Texto inédito
Se
os artistas iniciaram, no século XIX, um movimento de criar seus próprios espaços
de difusão e produção, como passa a se configurar então o campo
da arte moderna? Quais serão seus marcos difusores e legitimadores
de discursos no interior do campo? Ou seja, quem eram os agentes e
quais instituições foram criadas para fazer circular, legitimar e
reproduzir estes discursos autonomistas na arte? Pensando
numa
possível
resposta a essas questões, um caso exemplar vêm à mente: o Museu de Arte
Moderna de Nova York. Esta instituição é considerada
paradigmática de um modelo de
instituição voltado para a arte moderna, funcionando como difusora
de padrões e
discursos legitimadores sobre esse modo de produção artística.
Segundo
o autor Christoph Grunneberg, em seu ensaio The
Modern Art Museum (1999),
O Museu de Arte Moderna de Nova York foi o primeiro museu devotado
exclusivamente à arte moderna, e sua coleção é considerada a mais
abrangente do mundo. Para Grunneberg, desde 1929, “o MOMA tem
desempenhado um papel crucial na definição do cânone modernista e
na formação da maneira como a arte moderna é vista e entendida”
(GRUNNEBERG, 1999:32). Deste
modo, o
famoso MOMA,
tido como um dos marcos institucionais da produção moderna
no início do século XX, rapidamente define-se como centro de
difusão artística e ideológica, tornando-se uma referência
mundial na exibição da arte moderna. Será
esta instituição uma das grandes responsáveis pela difusão e
constituição de
uma tipologia museográfica para as exposições de arte moderna,
conhecida pelo nome de Cubo
Branco.
Este
modelo
convencionou uma cenografia expográfica
neutra, feita de paredes brancas, chão
de madeira ou com tapetes cinzas, pinturas penduradas com grande
espaçamento entre uma e outra e em formato linear e esculturas
expostas sempre ao centro das salas, com grande espaço em volta para
a sua contemplação ideal.
A partir daí, este
paradigma irá
impor-se como o ideal para a exposição de arte moderna por todo o
mundo.
Logo
no início de sua criação, o MOMA
ainda possuía
uma estrutura conservadora, no sentido de ainda não pensar em
espaços específicos para a produção moderna, já em plena
constituição no período. A primeira mostra, em 1929, foi sobre
Cezánne e Gauguin. A exposição
“Armory Show”, realizada em seguida, foi considerada a primeira
grande mostra internacional do MOMA,
com características comerciais e de feira de arte bastante
marcantes.
Em
1939,
o museu inaugura
sua nova sede
e, aí, começa a estruturar-se como um museu de arte moderna de
fato.
Segundo
Grunnenberg, a
identidade pública
do MOMA passará
a estar conectada
ao
seu
novo
edifício,
localizado
na rua West 53, em Manhattan. A
partir tanto
do
formato das mostras, como das
políticas de acervo e ideias empresariais que
o permearam,
através das quais a instituição passa a ser colocada
como competitiva
no mercado (já que também é um lugar de negociação de obras), o
MOMA
adquire características e feições bem diferentes do seu início:
ambiente
mais
austero,
galerias
com
recursos mínimos e
tendência à neutralidade,
sem escadaria cerimonial, mas acesso ao nível
da rua; sem colunas grandiosas, mas com
uma fachada limpa, plana, voltada
para a
cidade.
Neste
momento (quando ainda
era circundado por casas do século XIX), o
prédio do MOMA funcionava
como uma efetiva manifestação dos princípios modernos e da
perspectiva
internacionalista que
esta instituição (e seus criadores) desejavam difundir.
Apesar
do papel fundamental do MOMA no estabelecimento e
difusão
do paradigma do Cubo
Branco,
o surgimento desse padrão, segundo
ainda Grunnenberg,
não
é totalmente creditado a esta instituição,
mas depende de uma variedade de fontes externas. Já
era possível encontrar manifestações
anteriores do modelo modernista de exposição
em museus europeus e em mostras
realizadas
após a primeira guerra mundial, especialmente na Alemanha. E Alfred
Barr Jr. (primeiro
diretor)
viajou muito pela Europa nesse período. Desse
modo, o museu, através de seu diretor,
adaptou e refinou essas novas técnicas de disposição, optando pelo
que agora é
reconhecido
como um modo modernista de exibir, às
expensas
de outros modelos
de apresentação, os quais, atualmente,
estão
majoritariamente esquecidos. (1999:
30)
Como
exemplo de modelos que foram possíveis precursores do formato Cubo
Branco,
Grunneberg destaca as exposições Expressionistas realizadas pelo
museu Folkwang, em Essen, Alemanha. Para o autor, esta instituição
continha um extraordinário ambiente expressionista que refletia as
intenções e influências dos artistas. Aqui ainda não existia o
ideal de pureza e neutralidade do Cubo
Branco
e as pinturas e esculturas expressionistas (incluindo trabalhos
site-specific criados especialmente para o museu) eram combinados com
mobiliário medieval e "arte primitiva". “Como no
"display" modernista, as galerias lembravam o estúdio do
artista mas, nesse caso, o fazia evocando o caos eclético e o
turbilhão emocional do Expressionismo. Junto com as então comuns
paredes brancas, os formatos das galerias expunham tijolos e paredes
coloridas. Apesar de ficar bastante impressionado pelo formato do
Folkwang Museum, Barr foi extremamente seletivo em sua adaptação
dos elementos deste” (1999:30).
Ainda
sobre Alfred
Barr Jr., vale
destacar seu
importante papel
para
a definição do MOMA
como espaço difusor, não só de produção artística, mas de um
discurso ideológico e doutrinador
sobre modernismo. Após
este
período de viagens pela Europa, especialmente Alemanha, como
dito por Grunnenberg, Barr
será bastante influenciado
por
ideias em voga no momento, especialmente pelo
projeto utópico-educacional moderno
da
Escola Bauhaus. Filtrando
estas influências com as lentes dos interesses específicos da
instituição,
ele
irá formular
um
formato ideal de exposição da arte moderna onde esta fosse vista em
toda sua inteireza e pureza, desvinculada de qualquer referência
exterior e distanciada de qualquer adereço ou adorno desnecessário
à sua contemplação.
Para
Grunnenberg, a adoção do modelo do Cubo
Branco
pelo MOMA pode ser conectado com a concepção de Barr da arte como
um desenvolvimento inevitável em direção à abstração (concepção
parecida a de Clemente Greenberg e que se tornará um grande discurso
sobre o modernismo, até ser posteriormente contestado). Segundo o
autor, no museu moderno, arte abstrata e Cubo
Branco entraram
em uma relação simbiótica. Em sua aparente exclusão de toda
referência do mundo além do domínio da pura forma, eles reforçam
a descontextualização tradicionalmente efetuada pelo museu. Sendo
assim, Grunnenberg acredita que o modelo do
Cubo
Branco
deve
o seu sucesso a esta estratégia
de obliteração e auto-negação simultânea: destacando a inerente
(isto é, formal) qualidade do trabalho de arte através da
neutralização de seu contexto e conteúdo enquanto, ao mesmo tempo,
permanece ele mesmo virtualmente invisível e, assim, obscurece o
processo de obliteração (1999:31).
Vale
destacar, ainda sobre a doutrina do Cubo
Branco, sua inevitável relação
com a ideologia da arte autônoma. A definição de uma teoria da
estética pura, segundo Bourdieu, oblitera sua relação histórica,
política, econômica e social. Desse modo, a afirmação de
Grunnenberg de que o MOMA fez todos os
esforços para remover a arte de
qualquer associação com a esfera financeira,
ao mesmo tempo que promovia um ambiente
de negócios para as obras de arte, revela a operação da doutrina
da estética pura transformando-se em ideologia.
Segundo o autor:
As
galerias foram destinadas a promover um ambiente neutro para a
contemplação da arte - sem qualquer distração de decoração,
obras vizinhas, ou, de fato, qualquer influência externa. (...) O
efeito destes formatos era fazer os objetos parecerem
ainda mais desejáveis, efetivamente identificando o visitante de
museu com um consumidor - em vez de um simples apreciador de arte
desinteressado (...). Acima de tudo, este isolamento do espaço da
galeria do mundo exterior do museu funcionou (e continua a fazê-lo
até hoje) para reforçar a noção de que a arte não tem nada a ver
com o dinheiro ou com a política, mas pertence ao reino universal e
intemporal do espírito. As galerias do MOMA são espaços para
contemplação, produzindo uma atmosfera de reverência reminiscente
da igreja, livre da desordem da ordinária vida cotidiana. (1999:34)
Até
aqui parece que já ficou claro o impacto do paradigma do Cubo
Branco
na formação da instituição de arte moderna e de seus formatos de
exibição, além da criação de um modelo de ideal de museu de arte
moderna, promovidos pelo MOMA. Mas de onde vinha tamanho
poder referencial deste
museu? Talvez isso
possa
se
explica por algumas
questões.
O exílio de vários artistas europeus para Nova York contribui para
que este se torne um espaço privilegiado de exposição e produção
artística, enquanto a Europa padece das crises sucessivas do pós-
primeira guerra, dos regimes nazistas e fascistas e da Segunda Guerra
Mundial; a capacidade de Barr,
junto com Greenberg, em criar um discurso lógico, linear e
progressivo sobre a arte moderna, o qual, por muito tempo, será
considerado a narrativa por excelência desta (segundo esta visão, o
modernismo se iniciaria com o impressionismo na França e culminaria
no expressionismo abstrato americano); a invenção do paradigma do
Cubo
Branco
que
influenciará, de maneira profunda, a constituição dos museus de
arte moderna ao redor do mundo, difundindo a ideia de neutralidade e
distanciamento associadas à fruição da obra de arte moderna; a
criação de departamentos específicos como setor educativo, de
itinerâncias, biblioteca e, com o tempo, a divisão da curadoria
para as áreas de arquitetura, fotografia, além de artes visuais,
até então inédito nas instituições museais; o fato de se
constituir, também, como espaço para a negociação da arte,
tornando o museu um lugar de legitimação da produção artística,
não só institucional, mas mercadológica também.
Esse
lugar hegemônico conquistado pelo MOMA por quase 30 anos, aos poucos
será questionado e combatido. Já a partir dos anos 1950, as
críticas começaram a surgir e se amplificar. Mas durante o período
dos anos 1960, elas se tornarão ainda mais contundentes. Não só as
doutrinas sobre o modernismo aí difundidas (e reforçadas por outros
críticos) serão postas em xeque, a partir do questionamento do que
esse discurso intencionalmente deixa de fora na produção artística
do período, como também (e principalmente) será bastante atacado o
paradigma do Cubo
Branco.
Este espaço neutro, puro, quase sagrado, começará a ser visto como
lugar que impõe maneiras de ver, que descontextualiza a obra de um
entorno no qual poderia ser potente. Para
os críticos, essa ideologia museal trabalha
pela construção de um espectador ideal, este geralmente adulto,
branco, classe média e homem, além de tratá-lo como consumidor. O
museu passará a ser relacionado com o modernismo mercantilista, com
o imperialismo americano e com a ortodoxia de um discurso sobre a
arte moderna bastante fechado e doutrinário.
E
neste
momento em que pululavam as críticas contra o MOMA, outra
questão
ressaltada era a de sua origem social e política. Como afirma
Grunneberg, o
MOMA foi fundado por benfeitores privados milionários e seus
administradores continuaram
a ser recrutados da elite social deste país. Estes
atores acabavam por
determinar
a direção geral do museu e, através da nomeação dos membros
importantes da equipe, exerciam
influência em suas políticas de exibição. Eles também moldaram
decisivamente a composição da coleção com doações de obras de
arte. Segundo
ainda o autor:
Acusações de
influência indevida remontam aos anos inciais do MOMA, quando o
museu era quase inteiramente financiado por estes administradores. O
apoio dos Rockeffelers (entre outras famílias ricas e poderosas) e a
escolha da arte moderna como objeto particular de sua filantropia são
significantes. A introdução da arte moderna nos Estados Unidos, tem
sido argumentado, aconteceu desde o topo e estava intrinsecamente
conectado a questões de classe, gosto, economia e política. A arte
moderna foi elevada à
esfera da alta cultura, funcionando como indicador de distinção
social. No processo, sua agenda política e social original ficou
obscurecida. Não apenas o MOMA, em si mesmo, foi dirigido com toda a
eficiência de um negócio competitivo na economia capitalista, mas
as atividades políticas de seus administradores, às
vezes, tiveram um impacto direto no museu. (1999:32)
Nesse
sentido, é
importante ressaltar outro papel importante cumprido pelo MOMA
nesse período, especialmente no momento da guerra fria: o de difusor
ideológico da propaganda americana para países “amigos”. O
expressionismo abstrato foi amplamente difundido para os países
latino-americanos, e também por outras partes do mundo, como o
sinônimo da liberdade social dos Estados Unidos. A ideia era tratar
de abafar produções como o muralismo mexicano, identificada com o
socialismo e a questão do trabalhador. Segundo o historiador Dalton
Sala (2002), durante as décadas de 1940 e 1950, “iniciavam-se os
tempos de guerra fria e a divulgação internacional do
expressionismo abstrato como forma ideológica da cultura americana,
promovido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York , com orientação
e financiamento vindos diretamente do departamento de Estado”
(SALA, 2001/2002:124).
O
próprio Alfred Barr
Jr. realizou a função de embaixador cultural dos Estados Unidos,
especialmente aqui na América Latina, realizando exposições no
Brasil nos anos 1940. Geralmente
mascaradas sob a forma de “apoios” culturais, incentivo à
produção artística latino-americana, o MOMA,
cujo principal financiador no
período,
Nelson Rockefeller (diretor do Inter-American Affaris Office, ligado
ao departamento de Estado), realizou uma forte campanha,
principalmente nos anos 1950, de inserção cultural em países como
o Brasil, por exemplo. Incentivava artistas a realizar bolsas e
residências nos Estados Unidos, trazia exposições artísticas e
intelectuais americanos para realizar diálogos locais e,
posteriormente, ajudou na criação de instituições nacionais como
o Museu de Arte Moderna (SP) e eventos como a Bienal de São Paulo
(questão que veremos com mais detalhes adiante).
A
partir deste breve desenho, aqui esboçado, sobre a formação do
campo da arte moderna e os discursos e instituições que emergem
para estas práticas artísticas, é possível passar adiante neste
percurso e voltar o olhar mais detidamente para o jogo realizado no
interior deste campo entre as vanguardas artísticas e o discurso
conhecido como esteticismo. A partir de agora nos faremos as
seguintes questões: O
que diferencia o impressionismo, o cubismo ou expressionismo
abstrato, por exemplo, de outros movimentos, também entendidos como
vanguardistas, a exemplo do surrealismo, do dadaísmo, do
construtivismo russo? Qual a implicação de considerar umas
vanguardas como sendo o discurso legítimo do modernismo e
determinando as práticas em seu interior e outras não? Ou seja, a
questão colocada por Rancière sobre o processo de ambiguidade
entre esteticismo e modernitarismo no seio do Regime Estético
aparece aqui de maneira importante para entender como os distintos
discursos, inseridos dentro da própria teoria da arte autônoma,
como diz Bourdieu, ou seja, dentro do próprio modernismo, implicará
em distintas configurações do seu campo e também em um conflito de
práticas artísticas que levará o mesmo a expandir-se
constantemente, através da crítica à
sua própria configuração.
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