quarta-feira, 8 de abril de 2015

Daniel Santiago: a ficção da ciência


Texto originalmente publicado na Revista Café com Sociologia V.2 n. 3 (2013)
Link para acessar texto original: 
http://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/103


1. Vanguarda artística no Recife

Antes de iniciar a análise teórica propriamente dita, se faz interessante situar um pouco o artista Daniel Santiago no interior de um contexto artístico mais amplo que dominava o cenário dos anos 1960/1970 no Brasil. Nesse período, a tendência à experimentação artística e à abertura das fronteiras de linguagens, fazia com que os artistas desse momento vivenciassem práticas em que artes visuais, teatro, discurso, e, principalmente, poesia se mesclavam em trabalhos subversivos, seja do estatuto político do período (marcado pela ditadura), seja do estatuto da arte (do que era considerado objeto artístico legítimo). Essa foi a época da emergência, no cenário brasileiro, de práticas identificadas com o que ficou conhecido como arte conceitual, pop art, concretismo, neoconcretismo e seu desdobramento na arte ambiental, através de Hélio Oiticica.

Tendo iniciado sua carreira em fins dos anos 1950, Daniel Santiago é um artista pernambucano que experimentou em diversas áreas das artes visuais. Começou como designer gráfico de cartazes (nessa época, feitos à mão) para grandes magazines. Em seguida, ingressou em um curso, via correio, de desenho, no qual começou a aperfeiçoar a técnica. A partir de meados da década de 1960, entrou para Escola de Belas Artes do Recife (EBA), onde passou a ter uma formação mais formal na área da pintura e do desenho.

Porém, nesse período de formação na EBA, começou uma parceria com Paulo Bruscky, artista com forte tendência vanguardista e, juntos, eles se tornaram uma das principais referências para a arte contemporânea do Estado, junto com outros nomes como Montez Magno, Sílvio Hansen, Ypiranga Filho, Jomard Muniz de Brito, Leonardo Duch, Unhandeijara Lisboa, entre outros. Durante os anos 1970, trabalhando como a dupla Bruscky e Santiago, iniciaram uma produção que dialogava com tendências nacionais e internacionais de ampliação da criação para materiais e suportes inusitados, porém produzindo trabalhos em estreita conexão com o contexto social e político local.

Os trabalhos de Bruscky e Santiago produzidos nessa época, primam pela mistura de linguagens artísticas e pela passagem da noção de experiência artística ao primeiro plano da preocupação estética. Produzindo trabalhos em suportes os mais variados, a dupla iniciou, na cidade, a realização de performances, ações urbanas, intervenções poéticas em jornais de grande circulação, além de uma forte produção de poesia visual, que influenciou bastante na emergência da arte correio no Recife. Mesmo após o fim da dupla, ficou marcada na poética de ambos os artistas a tendência a trabalhar a partir de variados suportes: seja fotografia, vídeo, performance e, no caso de Daniel Santiago, desenho, produção de cartazes e pintura.

E no meio de toda essa vasta produção, a poesia é algo que está sempre presente nos trabalhos de Daniel Santiago. A relação próxima com o poético em sua obra, interfere no fascínio que esse artista possui pelas novas tecnologias. Para além da experimentação com vídeos, fotografia, ou demais outras ferramentas tecnológicas, Santiago se sente atraído pelo discurso científico, pela ideia de que a ciência torna tudo e qualquer coisa possível. E ele representa esse fascínio em vídeos e em projetos nos quais a ciência parece ser convocada à servir ao seu projeto poético, ficcionalizando-a ao destacar o caráter fantástico que está presente no interior dela mesma.

Esse caráter ficcional-científico presente na sua obra se destaca em uma atual discussão a respeito de arte e tecnologia: é possível ao artista ser fascinado pela tecnologia e não render-se a ela? Será a obra artística sempre passível de ser capturada pela lógica de arquivamento da tecnologia atual (voltada para o entretenimento e para a redução da capacidade sensível)? Será a obra de Daniel Santiago capturada pela tecnologia e transformada em produto da Indústria Cultural (como diria Adorno); ou abrirá ela espaços de subversão e ruptura no interior do arquivo da tecnologia?

2. A ficcionalização da ciência como operação artística

Para responder a essas questões, o primeiro passo é atentar para essa filiação altamente experimental do artista, a qual provoca vários pontos de deslocamento possíveis de serem descobertos na obra de Daniel Santiago. E um dos que mais chama a atenção, reside na dimensão da recontextualização do discurso racional, científico que é deslocado para a esfera da ficção, da poesia e da imaginação em trabalhos onde a ciência aparece como algo fantástico e fascinante para o artista.

Pensando a partir de Jacques Rancière (2005) e sua ideia de partilha do sensível, é possível visualizar a operação estética de Daniel Santiago. Este conceito trata da dimensão da reorganização política do sensível em uma comunidade a partir da entrada do que estava fora (esquecido ou invisibilizado) nesta comunidade. E esse algo que está fora podem ser tanto sujeitos políticos, como também ideias, sentidos e experiências.

Sendo assim, percebo a ação de Santiago como operando uma inserção de sentidos e experiências sensíveis na dimensão do discurso científico, no interior do qual permanecem esquecidos, apagados ou, simplesmente, calados. O sensível, o fantástico e o onírico parecem não ter lugar na dimensão racional, calculável e neutralizante do discurso da ciência. São anulados e excluídos por ele.

Voltando para dimensão da esfera pública (ou, como diz Rancière, do comum), vê-se que esse discurso da ciência é o “totalizante”, é o que tem maior visibilidade, é o dotado de voz e da capacidade de falar “a verdade” e de proferir “as certezas”. O discurso científico é a voz da autoridade na modernidade. É, repetindo Derrida, uma espécie de princípio arquiviolítico da mesma. Subverter essa autoridade arquivística, a partir da inserção de dimensões imaginativas, é quase uma afronta. E é isso que faz Daniel ao reinserir a fantasia como complementaridade da ciência, reordenando a dimensão sensível e operando uma nova forma de viver essa ciência e de se aproximar dela. Isso possibilita que outras vozes (além da dos cientistas) falem sobre ela. E com essa operação, realiza o que Benjamin define sobre a experiência em O Narrador – recoloca no nível do coletivo e do compartilhado o que antes estava individualizado e afastado.

Essa reaproximação do “conhecimento puro” com a imaginação, a fantasia, é algo que realiza o caminho inverso do da ciência moderna, como já foi dito. Porém a importância dessa operação para a subjetividade moderna pode ser percebida quando se observa o ponto de vista de autores como Giorgio Agamben (2008) que, ecoando Walter Benjamin, também fala sobre a pobreza de experiência na modernidade. Para este autor, este período histórico é marcado pela sacralização da experiência pela ciência, que a colonizou e submeteu aos métodos exteriores e calculáveis de produção do conhecimento.

A ciência moderna operou, segundo este autor, a fundição, em um único sujeito (o sujeito do cogito), do sujeito da experiência com o do conhecimento, antes considerados separadamente no pensamento antigo e medieval. Essa cisão acabou por submeter a experiência ao ego cogito, capaz de manipulá-la. Em outras palavras, a ciência moderna retirou do homem a experiência, tornando-a exterior e manipulável, a fim de fazê-la exata e calculável.

Da mesma maneira que diagnosticaram Adorno e Horkheimer ao falar da mímesis perversa que conformou o sujeito autônomo ocidental ao fazê-lo reprimir uma mímesis originária prazerosa, Agamben percebe que o preço pago pela razão foi alto. Foi a saída do eu da experiência que garantiu a entrada em uma dimensão do autocontrole e da reflexividade. Para isso, era necessário controlar a experiência, retirá-la do seu lugar contingente e cotidiano para transferi-la para a esfera sagrada da razão.

Desse modo, Agamben constata que, em sua busca pela certeza, a ciência moderna fez da experiência o lugar, ou melhor, o método do conhecimento. Essa ciência é baseada, entre outras coisas, na desconfiança fundamental de Descartes em relação à experiência, considerando-a como um demônio ilusionista que aliena os sentidos e distrai do alcance da certeza. Esse é o mesmo medo platônico da mímesis. Para superar esse medo, é preciso operar aí o controle. Nesse processo, a ciência moderna opera a cisão entre os sujeitos da experiência e o da inteligência, fundindo-os em um ponto comum que é o ego cogito cartesiano, a consciência humana. É a consciência agora o agente do conhecimento, a fonte da inteligência (antes considerada como separada do homem e residente na esfera do divino) capaz de manipular a experiência (2008:29). Esse ego cogito cartesiano foi muito bem representado por Adorno e Horckheimer, como dito acima, pela imagem de Ulisses (representante mitológico da ratio ocidental) atado ao mastro para não sucumbir ao canto das sereias (ao prazer indistinto, ao mito, ao primitivo e irracional).

Nesse processo de controle e repressão, algo fundamental foi retirado de cena pela ciência moderna: a dimensão da fantasia e da imaginação. Se na antiguidade, ela era o meio, por excelência, de acesso ao conhecimento, na ciência moderna foi eliminada por seu caráter irreal e ilusório. Tanto na antiguidade como em outras culturas consideradas “primitivas” a fantasia (através do sonho) é um importante mediador entre a dimensão sensível e a inteligível. Sonhar era algo considerado importante na realidade da experiência, seja como previsão, seja como ensinamento, seja como acesso ao divino. Mas, a partir de Descartes, o ego cogito, ou seja, o sujeito da ciência e do saber, não precisa mais da mediação com o mundo real e, de sujeito da experiência, a fantasia passa a sujeito da alienação mental: das visões, dos fenômenos mágicos, tudo aquilo que não participa da experiência “autêntica”.

E é essa fantasia, que Daniel Santiago traz de volta ao seio da ciência. Dessacraliza esta que é a mais alta representação da racionalidade, do progresso, da evolução, ou seja, do espírito da modernidade, trazendo-a de volta ao convívio comum dos homens. Como diria Agamben, ele profana a ciência para trazê-la de volta ao nível da experiência coletiva e comum. A tecnologia científica e toda a sua calculabilidade e desejo de controle exterior, exercem nele um fascínio quase infantil. O que antes era técnico, controlado, passa a ser quase uma brincadeira de criança, algo possível para qualquer pessoa e não mais tão amedrontador assim.

Fascinado por uma matéria que viu em um artigo científico, que falava sobre canhões de íons aceleradores de partículas, Daniel Santiago teve uma brilhante ideia em um trabalho produzido nos anos 1970: pedir esse canhão emprestado para fabricar uma aurora boreal artificial. Nesta ação, Santiago divulga em um jornal do Recife que quer fabricar uma aurora boreal artificial na cidade e pede ajuda a físicos para ter acesso ao tal canhão acelerador de partículas. Qual é a utilidade desse acelerador de partículas para a física? Ele não sabe. O que isso promove no meio-ambiente? O que estão querendo provar e testar com esse equipamento? Nada disso ele é capaz de responder. Para o artista, basta entender um princípio simples: o de que essa tecnologia pode ser capaz de servir para tornar o céu mais colorido, para fabricar uma espécie de poesia celeste, chamada de aurora boreal, e que todos conhecem.

Essa simples operação promove uma quebra no interior desse arquivo científico. O canhão, aí, é algo sério: tem um real objetivo científico e exato de realizar testes em partículas para descobrir novas verdades sobre o universo. E toda essa operação científica permanece afastada de todos. Só os iniciados – os arcontes desse arquivo – são capaz de entender e acessá-lo. O resto das pessoas precisa manter-se afastada, como norma para que o arquivo siga sendo eficiente em sua função de reprodução, não sendo questionado. Santiago, ao querer tornar esse canhão uma ferramenta artística, de produção de uma pintura ou poesia celeste, dessacraliza e, de algum modo, ridiculariza esse discurso científico. Põe em evidência a questão: mas, afinal, pra que serve isto mesmo? Pra que tem que ser útil e científico se pode ser, simplesmente, bonito?

Em outro trabalho, esse de 2009, Daniel Santiago produz um vídeo utilizando tecnologias muito simples: uma webcam e materiais que encontra em casa. Sua intenção, aqui, é colocar uma molécula de carbono para dançar. Chamado de Coreografia da Molécula de Carbono, o vídeo possui uma parte em que o artista faz um jogo poético falando sobre a partícula, dizendo: “Durante séculos, teve-se como verdade absoluta que a molécula de carbono estava somente no diamante e na grafite. Agora ela aparece deslumbrante na poesia eletrônica também”. E em seguida, aparece uma luz vibrante, em formato circular, bailando ao som de Tchaikovsky.

Através da poesia e da exploração do imaginativo, Daniel Santiago desconstrói, aqui de novo, o que é a verdade científica. Essa verdade diz que a molécula de carbono só existe no diamante e na grafite. Mas ele, artista, encontrou-a bailando em sua poesia eletrônica (como denomina os vídeos que produz). A molécula que, aparentemente, não tem forma nem cor, aparece linda, como um jogo de luzes vibrantes que se modificam ao som da música de fundo. E quem pode dizer que não é assim que parece uma molécula de carbono? No jogo de Daniel Santiago, ela não está mais sujeita a experimentos e comprovações. Ela é apenas luz dançante, partícula de luz e cor que flutua pelo espaço negro, como que a celebrar sua libertação da função de compor a grafite e o diamante.

Santiago libertou a molécula da ciência e a deixou às nossas vistas para que pudéssemos, de verdade, vê-la, experimentá-la e entendê-la. Se não sabemos quantas partículas como essas são necessárias para fazer o diamante e a grafite, nem tampouco como elas se ordenam para que um seja mais duro e o outro menos, não importa. Qualquer um é capaz de vê-la dançar, de emocionar-se com sua libertação. Todos temos acesso à molécula de carbono dessacralizada, profanada de seu caráter cientifico e exato.

Em um outro vídeo, também de 2009, Daniel Santiago mostra O Plasma no Interior da Magnetosfera. Utilizando-se de termos científicos inventados, faz uma extensa explicação do que seria o plasma e a magnetosfera, para ao final dizer: “o que parece mentira, é poesia”. Nesse imenso jogo de termos inventados, coloca em evidência uma dimensão de construção do discurso científico, cujos termos, quanto mais de difícil acesso pareçam, mais legítimos se tornam. Sua arbitrariedade poética é perdoada ao dizer que, o que não é verdade, o que não é comprovado por esse discurso, é poesia. A ciência que fala sobre a atmosfera e a mesosfera pode ser tão fascinante e poética como o discurso mentiroso de Daniel Santiago sobre a magnetosfera. E pode ser tão mentirosa quanto. De uma maneira aparentemente simples, Santiago deixa uma inquietação imensa em quem assiste ao vídeo: “afinal, o que é mesmo verdade?”.

Nestes e em vários outros trabalhos, é importante ressaltar o uso da tecnologia de massa que Daniel Santiago realiza. A partir de uma simples webcam, máquina criada com o intuito de promover a interação, via internet, entre pessoas distantes, realiza vídeos cuja força poética e deslocadora são notáveis. E ao fazer uso dessa tecnologia de massa, criada para o entretenimento e a comunicação, promove uma quebra na estrutura do arquivo ocidental: ficcionalizar a ciência, trazer de volta ao seu interior o fantasioso e o poético, anular a utilidade da tecnologia, opondo a esta uma outra lógica que não a instrumental.

É preciso dizer que há vários vídeos realizados, várias coisas feitas via webcam por muitos outros artistas e, também, por usuários comuns. Ou seja, a questão da subversão da tecnologia, em Santiago, não é exatamente o seu uso para promover um vídeo. Isso a tecnologia admite em seu interior, é capaz de fazê-lo. A prática artística deslocadora operada por ele, não é tanto a fabricação de um vídeo, mas o que os trabalhos dele dizem, operam e promovem em termos estéticos e poéticos.

Pensando, de maneira geral, no que se tem produzido na arte contemporânea com novas tecnologias, essa é uma importante questão a ser colocada: até que ponto o uso artístico da tecnologia apresenta uma dimensão mais fetichizante do que crítica? Ao observar algumas exposições de arte e tecnologia, pergunto-me, ao deparar-me com alguns trabalhos, quem está com a razão: Adorno ou Benjamin? Num cenário em que a arte já aceita, reproduz e, inclusive, incentiva a experimentação tecnológica, é possível manter a dimensão deslocadora e crítica? Acredito que trabalhos como os de Daniel Santiago, apresentam uma possibilidade terceira, que não é a da adesão acrítica à ciência e à tecnologia, tampouco a de seu rechaço temeroso, mas um envolvimento com essas técnicas que as deslocam do seu objetivo funcional primordial, permitindo a entrada de novos pensamentos e experiências a partir desse deslocamento. Porém, creio que há uma gama enorme de trabalhos feitos com Iphones, Ipads, Tablets, nanotecnologia os quais ainda me fazem perguntar o que, de fato, se está produzindo e questionando artisticamente. Infelizmente, essa é uma questão cujo debate não caberá no espaço desse artigo, mas que precisa sempre ser colocada ao se falar nessa relação entre arte e tecnologia.

3. Algumas considerações finais

Nesse trabalho, tentei de maneira resumida, fazer uma análise de como as relações entre arte e tecnologia podem conter a dimensão do deslocamento e da ruptura, mesmo em sua condição contemporânea (na qual, todo trabalho, feito em qualquer suporte, passa a ser aceito como arte). Se antes, para as vanguardas artísticas do início do século, aproximar-se das tecnologias de massa era um extremo ato subversivo e de questionamento da instituição-arte; hoje, essa mesma instituição, passou a abrigar e, até mesmo, a exigir esse tipo de relação com a técnica. Os trabalhos em vídeo, com internet e robótica, por exemplo, compõem atualmente parte grande da poética de muitos artistas hoje chamados contemporâneos.

Porém, se se pensa a técnica como uma espécie de arquivo, que possui um determinado poder consignador para reproduzir-se (ou seja, determina práticas em seu interior e tenta eliminar a dissonância), pode-se perceber que tipo de modus operandi se impõe a partir dela. Será que os artistas atuais, simplesmente porque produzem vídeos ou robôs que realizam performances, estão de fato subvertendo esse modus operandi? Que tipo de relação artística se pode ter com a técnica para subverter esse tal modus operandi, em um momento atual de imensa ampliação, seja das possibilidades dessa técnica, seja da capacidade de absorção do mercado artístico?

A escolha de Daniel Santiago para essa análise não foi à toa. Ele é um artista que, sim, opera a partir de técnicas como webcam, assim como vários outros o fazem atualmente. Porém, esse artista possui uma capacidade poética e de deslocamento estético que inserta um ruído nesse modus operandi a que me referi. Ele não fetichiza a webcam, por mais que se mostre através de seus vídeos a capacidade tecnológica que essa câmera possui. Sua ação vai além de uma experimentação pura com a tecnologia, ou uma demonstração de como se pode ampliar suas capacidades, mas, desde dentro, opera uma desfuncionalização da mesma.

Ou seja, se ela serve para comunicação e para fazer filmes, passa a não ter nenhuma função quando realiza a operação poética de desconstrução da ciência que aparecem nos filmes de Santiago. Ou sua função é deslocada e retirada do nível da utilidade. Sim, a câmera foi útil para a produção do vídeo, mas se ele não revela como o fez, ninguém é capaz de saber como aquilo foi feito e com que suporte técnico. A tecnologia aparece como a coisa menos importante para a produção daquela poesia eletrônica que toma e impacta poeticamente a quem a assiste. Da mesma forma que usou uma webcam, poderia ter usado qualquer outra tecnologia. Pouco importaria para o trabalho. A relação que se estabelece aqui é de uma independência do poético em relação ao técnico. Este é um meio, uma via de operação, é necessário como construção do trabalho artístico que opera práticas que não estão dadas na configuração original do aparato tecnológico.

Para mim, essa prática operada por Daniel é uma via possível de ação diante dos aparatos tecnológicos dos quais a arte já não pode fugir. Retomar a dimensão da experiência, retirar a técnica desse lugar sagrado e distanciado do qual se encontra, sem fetichizá-la, fazendo o poético adentrar a ação de operação da técnica. Essa é a maior subversão que se pode realizar. Colocar o estético e o poético no lugar do funcional, do exato ou do entretido.


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