quarta-feira, 1 de abril de 2015

Parangolés: a política do corpo artístico

Ensaio publicado originalmente nos anais do congresso ALAS de 2011 com o título
"Do individual ao coletivo: corpo, arte e o deslocamento de identidades sociais

Para entender o corpo em sua dimensão política, à medida em que passa a tornar-se objeto do artístico, vamos, brevemente, entender um pouco essa mudança de status do corpo dentro do campo da arte. A crítica à cultura e à sociedade burguesa do Dadaísmo, levou à radicalização da tentativa de desmantelamento e dessacralização da arte burguesa. Esta era considerada como confinada no espaço interior (burguês) e servindo a um novo fetichismo colecionista (como diz Benjamin) que fomentava o mercado de arte moderna no período.

Ressignificar o que é arte, retirar a aura dos objetos artísticos, relativizá-los, colocá-los em xeque, retirar sua organicidade, todo esse movimento impulsionado pela crítica dadaísta inaugurou ações como happenings, performances e, marcou a inserção do corpo na reflexão artística. Essas ações de subversão inauguradas pelo Dadá e continuadas pelo surrealismo, foram trazidas à tona, novamente, nos anos 1960.

Momento de intensa transformação cultural e política, os anos de 1960 marcam, também, uma retomada das vanguardas como forma de contestação e protesto, tanto do social, como do campo artístico em si. As mudanças ocorridas provocam reações como a do Movimento Situacionista, que retomam ações surrealistas e dadaístas na cidade, na tentativa de desaliená-la do capitalismo. Nesse momento emergem, também, grupos como o Fluxus, que questionam, através de ações iconoclastas, o campo da arte, seus mecanismos de legitimação e, também, o contexto político contemporâneo, marcado pela sombra da guerra. E nesse contexto, a Body Art surge com força no campo da arte.

Segundo David Le Breton (2009), além das guerras e da emergência da droga, esse momento é marcado, principalmente, pela reviravolta das relações homem-mulher, questionadas, entre outros, pelo emergente Movimento Feminista. Também é um período de questionamento da moralidade antiga, principalmente por meio da liberação sexual. Dessa maneira, esse período torna-se um momento do culto do corpo. Sendo assim, o corpo torna-se o lugar, por excelência, da manifestação de uma série de incômodos, protestos e experimentações. Em suas palavras:

(…) A consciência infeliz de certos artistas é viva e conduz a formas radicais de expressões artísticas. O corpo entra em cena em sua materialidade. (…) A Body Art é uma crítica, pelo corpo, das condições de existência. (…) As performances questionam com força a identidade sexual, os limites corporais, a resistência física, as relações homem-mulher, a sexualidade, o pudor, a dor, a morte, a relação com os objetos, etc. O corpo é o lugar onde o mundo é questionado. A intenção deixa de ser a afirmação do belo para ser a provocação da carne, o virar do avesso o corpo, a imposição do nojo ou do horror. (2009:44/45)

No momento de sua emergência, a Body Art era uma manifestação artística que, pelo corpo, questionava usos corporais, ou seja, consensos sobre o uso do sexo e dos fluidos corporais, por exemplo. Questionava identidades inscritas no corpo, a partir das maneiras como esse é obrigado a se posicionar no mundo; questionava a dor e a crueldade que marcavam um período de guerras, imprimindo sofrimento ao corpo. Enfim, foi um período em que o corpo tornou-se um vetor do político, através de seu uso artístico. Dessa maneira, “sangue, músculos, humores, pele, órgãos, são colocados em evidência, dissociados do indivíduo e tornam-se elementos da obra”. (2009:45)

O artista corporal distancia-se de si, estranha seu corpo, para poder torná-lo objeto do artístico. Essa dissociação parece fundamental a essa Body Art em que o próprio artista é tornado o objeto de arte. Performances como a de Vito Acconci, em que o artista passa horas se masturbando embaixo de um salão expositivo, onde as pessoas presentes podem ouvir seus gemidos, colocam o artista na posição de próprio objeto da obra, tornando seus fluidos e membros parte desse processo. Deixa-se de ver o corpo como um conjunto do qual o artista faz parte. Esse corpo estranhado passa a servir como matéria para o questionamento social de seus posicionamentos, suas localizações, suas configurações e enquadramentos. As identidades sociais, são, assim, postas em questão, através dessas ações corpóreas individuais.

Oiticica e os parangolés: corpo, cor, favela, arte e política

Porém, ao mesmo tempo em que o corpo tornado objeto artístico parece exigir uma dissociação, um estranhamento, por outro lado ele gera uma empatia e compartilhamento, à medida em que evoca sentimentos comuns a todos. O sofrimento dos artistas que se auto-flagelam é comovente, é perturbador, nos é comum. Nos retira de uma zona de conforto, apresenta-nos uma nova forma de experienciar o corpo que não nos era conhecida, mas que passa a ser compartilhada por nós. Nos desmobiliza, mas nos reinsere em uma nova comunidade, onde passamos a compartilhar a experiência artística que nos foi dada. Nas palavras de Mouffe, nos apresenta a ruptura de um consenso a qual não podemos mais ignorar, expondo a fragilidade e o caráter construído de nossa forma de viver e usar o corpo.

E é nesse contexto de reinserção em uma nova comunidade de experiência e de ruptura de consensos sobre identidades sociais que os parangolés de Oiticica podem ser situados. A arte corporal de Oiticica, apesar de não se inserir no corpo do artista em si, provoca um estranhamento, a reinserção do corpo em um novo ambiente, diferente do cotidiano. Esse deslocamento não é tão doloroso e perturbador como o da Body Art americana, por exemplo. Ele é festivo, é popular, é compartilhado. Em Oiticica, não é o corpo se mutilando, se fragmentando e se contorcendo que questiona identidades e consensos, e sim, um corpo que se expande, que adentra o ambiente, que cresce e compartilha que o faz.

Porém, antes de falar dos Parangolés, vale fazer uma breve referência sobre o projeto neoconcretista e o que ele significou para o campo artístico brasileiro. Ele emergiu da dissidência do grupo carioca em relação ao paulista na relação com o concretismo, que se estabeleceu de maneira bem diferenciada nesses dois lugares. Emergido no cenário artístico brasileiro em fins da década de 1950, o abstracionismo concreto fazia eco ao projeto moderno de “desenvolvimento” econômico que se iniciava no país naquele período. Defendendo uma estética funcional, da forma pura, sem referência à subjetivismos, o concretismo pretendia criar uma arte da pura visualidade, que servisse à construção de uma sociedade moderna, atuando na modelação de uma visualidade moderna (exata, funcional, limpa). Através de artistas como Waldemar Cordeiro (um dos mais conhecidos), o projeto concretista ganhou visibilidade no cenário artístico e passou a orientar grande parte da produção do período.

Mas o grupo concretista carioca divergia do paulista em relação à completa exclusão da subjetividade da criação artística, que acabava por tornar o fazer artístico uma mera produção objetual. A divergência foi crescendo até chegar à total ruptura, quando o grupo carioca se auto-denominou neoconcreto e lançou um manifesto, bastante inspirado em Merleau-Ponty, afirmando a necessidade da experiência no fazer artístico, mas sem negar totalmente alguns pressupostos do abstracionismo geométrico (a exemplo da investigação sobre o espaço, por exemplo). Esse movimento inaugurou o que é conhecido como a “neovanguarda brasileira”. Uma nova proposta de criação artística estava emergindo junto com a ideia da arte como vivência em oposição à da arte como produção do concretismo. Era o nascimento da entrada da arte no espaço, no ambiente, na vida, mas não como algo funcional, mas experiencial. A dimensão da vivência, na tentativa de se opor a uma racionalidade dicotômica e excludente, acabou por fazer surgir, na arte brasileira, o espectador como participante na criação da obra de arte. O indivíduo passa a ser visto como ser no mundo, potência criativa, alteridade necessária ao processo de criação artística.

Dentro desse contexto de expansão artística do grupo neoconcreto, do qual Oiticica fazia parte, surgem os parangolés. Eles são resultado da ampliação da experimentação deste artista com a cor e o espaço. Eles radicalizam a inserção da cor no ambiente, na medida em que se tratam de capas de vestir. Mas além disso, essa nova obra de Oiticica também radicaliza um outro aspecto buscado pelo artista, desde a saída do quadro para o espaço: a participação. Parangolés é uma obra que só acontece a partir do outro. Do corpo do outro. A alteridade é essencial para a existência mesma desta obra. Nas palavras de Oiticica:
O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de estrutura ambiental, possuindo um núcleo principal: o participadora-obra, que se desmembra em “participador”, quando assiste e “obra’ quando assistida de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição por ex.) criam um sistema ambiental Parangolé que por sua vez poderia ser assistido por outros participadores de fora (OITICICA, in ALVES, 2007:34)

O participador, aqui evocado, é, ao mesmo tempo, obra e expectador. Ele é obra na medida em que coloca seu corpo como objeto artístico, vestindo o parangolés, e é expectador, ao passo que contem, em si, a possibilidade de também assistir a outro corpo-obra. Oiticica, com essa operação, ressignifica o lugar do espectador e da obra no sistema de arte e, como diria Rancière, promove uma ruptura num sistema sensível. O artista redistribui a experiência de ser artista e de ser espectador, de criar a obra, de fazer parte dela, ou apenas assisti-la. Repartilha esse sensível, reordenando lugares antes pré-determinantes do que se dava a sentir, tanto como artista, tanto como público.

Além disso, Oiticica promove, ainda, uma ruptura na medida em que confunde as noções do que é quadro, escultura e dança como sendo proposições artísticas distintas. Nessa obra, essas áreas se misturam, se integram, se intercalam para mostrar que a arte não precisa ter delimitações nem fronteiras. O parangolé é mais que uma obra, é uma teoria, um conceito de arte que quer estar além das limitações e imposições. Segundo depoimento do artista:
Para mim a característica mais completa de todo esse conceito de ambientação foi a formulação do que chamei de PARANGOLÉ. É isto muito mais do que um termo para definir uma série de obras características: as capas, os estandartes e tenda. Porque nessas obras foi-me dada a oportunidade, a idéia de fundir cor, estruturas, sentido, poético, dança, palavra, fotografia foi o compromisso definitivo com o que defino por totalidade obra, se é que de compromissos se possa falar nessas considerações. Chamarei, então, PARANGOLÉ, de agora em diante a todos os princípios definitivos formulados aqui, inclusive o da não formulação de conceitos que é o mais importante (OITICICA in: ALVES, 2007:36).

Parangolés são a tentativa de uma anti-arte, que, em si, é uma tentativa de ressignificação da arte moderna brasileira. É a reivindicação de uma arte que aconteça no ambiente, de uma repartilha do sensível, no sentido de que Oiticica abraça o espectador como participante, abre-se para essa alteridade e modifica os lugares antes determinados de quem é obra e de quem assiste a o quê. A obra pode assistir o espectador e ser vista por ele. Além disso, Parangolés trazem a ideia de uma arte que se quer agora total: cor, estrutura, movimento, dança, poesia, tudo passa a existir em uma mesma obra. Ou seja, Oiticica rompe com as distribuições dadas das expressões artísticas, refundindo-as e ressignificando-as ao reinseri-las no que ele denomina como anti-arte. Nas palavras de Daniel Alves (2007):
O Parangolé seria sustentado por interesse na busca da estrutura básica dos objetos. Interesse encontrado pelo artista naquilo que chamou de “primitividade construtiva popular” que só acontece nas passagens urbanas, suburbanas, rurais, obras que revelam um núcleo construtivo primário. O Parangolé aventou a procura daquilo que Oiticica chamou de fundação objetiva de um novo espaço e um novo tempo na obra e no espaço ambiental. Com isso o Parangolé almeja um sentido construtivo na constituição de uma Anti-arte Ambiental por excelência. Nessa Anti-arte ambiental aconteceria uma síntese de suas ordens que transitavam em algo próximo da arquitetura. (2007:34)

E essa busca por uma “primitividade construtiva popular” traz um outro aspecto político de extrema importância em Parangolés: a busca da marginalidade. A urbanidade popular, suas construções improvisadas, são marcantes nessa obra, que constitui-se, basicamente, como uma ação em tempo real, permitindo o improviso surgido a partir das proposições. Parangolés são capas coloridas, feitas para serem usadas em movimento e dependem da ação de cada um que as veste. São precários e improvisados, assim como a ação de quem irá usá-las. Se inspiram nas escolas de samba do Rio de Janeiro, em seus estandartes e fantasias, mas, principalmente, em sua musicalidade. Parece haver samba nos parangolés.

O corpo, inserido nos parangolés, deixa de ser apenas corpo, passa a adentrar o ambiente, a ser parte dele, porém ressignificando-o. Os parangolés são vetores para uma nova significação seja do espaço, seja do tempo, seja do corpo e seja da identidade do corpo que os vestem. Nesse caso, uma identidade marginal, situada nas bordas de uma cidade que a evita e invisibiliza.

Essa evocação intensa da identidade marginal é algo politicamente fundamental nos Parangolés. É aqui que Oiticica torna visível o negro favelado, morador dos morros do Rio de Janeiro, completamente invisibilizado pela classe média da cidade e, principalmente, pelo poder público da época. A romantização desse morador do morro, festeiro, sambista, improvisador, malemolente, adaptável (como a capa), é uma tentativa de torná-lo atraente, visível e notado para um Rio de Janeiro que, naquele momento, ignorava esses sujeitos de forma quase completa. É uma ação pública, política, de ressignificação de uma identidade marginal, considerada criminosa e periculosa pelo poder policial (como diria Rancière), ideia difundida e reforçada nos meios de comunicação. O corpo negro que adentra o parangolé, que dança com ele, torna-se vetor de sua ressignificação social. É o corpo individual ressignificando uma identidade social, desconstruindo o consenso que o obscurece e cala, dando-lhe visibilidade e, assim, a possibilidade de uma voz pública, a chance de construir sua própria identificação.

Claro que, atualmente, há muito que se questionar dessa identificação romantizada do marginal. Pode-se situa-la como um novo consenso obscurecedor e rotulador. Mas, o que interessa aqui identificar é essa ação de ruptura de um consenso que, na época, desconsiderava qualquer positividade na identidade marginal. Essa identificação com a marginalidade é política: subverte consensos e reivindica, numa época de ditadura militar, espaços de liberdade de expressão, no lugar onde a repressão é mais dura e cruel até hoje.

Os Parangolés são uma ação de repartilha do sensível, pois agem como vetores de criação de novos mundos sensíveis para os negros moradores de favela, que passam a experimentar uma nova experiência estética e também sensível, que incide na mudança de percepção deles sobre si mesmos. A positivação estética da identidade negra marginal atua na produção de novas subjetividades políticas que passam a reivindicar um novo espaço no comum, uma entrada no todo que não os comporta. Positivar a identidade negra revela a negatividade anteriormente dada a ela e promove a tentativa de questionamento dessa partilha do sensível que os deixava de fora. Dessa maneira, podemos dizer que Parangolés são também uma ação de ressignificação social da identidade marginal. Uma prática artística que usa o corpo como vetor de ruptura política de consensos sociais que invisibilizam e calam sujeitos, deixando-os de fora da participação na política, no social e no sensível. São, portanto, uma prática agonística no seio da esfera pública, revelando para ela identidades marginais, tornando-as aptas a lutar politicamente pela sua visibilidade.



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