Trecho de ensaio originalmente intitulado "Max Weber e o surgimento da sociologia da arte"
1.
Racionalização e estética
Para chegar ao entendimento de como Weber relaciona estética com a racionalização, é preciso se deter a este conceito, na tentativa de delimitá-lo um pouco mais. Gabriel Cohn (1995), no prefácio ao Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, tenta resumir e sistematizar o que Weber está entendendo por racionalização (e as consequentes implicações disso). Para o autor:
No cerne
do processo de diferenciação que imprime sua marca no mundo
moderno, está um dado que, para além do mero aumento da
complexidade estrutural, tem caráter significativo. É nesse ponto
que encontra-se a raiz do processo de racionalização, naquilo que o
vincula intrinsecamente à diferenciação. A racionalização é o
processo que confere significado à diferenciação de linhas de
ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação
racional e enseja a sua crescente e, logo, irreversível expansão.
Logo, o desencantamento do mundo de weber, pode ser lido como um
aumento gradativo de nitidez de significados. (COHN in Weber,
1995:17)
Para
Cohn, entender a racionalização é compreender os processos de
significação – a capacidade de imputar sentido nas ações
sociais. Razão, nesse caso, tem a ver não somente com cálculo, mas
com capacidade de compreensão e diferenciação de sentidos. Como
afirma Cohn, “racionalização é o processo que confere
significado às diferentes linhas de ação” (1995:18). E para
Weber, uma vez iniciado o processo de racionalização, se amplia a
“nitidez de significados”, antes mesclados e indistintos. A ação
racional, dessa maneira, tem a ver com a capacidade do agente de
depurar esses significados e agir de acordo com eles (em cada uma
das, agora, distintas esferas).
Dessa
maneira, se a racionalização é esse processo de aumento da nitidez
dos significados que opera a distinção entre as esferas, antes
mescladas, de sentido, diferenciando-as, pode-se dizer, basicamente,
que a estética começa a tomar consciência dos seus próprios
significados, distinguido-se de outras esferas que antes estavam
coladas nela (conferindo-lhe sentido), como a religião. Ou seja, a
arte inicia o processo de entender seus próprios significados: a
estética, a criação artística, as diferentes linguagens da arte,
sem mais referir-se à religião ou à política para tal. Se antes
era dado à arte pensar-se em conjunto com uma determinada
configuração social (contribuindo para a manutenção de sua ordem
ou para sua reprodução), com uma esfera religiosa e do culto mágico
e/ou com uma dimensão do poder, a partir de sua autonomização,
passa a pensar mais especificamente em suas próprias questões.
Quando,
em meados do séc. XIX, poetas como Rimbaud, principalmente, e
Baudelaire, por exemplo, iniciam um processo de reivindicação da
arte pela arte, estão levando a um certo ápice esse processo
descrito por Weber de racionalização da esfera artística. A arte
autônoma é aquela livre das necessidades de representação do
mundo e das vinculações ideológicas políticas e religiosas. É
arte que pode falar dela mesma, e só falar dela mesma. Que não
precisa ter uma função social a cumprir (seja de informar, seja de
emancipar, seja de conformar a população). A arte pode ter sua
própria racionalidade, se pensar e se significar a partir de sua
própria esfera de existência e funcionar a partir de suas próprias
regras e leis.
Esse
processo de racionalização aqui, brevemente descrito, é melhor
explicitado em Bourdieu (1996) em As Regras da Arte: gênese do
campo literário. Este trabalho,
que versa sobre a formação do campo literário na França, criado
em oposição à uma arte mais ligada a uma ideologia política
socialista e à outra mais ligada a uma ideologia burguesa, possui
uma forte inspiração weberiana. A ideia de racionalidade não está
aí explícita, mas a descrição de como os atores sociais se
movimentam (agem) para formar o campo da arte, tem muito a ver com a
ideia de uma ação racional que reconhece especificidades de uma
esfera de existência e age de acordo com esses valores específicos,
diferenciando-se e entrando em relação de afinidade ou tensão com
outras esferas.
Desse modo, o surgimento da arte moderna é o marco que simboliza o
auge desse processo de autonomização artística. A partir daí a
arte começa a preocupar-se com suas próprias questões formais e a
produção artística será cada vez mais voltada à questionar e
problematizar suas próprias possibilidades enquanto linguagem (a
escultura que problematiza sua função de monumento, a pintura que
questiona sua relação de representação, a poesia que subverte a
própria linguagem poética, entre outras ações). É característico
da arte moderna a constante revolução, resultado do intenso
processo de auto-problematização que empreende. As vanguardas
artísticas, portanto, são fruto desse constante questionamento
interno da arte, que a leva sempre a uma busca incessante por
superar-se e por romper com suas próprias legalidades.
Contudo, essa autonomia da arte não é total e absoluta, visto que,
para Weber (assim como para Bourdieu), as esferas autonomizadas estão
em constante relação umas com as outras, seja de tensão (Weber não
fala em conflito), seja de afinidade. Nesse ponto, torna-se
fundamental perceber que, apesar de possuir sua própria legalidade,
a arte não está alheia ao mundo. Está em seu interior e em tensão
com outras esferas, como a econômica, a política e a religiosa, por
exemplo.
Ou seja, para Weber, as diferentes esferas de existência, por
abrigarem diferentes ações, estão pautadas, por isso, por
distintas racionalidades. O que é racional na esfera da economia,
por exemplo, não necessariamente é o racional no interior da esfera
artística. Essa noção de distintas racionalidades é chave para
entender como, através de Weber, se pode compreender as relações
entre arte, política e economia, por exemplo.
O que guia o comportamento na esfera econômica é uma racionalidade
de tipo mais utilitarista, o que Weber chama de racionalidade formal.
Já esferas como a religiosa e a artística são guiadas por uma
racionalidade de outra natureza, mais bem voltadas para valores, as
quais Weber nomeia como racionalidade substantiva. O problema que se
coloca para Weber é que: o próprio processo de diferenciação das
esferas de existência impôs uma cisão na racionalidade também, a
qual jamais poderá se reunir novamente. Ou seja, para Weber, não é
possível uma ação duplamente orientada por valores e por cálculo
de fins. Se o mundo não é racionalizável como um todo, não é
possível que haja uma racionalidade abrangente que envolva essas
diferenças que o processo de autonomização gerou.
Logo, a relação entre uma racionalidade substantiva e uma
racionalidade formal (utilitarista) será sempre de tensão e de
exclusão. Para Weber, é impossível que o “agente mantenha em
foco nítido, simultaneamente, a ordem significativa dos objetivos de
fato da ação e a dos valores” (1995:18). Ou seja, uma vez
acionando numa esfera de existência cujos sentidos se orientem por
uma racionalidade formal, o agente perde a nitidez de uma esfera mais
valorativa e vice-versa. Em Weber, o caráter racional da ação é
mobilizado pelo agente (não é inerente ao próprio objeto de ação).
E se não se pode mobilizar mais de uma racionalidade ao mesmo tempo,
as distintas racionalidades tornam-se inconciliáveis o que, para
Weber, significa que não é possível uma racionalização total do
mundo.
Nesse ponto, as questões entre arte autônoma e sociedade começam
a se complicar. Tendo sua racionalidade própria, se poderia pensar
que os agentes aí implicados estariam acionando a própria
legalidade da esfera artística, a sua dimensão de valor estético,
e, por isso, perdendo de vista a dimensão da racionalidade formal do
mundo econômico ou político, por exemplo. Dessa maneira, a relação
entre os artistas e essas outras esferas estaria sempre implicada em
uma tensão.
A partir daí, se poderia explicar, por exemplo, porque os artistas
de vanguarda estão sempre em desconexão (e em conflito) com as
outras esferas sociais: porque a sua racionalidade parece irracional
às outras esferas e, por outro lado, as outras racionalidades são
questionadas como irracionais também. Se poderia, inclusive, pensar
em como a arte moderna se colocou em uma situação de oposição à
modernidade, estando sempre em uma relação ambígua de conflito e
participação no interior desta a partir desta formulação
weberiana das distintas racionalidades (e sua inevitável
inconciliação).
2. Weber: limites e possibilidades de avanço no estudo da arte
Porém, ao observar os conflitos gerados no interior do campo da
arte e dele com os outros campos (Bourdieu, 2007), observa-se que a
tese das diferentes racionalidades torna-se insuficiente para dar
conta das tensões que ocorrem. Isso porque essa própria tese das
diferentes racionalidades acaba levando a uma compreensão total da
racionalidade: a de que não há saída para a racionalidade formal.
Isso porque, se para Weber não há a possibilidade de uma
racionalidade total, por outro lado a inconciliação de uma
racionalidade substantiva com uma formal abre caminho para uma ideia
do predomínio da segunda sobre a primeira. Ou seja, Weber acaba
criando subsídios para um pensamento total sobre a racionalidade,
visto seu próprio reconhecimento da redução da racionalidade
substantiva nos atuais tempos. Essa tese pode ser vista de maneira
mais formulada entre os teóricos da escola de Frankfurt,
especialmente Adorno e Horckheimer (1985).
Para estes autores, a sociedade capitalista alcançou um nível de
expansão da racionalidade instrumental jamais vista. Esta se ampliou
para todos os níveis da vida, incluindo as esferas de valor, como a
arte, e a do conhecimento, como a ciência. Essa é a base da ideia
que desenvolvem de sociedade administrada, aquela na qual a expansão
do controle econômico/instrumental alcançou todas as dimensões da
vida.
O questionamento desses autores em relação à racionalidade vai no
sentido de tomá-la como, desde sua origem, um processo que leva à
auto-dominação. Em seu início, o processo do que eles chamam de
“esclarecimento” (1985) é uma tentativa de dominação do outro
(que é a natureza) que leva a um processo de auto-dominação. A
razão para eles, é o mito da sociedade capitalista, reificando-a e
colocando-a em uma dimensão mistificada/tecnicista a partir da qual
domina desde a produção do conhecimento, até as estruturas de
personalidades dos sujeitos, incidindo em várias áreas da vida. A
esse respeito, fala Seyla Benhabib (1996):
(…)
Adorno e Horkheimer, ao definirem as categorias de razão
instrumental e racionalização, ampliando-as de forma dúbia para se
referirem a processos sociais, à dinâmica da personalidade e a
estrutura de sentidos culturais, indica uma superposição dos dois
processos de racionalização que Weber procurara diferenciar
(Benhabib, 1996:79).
Ou
seja, a indiferenciação entre razão instrumental e de valor leva
ao pensamento total de que todas as esferas estão dominadas por esta
primeira. Claro que essa indiferenciação não foi realizada por
Weber, mas suas ideias abrem caminho para essa noção, quando afirma
que a tendência do capitalismo é rumar para a crescente
burocratização (e instrumentalização).
O
limite para essa ideia, no estudo da arte, é o de não permitir
compreender relações mais complexas que se podem desenvolver entre
uma razão instrumental, por um lado, e o nível da criação
artística por outro. E isso porque a criação artística, em si,
não pode ser entendida somente em termos de racionalidade, seja ela
substantiva ou instrumental. Há elementos estéticos e subjetivos de
criação artística que, talvez, sejam melhor observados em outros
termos como o conceito de sensível, proposto por Jacques Rancière
(2005).
No
momento da criação, o artista mobiliza as noções estéticas e os
discursos presentes na esfera de existência da arte de maneira
totalmente racional, sempre objetivando algo ou fazendo conexões de
sentido conscientes? Ou também age a partir de uma espécie de
sensibilidade, de uma subjetividade que tem a ver com marcas e afetos
que o exterior, o social, o campo da arte o imprimem? A questão é a
de se é possível falar somente em processos racionais quando se
está tratando de arte e de criação artística.
Mas
com isso não estou querendo colocar a dimensão racional (da maneira
como Weber a compreende) para fora da compreensão da arte. É claro
que os artistas, ao darem sentidos aos seus trabalhos, estão
operando de maneira consciente e, se assim se pode dizer, racional.
Os próprios espectadores, ao também necessitarem da imputação de
sentidos aos trabalhos que vêm, também agem de forma racional. Na
atual configuração do campo artístico, os críticos de arte e os
curadores são agentes fundamentais, pois manobram exatamente essa
dimensão do sentido e do significado no interior deste. E já aqui,
nessa questão, vemos uma outra insuficiência de Weber para
entender, por exemplo, essa hierarquia dos sentidos (e da capacidade
de dar sentido) existente no interior do campo da arte.
Só a
noção de racionalidade e diferenciação, não ajuda a entender
como se constituem hierarquias e jogos de poder no interior das
esferas diferenciadas e entre elas e as outras. É aí que Bourdieu
amplia a ideia Weberiana quando pensa nos campos. Porque estes são
espaços sociais diferenciados, que possuem sua própria regra, mas
que estão historicamente permeados por conflitos e por disputas de
poder.
Aqui,
os agentes não somente estão acionando a partir da mobilização de
sentidos, mas agindo também motivados pela necessidade de
legitimação, de maior reconhecimento, de acúmulo de capital e
poder. Isso quer dizer que nem todos os agentes ocupam posições
similares no interior dos campos e que essas diferenças posicionais
levam a conflitos. Por exemplo, o artista e o curador ocupam posições
diferenciadas, estando o último mais elevado em uma hierarquia de
legitimação, sendo capaz de definir sentidos para as obras do
primeiro e de contribuir, ou não, para o seu sucesso no interior do
campo. Essas questões relacionadas à legitimação artística e à
disputas por poder no interior do campo artístico interessam muito à
sociologia da arte. Porém, há que se reconhecer que, apesar de
Weber não fornecer instrumentos analíticos para tratá-las
diretamente, foi o grande responsável pela formulação
bourdieusiana da ideia de campos, essa sim fundamental para o estudo
sociológico da arte atualmente.
3.
Referências Bibliográficas
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Dialética do Esclarecimento.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
BENHABIB,
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In: Slavoj Zizek (org.) Um
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Rio de Janeiro: Contraponto.
BOURDIEU,
Pierre (1996). As
Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário.
São Paulo, Cia das Letras.
_________________(2007).
A
Distinção: crítica social do julgamento.
São Paulo, edusp.
COHN,
Gabriel (1995). Como
um hobby ajuda a entender um grande tema.
In: Weber, Max. Os
Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música.
São Paulo, Edusp.
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Stephen (1994). Max Weber's Comparative-Historical Sociology.
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Jacques (2005). A
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São Paulo, Editora 34.
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Max (1995). Os
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São Paulo, Edusp.
____________(2004).
A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
São Paulo, Cia das Letras.
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