no final dos anos 1960, irão eclodir com força-, uma série de performances de Alison Knowles, Yoko Ono, Shigeko Kubota, Mieko Chiomi, entre outras marcaram fortemente a discussão sobre o lugar da mulher na arte e na sociedade de maneira geral. Uma das mais emblemáticas desse período é a performance de Kubota, Vagina Painting (1965), em que a artista realiza um quadro expressionista pintando com um pincel preso à sua vagina.

Falta ainda mencionar a prática da mail art, introduzida no Fluxus pelo artista Ray Johson. Esta será uma das ações responsáveis por ampliar mais a rede e inserir no grupo artistas de lugares ainda mais distantes, como no caso da América do Sul. Conectados desde vários continentes e países através da troca de cartões-postais contendo trabalhos artísticos, estes artistas formarão algo como uma conexão em rede somente equiparável à reliazada atualmente através da internet. O Brasil esteve presente nessa rede através da atuação dos artistas Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Sílvio Hansen, Ubirajara Lisboa, entre outros que, conectados à rede Fluxus, trocavam correspondência com o resto do mundo, divulgado trabalhos de poesia visual. A participação deste artistas no Fluxus, a produção de arte-correio e poesia visual realizada nesse período por estes artistas é um dos capítulos mais interessantes da história da arte no Recife, o qual pretendemos explorar com mais profundidade nos próximos textos.

Referência:
ZANINI, Walter (2003). Atualidade de Fluxus. ARS (São Paulo); 2.3; 10-21.


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Racionalização e Estética: Max Weber e a sociologia da arte

Trecho de ensaio originalmente intitulado "Max Weber e o surgimento da sociologia da arte"


1. Racionalização e estética


Para chegar ao entendimento de como Weber relaciona estética com a racionalização, é preciso se deter a este conceito, na tentativa de delimitá-lo um pouco mais. Gabriel Cohn (1995), no prefácio ao Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, tenta resumir e sistematizar o que Weber está entendendo por racionalização (e as consequentes implicações disso). Para o autor:
No cerne do processo de diferenciação que imprime sua marca no mundo moderno, está um dado que, para além do mero aumento da complexidade estrutural, tem caráter significativo. É nesse ponto que encontra-se a raiz do processo de racionalização, naquilo que o vincula intrinsecamente à diferenciação. A racionalização é o processo que confere significado à diferenciação de linhas de ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação racional e enseja a sua crescente e, logo, irreversível expansão. Logo, o desencantamento do mundo de weber, pode ser lido como um aumento gradativo de nitidez de significados. (COHN in Weber, 1995:17)

Para Cohn, entender a racionalização é compreender os processos de significação – a capacidade de imputar sentido nas ações sociais. Razão, nesse caso, tem a ver não somente com cálculo, mas com capacidade de compreensão e diferenciação de sentidos. Como afirma Cohn, “racionalização é o processo que confere significado às diferentes linhas de ação” (1995:18). E para Weber, uma vez iniciado o processo de racionalização, se amplia a “nitidez de significados”, antes mesclados e indistintos. A ação racional, dessa maneira, tem a ver com a capacidade do agente de depurar esses significados e agir de acordo com eles (em cada uma das, agora, distintas esferas).

Dessa maneira, se a racionalização é esse processo de aumento da nitidez dos significados que opera a distinção entre as esferas, antes mescladas, de sentido, diferenciando-as, pode-se dizer, basicamente, que a estética começa a tomar consciência dos seus próprios significados, distinguido-se de outras esferas que antes estavam coladas nela (conferindo-lhe sentido), como a religião. Ou seja, a arte inicia o processo de entender seus próprios significados: a estética, a criação artística, as diferentes linguagens da arte, sem mais referir-se à religião ou à política para tal. Se antes era dado à arte pensar-se em conjunto com uma determinada configuração social (contribuindo para a manutenção de sua ordem ou para sua reprodução), com uma esfera religiosa e do culto mágico e/ou com uma dimensão do poder, a partir de sua autonomização, passa a pensar mais especificamente em suas próprias questões.

Quando, em meados do séc. XIX, poetas como Rimbaud, principalmente, e Baudelaire, por exemplo, iniciam um processo de reivindicação da arte pela arte, estão levando a um certo ápice esse processo descrito por Weber de racionalização da esfera artística. A arte autônoma é aquela livre das necessidades de representação do mundo e das vinculações ideológicas políticas e religiosas. É arte que pode falar dela mesma, e só falar dela mesma. Que não precisa ter uma função social a cumprir (seja de informar, seja de emancipar, seja de conformar a população). A arte pode ter sua própria racionalidade, se pensar e se significar a partir de sua própria esfera de existência e funcionar a partir de suas próprias regras e leis.

Esse processo de racionalização aqui, brevemente descrito, é melhor explicitado em Bourdieu (1996) em As Regras da Arte: gênese do campo literário. Este trabalho, que versa sobre a formação do campo literário na França, criado em oposição à uma arte mais ligada a uma ideologia política socialista e à outra mais ligada a uma ideologia burguesa, possui uma forte inspiração weberiana. A ideia de racionalidade não está aí explícita, mas a descrição de como os atores sociais se movimentam (agem) para formar o campo da arte, tem muito a ver com a ideia de uma ação racional que reconhece especificidades de uma esfera de existência e age de acordo com esses valores específicos, diferenciando-se e entrando em relação de afinidade ou tensão com outras esferas.

Desse modo, o surgimento da arte moderna é o marco que simboliza o auge desse processo de autonomização artística. A partir daí a arte começa a preocupar-se com suas próprias questões formais e a produção artística será cada vez mais voltada à questionar e problematizar suas próprias possibilidades enquanto linguagem (a escultura que problematiza sua função de monumento, a pintura que questiona sua relação de representação, a poesia que subverte a própria linguagem poética, entre outras ações). É característico da arte moderna a constante revolução, resultado do intenso processo de auto-problematização que empreende. As vanguardas artísticas, portanto, são fruto desse constante questionamento interno da arte, que a leva sempre a uma busca incessante por superar-se e por romper com suas próprias legalidades.

Contudo, essa autonomia da arte não é total e absoluta, visto que, para Weber (assim como para Bourdieu), as esferas autonomizadas estão em constante relação umas com as outras, seja de tensão (Weber não fala em conflito), seja de afinidade. Nesse ponto, torna-se fundamental perceber que, apesar de possuir sua própria legalidade, a arte não está alheia ao mundo. Está em seu interior e em tensão com outras esferas, como a econômica, a política e a religiosa, por exemplo.

Ou seja, para Weber, as diferentes esferas de existência, por abrigarem diferentes ações, estão pautadas, por isso, por distintas racionalidades. O que é racional na esfera da economia, por exemplo, não necessariamente é o racional no interior da esfera artística. Essa noção de distintas racionalidades é chave para entender como, através de Weber, se pode compreender as relações entre arte, política e economia, por exemplo.

O que guia o comportamento na esfera econômica é uma racionalidade de tipo mais utilitarista, o que Weber chama de racionalidade formal. Já esferas como a religiosa e a artística são guiadas por uma racionalidade de outra natureza, mais bem voltadas para valores, as quais Weber nomeia como racionalidade substantiva. O problema que se coloca para Weber é que: o próprio processo de diferenciação das esferas de existência impôs uma cisão na racionalidade também, a qual jamais poderá se reunir novamente. Ou seja, para Weber, não é possível uma ação duplamente orientada por valores e por cálculo de fins. Se o mundo não é racionalizável como um todo, não é possível que haja uma racionalidade abrangente que envolva essas diferenças que o processo de autonomização gerou.

Logo, a relação entre uma racionalidade substantiva e uma racionalidade formal (utilitarista) será sempre de tensão e de exclusão. Para Weber, é impossível que o “agente mantenha em foco nítido, simultaneamente, a ordem significativa dos objetivos de fato da ação e a dos valores” (1995:18). Ou seja, uma vez acionando numa esfera de existência cujos sentidos se orientem por uma racionalidade formal, o agente perde a nitidez de uma esfera mais valorativa e vice-versa. Em Weber, o caráter racional da ação é mobilizado pelo agente (não é inerente ao próprio objeto de ação). E se não se pode mobilizar mais de uma racionalidade ao mesmo tempo, as distintas racionalidades tornam-se inconciliáveis o que, para Weber, significa que não é possível uma racionalização total do mundo.

Nesse ponto, as questões entre arte autônoma e sociedade começam a se complicar. Tendo sua racionalidade própria, se poderia pensar que os agentes aí implicados estariam acionando a própria legalidade da esfera artística, a sua dimensão de valor estético, e, por isso, perdendo de vista a dimensão da racionalidade formal do mundo econômico ou político, por exemplo. Dessa maneira, a relação entre os artistas e essas outras esferas estaria sempre implicada em uma tensão.

A partir daí, se poderia explicar, por exemplo, porque os artistas de vanguarda estão sempre em desconexão (e em conflito) com as outras esferas sociais: porque a sua racionalidade parece irracional às outras esferas e, por outro lado, as outras racionalidades são questionadas como irracionais também. Se poderia, inclusive, pensar em como a arte moderna se colocou em uma situação de oposição à modernidade, estando sempre em uma relação ambígua de conflito e participação no interior desta a partir desta formulação weberiana das distintas racionalidades (e sua inevitável inconciliação).

2. Weber: limites e possibilidades de avanço no estudo da arte

Porém, ao observar os conflitos gerados no interior do campo da arte e dele com os outros campos (Bourdieu, 2007), observa-se que a tese das diferentes racionalidades torna-se insuficiente para dar conta das tensões que ocorrem. Isso porque essa própria tese das diferentes racionalidades acaba levando a uma compreensão total da racionalidade: a de que não há saída para a racionalidade formal.
Isso porque, se para Weber não há a possibilidade de uma racionalidade total, por outro lado a inconciliação de uma racionalidade substantiva com uma formal abre caminho para uma ideia do predomínio da segunda sobre a primeira. Ou seja, Weber acaba criando subsídios para um pensamento total sobre a racionalidade, visto seu próprio reconhecimento da redução da racionalidade substantiva nos atuais tempos. Essa tese pode ser vista de maneira mais formulada entre os teóricos da escola de Frankfurt, especialmente Adorno e Horckheimer (1985).

Para estes autores, a sociedade capitalista alcançou um nível de expansão da racionalidade instrumental jamais vista. Esta se ampliou para todos os níveis da vida, incluindo as esferas de valor, como a arte, e a do conhecimento, como a ciência. Essa é a base da ideia que desenvolvem de sociedade administrada, aquela na qual a expansão do controle econômico/instrumental alcançou todas as dimensões da vida.

O questionamento desses autores em relação à racionalidade vai no sentido de tomá-la como, desde sua origem, um processo que leva à auto-dominação. Em seu início, o processo do que eles chamam de “esclarecimento” (1985) é uma tentativa de dominação do outro (que é a natureza) que leva a um processo de auto-dominação. A razão para eles, é o mito da sociedade capitalista, reificando-a e colocando-a em uma dimensão mistificada/tecnicista a partir da qual domina desde a produção do conhecimento, até as estruturas de personalidades dos sujeitos, incidindo em várias áreas da vida. A esse respeito, fala Seyla Benhabib (1996):
(…) Adorno e Horkheimer, ao definirem as categorias de razão instrumental e racionalização, ampliando-as de forma dúbia para se referirem a processos sociais, à dinâmica da personalidade e a estrutura de sentidos culturais, indica uma superposição dos dois processos de racionalização que Weber procurara diferenciar (Benhabib, 1996:79).

Ou seja, a indiferenciação entre razão instrumental e de valor leva ao pensamento total de que todas as esferas estão dominadas por esta primeira. Claro que essa indiferenciação não foi realizada por Weber, mas suas ideias abrem caminho para essa noção, quando afirma que a tendência do capitalismo é rumar para a crescente burocratização (e instrumentalização).

O limite para essa ideia, no estudo da arte, é o de não permitir compreender relações mais complexas que se podem desenvolver entre uma razão instrumental, por um lado, e o nível da criação artística por outro. E isso porque a criação artística, em si, não pode ser entendida somente em termos de racionalidade, seja ela substantiva ou instrumental. Há elementos estéticos e subjetivos de criação artística que, talvez, sejam melhor observados em outros termos como o conceito de sensível, proposto por Jacques Rancière (2005).

No momento da criação, o artista mobiliza as noções estéticas e os discursos presentes na esfera de existência da arte de maneira totalmente racional, sempre objetivando algo ou fazendo conexões de sentido conscientes? Ou também age a partir de uma espécie de sensibilidade, de uma subjetividade que tem a ver com marcas e afetos que o exterior, o social, o campo da arte o imprimem? A questão é a de se é possível falar somente em processos racionais quando se está tratando de arte e de criação artística.

Mas com isso não estou querendo colocar a dimensão racional (da maneira como Weber a compreende) para fora da compreensão da arte. É claro que os artistas, ao darem sentidos aos seus trabalhos, estão operando de maneira consciente e, se assim se pode dizer, racional. Os próprios espectadores, ao também necessitarem da imputação de sentidos aos trabalhos que vêm, também agem de forma racional. Na atual configuração do campo artístico, os críticos de arte e os curadores são agentes fundamentais, pois manobram exatamente essa dimensão do sentido e do significado no interior deste. E já aqui, nessa questão, vemos uma outra insuficiência de Weber para entender, por exemplo, essa hierarquia dos sentidos (e da capacidade de dar sentido) existente no interior do campo da arte.

Só a noção de racionalidade e diferenciação, não ajuda a entender como se constituem hierarquias e jogos de poder no interior das esferas diferenciadas e entre elas e as outras. É aí que Bourdieu amplia a ideia Weberiana quando pensa nos campos. Porque estes são espaços sociais diferenciados, que possuem sua própria regra, mas que estão historicamente permeados por conflitos e por disputas de poder.

Aqui, os agentes não somente estão acionando a partir da mobilização de sentidos, mas agindo também motivados pela necessidade de legitimação, de maior reconhecimento, de acúmulo de capital e poder. Isso quer dizer que nem todos os agentes ocupam posições similares no interior dos campos e que essas diferenças posicionais levam a conflitos. Por exemplo, o artista e o curador ocupam posições diferenciadas, estando o último mais elevado em uma hierarquia de legitimação, sendo capaz de definir sentidos para as obras do primeiro e de contribuir, ou não, para o seu sucesso no interior do campo. Essas questões relacionadas à legitimação artística e à disputas por poder no interior do campo artístico interessam muito à sociologia da arte. Porém, há que se reconhecer que, apesar de Weber não fornecer instrumentos analíticos para tratá-las diretamente, foi o grande responsável pela formulação bourdieusiana da ideia de campos, essa sim fundamental para o estudo sociológico da arte atualmente.

3. Referências Bibliográficas

ADORNO, Teodor & HORKHEIMER, Max (1985). A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
BENHABIB, Seyla (1996). A Crítica da Razão Instrumental. In: Slavoj Zizek (org.) Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
BOURDIEU, Pierre (1996). As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Cia das Letras.
_________________(2007). A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, edusp.
COHN, Gabriel (1995). Como um hobby ajuda a entender um grande tema. In: Weber, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. São Paulo, Edusp.
KALBERG, Stephen (1994). Max Weber's Comparative-Historical Sociology. Chicago, The University of Chicago Press.
RANCIÈRE, Jacques (2005). A Partilha do Sensível. São Paulo, Editora 34.

WEBER, Max (1995). Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. São Paulo, Edusp.
____________(2004). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Cia das Letras.