Texto originalmente publicado na Revista Café com Sociologia V.2 n. 3 (2013)
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http://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/103
1. Vanguarda artística no
Recife
Antes
de iniciar a análise teórica propriamente dita, se faz interessante
situar um pouco o artista Daniel Santiago no interior de um contexto
artístico mais amplo que dominava o cenário dos anos 1960/1970 no
Brasil. Nesse período, a tendência à experimentação artística e
à abertura das fronteiras de linguagens, fazia com que os artistas
desse momento vivenciassem práticas em que artes visuais, teatro,
discurso, e, principalmente, poesia se mesclavam em trabalhos
subversivos, seja do estatuto político do período (marcado pela
ditadura), seja do estatuto da arte (do que era considerado objeto
artístico legítimo). Essa foi a época da emergência, no cenário
brasileiro, de práticas identificadas com o que ficou conhecido como
arte conceitual, pop art, concretismo, neoconcretismo e seu
desdobramento na arte ambiental, através de Hélio Oiticica.
Tendo
iniciado sua carreira em fins dos anos 1950, Daniel
Santiago é um artista pernambucano que experimentou em diversas
áreas das artes visuais. Começou como designer gráfico de cartazes
(nessa época, feitos à mão) para grandes magazines. Em seguida,
ingressou em um curso, via correio, de desenho, no qual começou a
aperfeiçoar a técnica. A partir de meados da década de 1960,
entrou para Escola de Belas Artes do Recife (EBA), onde passou a ter
uma formação mais formal na área da pintura e do desenho.
Porém,
nesse período de formação na EBA, começou uma parceria com Paulo
Bruscky, artista com forte tendência vanguardista e, juntos, eles se
tornaram uma das principais referências para a arte contemporânea do Estado, junto com outros nomes como Montez Magno, Sílvio Hansen, Ypiranga Filho, Jomard Muniz de Brito, Leonardo Duch, Unhandeijara Lisboa, entre outros. Durante os
anos 1970, trabalhando como a dupla Bruscky e Santiago, iniciaram uma produção que dialogava com tendências
nacionais e internacionais de ampliação da criação para materiais
e suportes inusitados, porém produzindo trabalhos em estreita
conexão com o contexto social e político local.
Os
trabalhos de Bruscky e Santiago produzidos nessa época, primam pela
mistura de linguagens artísticas e pela passagem da noção de
experiência artística ao primeiro plano da preocupação estética.
Produzindo trabalhos em suportes os mais variados, a dupla iniciou,
na cidade, a realização de performances, ações urbanas,
intervenções poéticas em jornais de grande circulação, além de
uma forte produção de poesia visual, que influenciou bastante na emergência da
arte correio no Recife. Mesmo após o
fim da dupla, ficou marcada na poética de ambos os artistas a
tendência a trabalhar a partir de variados suportes: seja
fotografia, vídeo, performance e, no caso de Daniel Santiago,
desenho, produção de cartazes e pintura.
E
no meio de toda essa vasta produção, a poesia é algo que está
sempre presente nos trabalhos de Daniel Santiago. A relação próxima
com o poético em sua obra, interfere no fascínio que esse artista
possui pelas novas tecnologias. Para além da experimentação com
vídeos, fotografia, ou demais outras ferramentas tecnológicas,
Santiago se sente atraído pelo discurso científico, pela ideia de
que a ciência torna tudo e qualquer coisa possível. E ele
representa esse fascínio em vídeos e em projetos nos quais a
ciência parece ser convocada à servir ao seu projeto poético,
ficcionalizando-a ao destacar o caráter fantástico que está
presente no interior dela mesma.
Esse
caráter ficcional-científico presente na sua obra se destaca em uma
atual discussão a respeito de arte e tecnologia: é possível ao
artista ser fascinado pela tecnologia e não render-se a ela? Será a
obra artística sempre passível de ser capturada pela lógica de
arquivamento da tecnologia atual (voltada para o entretenimento e
para a redução da capacidade sensível)? Será a obra de Daniel
Santiago capturada pela tecnologia e transformada em produto da
Indústria Cultural (como diria Adorno); ou abrirá ela espaços de
subversão e ruptura no interior do arquivo da tecnologia?
2.
A ficcionalização da ciência como operação artística
Para responder a essas questões, o primeiro passo é atentar
para essa filiação altamente experimental do artista, a qual provoca
vários pontos de deslocamento possíveis de serem descobertos na
obra de Daniel Santiago. E um dos que mais chama a atenção, reside
na dimensão da recontextualização do discurso racional, científico
que é deslocado para a esfera da ficção, da poesia e da imaginação
em trabalhos onde a ciência aparece como algo fantástico e
fascinante para o artista.
Pensando a partir de Jacques Rancière (2005) e sua ideia de
partilha do sensível, é possível visualizar a operação estética
de Daniel Santiago. Este conceito trata da dimensão da reorganização
política do sensível em uma comunidade a partir da entrada do que
estava fora (esquecido ou invisibilizado) nesta comunidade. E esse
algo que está fora podem ser tanto sujeitos políticos, como também
ideias, sentidos e experiências.
Sendo assim, percebo a ação de Santiago como operando uma inserção
de sentidos e experiências sensíveis na dimensão do discurso
científico, no interior do qual permanecem esquecidos, apagados ou,
simplesmente, calados. O sensível, o fantástico e o onírico
parecem não ter lugar na dimensão racional, calculável e
neutralizante do discurso da ciência. São anulados e excluídos por
ele.
Voltando para dimensão da esfera pública (ou, como diz Rancière,
do comum), vê-se que esse discurso da ciência é o “totalizante”,
é o que tem maior visibilidade, é o dotado de voz e da capacidade
de falar “a verdade” e de proferir “as certezas”. O discurso
científico é a voz da autoridade na modernidade. É, repetindo
Derrida, uma espécie de princípio arquiviolítico da mesma.
Subverter essa autoridade arquivística, a partir da inserção de
dimensões imaginativas, é quase uma afronta. E é isso que faz
Daniel ao reinserir a fantasia como complementaridade da ciência,
reordenando a dimensão sensível e operando uma nova forma de viver
essa ciência e de se aproximar dela. Isso possibilita que outras
vozes (além da dos cientistas) falem sobre ela. E com essa operação,
realiza o que Benjamin define sobre a experiência em O Narrador
– recoloca no nível do coletivo e do compartilhado o que antes
estava individualizado e afastado.
Essa reaproximação do “conhecimento puro” com a
imaginação, a fantasia, é algo que realiza o caminho inverso do
da ciência moderna, como já foi dito. Porém a importância dessa
operação para a subjetividade moderna pode ser percebida quando se
observa o ponto de vista de autores como Giorgio Agamben (2008) que,
ecoando Walter Benjamin, também fala sobre a pobreza de experiência
na modernidade. Para este autor, este período histórico é marcado
pela sacralização da experiência pela ciência, que a colonizou e
submeteu aos métodos exteriores e calculáveis de produção do
conhecimento.
A ciência moderna operou, segundo este autor, a fundição,
em um único sujeito (o sujeito do cogito), do sujeito da experiência
com o do conhecimento, antes considerados separadamente no pensamento
antigo e medieval. Essa cisão acabou por submeter a experiência ao
ego cogito, capaz de manipulá-la. Em outras palavras, a
ciência moderna retirou do homem a experiência, tornando-a exterior
e manipulável, a fim de fazê-la exata e calculável.
Da mesma maneira que diagnosticaram Adorno e Horkheimer ao falar da
mímesis perversa que conformou o sujeito autônomo ocidental
ao fazê-lo reprimir uma mímesis originária prazerosa,
Agamben percebe que o preço pago pela razão foi alto. Foi a saída
do eu da experiência que garantiu a entrada em uma dimensão do
autocontrole e da reflexividade. Para isso, era necessário
controlar a experiência, retirá-la do seu lugar contingente e
cotidiano para transferi-la para a esfera sagrada da razão.
Desse modo, Agamben constata que, em sua busca pela certeza, a
ciência moderna fez da experiência o lugar, ou melhor, o método do
conhecimento. Essa ciência é baseada, entre outras coisas, na
desconfiança fundamental de Descartes em relação à experiência,
considerando-a como um demônio ilusionista que aliena os sentidos e
distrai do alcance da certeza. Esse é o mesmo medo platônico da
mímesis. Para superar esse medo, é preciso operar aí o
controle. Nesse processo, a ciência moderna opera a cisão entre os
sujeitos da experiência e o da inteligência, fundindo-os em um
ponto comum que é o ego cogito cartesiano, a consciência
humana. É a consciência agora o agente do conhecimento, a fonte da
inteligência (antes considerada como separada do homem e residente
na esfera do divino) capaz de manipular a experiência (2008:29).
Esse ego cogito cartesiano foi muito bem representado por
Adorno e Horckheimer, como dito acima, pela imagem de Ulisses
(representante mitológico da ratio ocidental) atado ao mastro
para não sucumbir ao canto das sereias (ao prazer indistinto, ao
mito, ao primitivo e irracional).
Nesse processo de controle e repressão, algo fundamental foi
retirado de cena pela ciência moderna: a dimensão da fantasia e da
imaginação. Se na antiguidade, ela era o meio, por excelência, de
acesso ao conhecimento, na ciência moderna foi eliminada por seu
caráter irreal e ilusório. Tanto na antiguidade como em outras
culturas consideradas “primitivas” a fantasia (através do sonho)
é um importante mediador entre a dimensão sensível e a
inteligível. Sonhar era algo considerado importante na realidade da
experiência, seja como previsão, seja como ensinamento, seja como
acesso ao divino. Mas, a partir de Descartes, o ego cogito, ou
seja, o sujeito da ciência e do saber, não precisa mais da mediação
com o mundo real e, de sujeito da experiência, a fantasia passa a
sujeito da alienação mental: das visões, dos fenômenos mágicos,
tudo aquilo que não participa da experiência “autêntica”.
E é essa fantasia, que Daniel Santiago traz de volta ao seio da
ciência. Dessacraliza esta que é a mais alta representação da
racionalidade, do progresso, da evolução, ou seja, do espírito da
modernidade, trazendo-a de volta ao convívio comum dos homens. Como
diria Agamben, ele profana a ciência para trazê-la de volta ao
nível da experiência coletiva e comum. A tecnologia científica e
toda a sua calculabilidade e desejo de controle exterior, exercem
nele um fascínio quase infantil. O que antes era técnico,
controlado, passa a ser quase uma brincadeira de criança, algo
possível para qualquer pessoa e não mais tão amedrontador assim.
Fascinado por uma matéria que viu em um artigo científico, que
falava sobre canhões de íons aceleradores de partículas, Daniel
Santiago teve uma brilhante ideia em um trabalho produzido nos anos
1970: pedir esse canhão emprestado para fabricar uma aurora boreal
artificial. Nesta ação, Santiago divulga em um jornal do Recife que
quer fabricar uma aurora boreal artificial na cidade e pede ajuda a
físicos para ter acesso ao tal canhão acelerador de partículas.
Qual é a utilidade desse acelerador de partículas para a física?
Ele não sabe. O que isso promove no meio-ambiente? O que estão
querendo provar e testar com esse equipamento? Nada disso ele é capaz de
responder. Para o artista, basta entender um princípio simples: o de que
essa tecnologia pode ser capaz de servir para tornar o céu mais
colorido, para fabricar uma espécie de poesia celeste, chamada de
aurora boreal, e que todos conhecem.
Essa simples operação promove uma quebra no interior desse arquivo
científico. O canhão, aí, é algo sério: tem um real objetivo
científico e exato de realizar testes em partículas para descobrir
novas verdades sobre o universo. E toda essa operação científica
permanece afastada de todos. Só os iniciados – os arcontes desse
arquivo – são capaz de entender e acessá-lo. O resto das pessoas
precisa manter-se afastada, como norma para que o arquivo siga sendo
eficiente em sua função de reprodução, não sendo questionado.
Santiago, ao querer tornar esse canhão uma ferramenta artística, de
produção de uma pintura ou poesia celeste, dessacraliza e, de algum
modo, ridiculariza esse discurso científico. Põe em evidência a
questão: mas, afinal, pra que serve isto mesmo? Pra que tem que ser
útil e científico se pode ser, simplesmente, bonito?
Em outro trabalho, esse de 2009, Daniel Santiago produz um vídeo
utilizando tecnologias muito simples: uma webcam e materiais que
encontra em casa. Sua intenção, aqui, é colocar uma molécula de
carbono para dançar. Chamado de Coreografia da Molécula de
Carbono, o vídeo possui uma parte em que o artista faz um jogo
poético falando sobre a partícula, dizendo: “Durante séculos,
teve-se como verdade absoluta que a molécula de carbono estava
somente no diamante e na grafite. Agora ela aparece deslumbrante na
poesia eletrônica também”. E em seguida, aparece uma luz
vibrante, em formato circular, bailando ao som de Tchaikovsky.
Através da poesia e da exploração do imaginativo, Daniel Santiago
desconstrói, aqui de novo, o que é a verdade científica. Essa
verdade diz que a molécula de carbono só existe no diamante e na
grafite. Mas ele, artista, encontrou-a bailando em sua poesia
eletrônica (como denomina os vídeos que produz). A molécula que, aparentemente, não tem forma nem cor, aparece linda, como um jogo de
luzes vibrantes que se modificam ao som da música de fundo. E quem
pode dizer que não é assim que parece uma molécula de carbono? No
jogo de Daniel Santiago, ela não está mais sujeita a experimentos e
comprovações. Ela é apenas luz dançante, partícula de luz e cor
que flutua pelo espaço negro, como que a celebrar sua libertação
da função de compor a grafite e o diamante.
Santiago libertou a molécula da ciência e a deixou às nossas
vistas para que pudéssemos, de verdade, vê-la, experimentá-la e
entendê-la. Se não sabemos quantas partículas como essas são
necessárias para fazer o diamante e a grafite, nem tampouco como
elas se ordenam para que um seja mais duro e o outro menos, não
importa. Qualquer um é capaz de vê-la dançar, de emocionar-se com
sua libertação. Todos temos acesso à molécula de carbono
dessacralizada, profanada de seu caráter cientifico e exato.
Em um outro vídeo, também de 2009, Daniel Santiago mostra O
Plasma no Interior da Magnetosfera. Utilizando-se de termos
científicos inventados, faz uma extensa explicação do que seria o
plasma e a magnetosfera, para ao final dizer: “o que parece
mentira, é poesia”. Nesse imenso jogo de termos inventados, coloca
em evidência uma dimensão de construção do discurso científico,
cujos termos, quanto mais de difícil acesso pareçam, mais legítimos
se tornam. Sua arbitrariedade poética é perdoada ao dizer que, o
que não é verdade, o que não é comprovado por esse discurso, é
poesia. A ciência que fala sobre a atmosfera e a mesosfera pode ser
tão fascinante e poética como o discurso mentiroso de Daniel
Santiago sobre a magnetosfera. E pode ser tão mentirosa quanto. De
uma maneira aparentemente simples, Santiago deixa uma inquietação
imensa em quem assiste ao vídeo: “afinal, o que é mesmo
verdade?”.
Nestes e em vários outros trabalhos, é importante ressaltar o uso
da tecnologia de massa que Daniel Santiago realiza.
A partir de uma simples webcam, máquina criada com o intuito de promover
a interação, via internet, entre pessoas distantes, realiza vídeos
cuja força poética e deslocadora são notáveis. E ao fazer uso
dessa tecnologia de massa, criada para o entretenimento e a
comunicação, promove uma quebra na estrutura do arquivo ocidental:
ficcionalizar a ciência, trazer de volta ao seu interior o
fantasioso e o poético, anular a utilidade da tecnologia, opondo a
esta uma outra lógica que não a instrumental.
É preciso dizer que há vários vídeos realizados, várias coisas
feitas via webcam por muitos outros artistas e, também, por usuários
comuns. Ou seja, a questão da subversão da tecnologia, em Santiago, não é exatamente o seu uso para promover um vídeo. Isso a
tecnologia admite em seu interior, é capaz de fazê-lo. A prática
artística deslocadora operada por ele, não é tanto a fabricação
de um vídeo, mas o que os trabalhos dele dizem, operam e promovem em
termos estéticos e poéticos.
Pensando, de maneira geral, no que se tem produzido na arte
contemporânea com novas tecnologias, essa é uma importante questão
a ser colocada: até que ponto o uso artístico da tecnologia
apresenta uma dimensão mais fetichizante do que crítica? Ao
observar algumas exposições de arte e tecnologia, pergunto-me, ao
deparar-me com alguns trabalhos, quem está com a razão: Adorno ou
Benjamin? Num cenário em que a arte já aceita, reproduz e,
inclusive, incentiva a experimentação tecnológica, é possível
manter a dimensão deslocadora e crítica? Acredito que trabalhos como
os de Daniel Santiago, apresentam uma possibilidade terceira, que não
é a da adesão acrítica à ciência e à tecnologia, tampouco a de
seu rechaço temeroso, mas um envolvimento com essas técnicas que as deslocam do seu objetivo funcional primordial, permitindo a entrada de novos pensamentos e experiências a partir desse deslocamento. Porém, creio que há uma gama enorme de
trabalhos feitos com Iphones, Ipads, Tablets, nanotecnologia os quais
ainda me fazem perguntar o que, de fato, se está produzindo e
questionando artisticamente. Infelizmente, essa é uma questão cujo
debate não caberá no espaço desse artigo, mas que precisa sempre
ser colocada ao se falar nessa relação entre arte e tecnologia.
3. Algumas considerações finais
Nesse trabalho, tentei de maneira resumida, fazer uma análise de
como as relações entre arte e tecnologia podem conter a dimensão
do deslocamento e da ruptura, mesmo em sua condição contemporânea (na qual, todo
trabalho, feito em qualquer suporte, passa a ser aceito como arte).
Se antes, para as vanguardas artísticas do início do século,
aproximar-se das tecnologias de massa era um extremo ato subversivo e
de questionamento da instituição-arte; hoje, essa mesma
instituição, passou a abrigar e, até mesmo, a exigir esse tipo de relação com a técnica.
Os trabalhos em vídeo, com internet e robótica, por exemplo,
compõem atualmente parte grande da poética de muitos artistas hoje
chamados contemporâneos.
Porém, se se pensa a técnica como uma espécie de arquivo, que
possui um determinado poder consignador para reproduzir-se (ou seja,
determina práticas em seu interior e tenta eliminar a dissonância),
pode-se perceber que tipo de modus operandi se impõe a partir
dela. Será que os artistas atuais, simplesmente porque produzem
vídeos ou robôs que realizam performances, estão de fato
subvertendo esse modus operandi? Que tipo de relação
artística se pode ter com a técnica para subverter esse tal modus
operandi, em um momento atual de imensa ampliação, seja das
possibilidades dessa técnica, seja da capacidade de absorção do
mercado artístico?
A escolha de Daniel Santiago para essa análise não foi à toa. Ele
é um artista que, sim, opera a partir de técnicas como webcam,
assim como vários outros o fazem atualmente. Porém, esse artista
possui uma capacidade poética e de deslocamento estético que inserta
um ruído nesse modus operandi a que me referi. Ele não
fetichiza a webcam, por mais que se mostre através de seus vídeos a
capacidade tecnológica que essa câmera possui. Sua ação vai além
de uma experimentação pura com a tecnologia, ou uma demonstração
de como se pode ampliar suas capacidades, mas, desde dentro, opera
uma desfuncionalização da mesma.
Ou seja, se ela serve para comunicação e para fazer filmes, passa
a não ter nenhuma função quando realiza a operação poética de
desconstrução da ciência que aparecem nos filmes de Santiago. Ou
sua função é deslocada e retirada do nível da utilidade. Sim, a
câmera foi útil para a produção do vídeo, mas se ele não revela
como o fez, ninguém é capaz de saber como aquilo foi feito e com
que suporte técnico. A tecnologia aparece como a coisa menos
importante para a produção daquela poesia eletrônica que toma e
impacta poeticamente a quem a assiste. Da mesma forma que usou uma
webcam, poderia ter usado qualquer outra tecnologia. Pouco importaria
para o trabalho. A relação que se estabelece aqui é de uma
independência do poético em relação ao técnico. Este é um meio,
uma via de operação, é necessário como construção do trabalho
artístico que opera práticas que não estão dadas na configuração
original do aparato tecnológico.
Para mim, essa prática operada por Daniel é uma via possível de
ação diante dos aparatos tecnológicos dos quais a arte já não
pode fugir. Retomar a dimensão da experiência, retirar a técnica
desse lugar sagrado e distanciado do qual se encontra, sem
fetichizá-la, fazendo o poético adentrar a ação de operação da
técnica. Essa é a maior subversão que se pode realizar. Colocar o
estético e o poético no lugar do funcional, do exato ou do
entretido.
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