Ensaio publicado originalmente nos anais do congresso ALAS de 2011 com o título
"Do individual ao coletivo: corpo, arte e o deslocamento de identidades sociais
Para
entender o corpo em sua dimensão política, à medida em que passa a
tornar-se objeto do artístico, vamos, brevemente, entender um pouco
essa mudança de status do corpo dentro do campo da arte. A crítica
à cultura e à sociedade burguesa do Dadaísmo, levou à
radicalização da tentativa de desmantelamento e dessacralização
da arte burguesa. Esta era considerada como confinada no espaço
interior (burguês) e servindo a um novo fetichismo colecionista
(como diz Benjamin) que fomentava o mercado de arte moderna no
período.
Ressignificar
o que é arte, retirar a aura dos objetos artísticos,
relativizá-los, colocá-los em xeque, retirar sua organicidade, todo
esse movimento impulsionado pela crítica dadaísta inaugurou ações
como happenings,
performances e, marcou a inserção do corpo na reflexão artística.
Essas ações de subversão inauguradas pelo Dadá e continuadas pelo
surrealismo, foram trazidas à tona, novamente, nos anos 1960.
Momento de
intensa transformação cultural e política, os anos de 1960 marcam,
também, uma retomada das vanguardas como forma de contestação e
protesto, tanto do social, como do campo artístico em si. As
mudanças ocorridas provocam reações como a do Movimento
Situacionista, que retomam ações surrealistas e dadaístas na
cidade, na tentativa de desaliená-la do capitalismo. Nesse momento
emergem, também, grupos como o Fluxus,
que questionam, através de ações iconoclastas, o campo da arte,
seus mecanismos de legitimação e, também, o contexto político
contemporâneo, marcado pela sombra da guerra. E nesse contexto, a
Body Art surge com força no campo da arte.
Segundo
David Le Breton (2009), além
das guerras e da emergência da droga, esse momento é marcado,
principalmente, pela reviravolta das relações homem-mulher,
questionadas, entre outros, pelo emergente Movimento Feminista.
Também é um período de questionamento da moralidade antiga,
principalmente por meio da liberação sexual. Dessa maneira, esse
período torna-se um momento do culto do corpo. Sendo assim, o corpo
torna-se o lugar, por excelência, da manifestação de uma série de
incômodos, protestos e experimentações. Em suas palavras:
(…)
A consciência infeliz de certos artistas é viva e conduz a formas
radicais de expressões artísticas. O corpo entra em cena em sua
materialidade. (…) A Body Art é uma crítica, pelo corpo, das
condições de existência.
(…)
As performances questionam com força a identidade sexual, os limites
corporais, a resistência física, as relações homem-mulher, a
sexualidade, o pudor, a dor, a morte, a relação com os objetos,
etc. O corpo é o lugar onde o mundo é questionado. A intenção
deixa de ser a afirmação do belo para ser a provocação da carne,
o virar do avesso o corpo, a imposição do nojo ou do horror.
(2009:44/45)
No momento
de sua emergência, a Body Art era uma manifestação artística que,
pelo corpo, questionava usos corporais, ou seja, consensos sobre o
uso do sexo e dos fluidos corporais, por exemplo. Questionava
identidades inscritas no corpo, a partir das maneiras como esse é
obrigado a se posicionar no mundo; questionava a dor e a crueldade
que marcavam um período de guerras, imprimindo sofrimento ao corpo.
Enfim, foi um período em que o corpo tornou-se um vetor do político,
através de seu uso artístico. Dessa maneira, “sangue,
músculos, humores, pele, órgãos, são colocados em evidência,
dissociados do indivíduo e tornam-se elementos da obra”. (2009:45)
O
artista corporal distancia-se de si, estranha seu corpo, para poder
torná-lo objeto do artístico. Essa dissociação parece fundamental
a essa Body Art em que o próprio artista é tornado o objeto de
arte. Performances como a de Vito Acconci, em que o artista passa
horas se masturbando embaixo de um salão expositivo, onde as pessoas
presentes podem ouvir seus gemidos, colocam o artista na posição de
próprio objeto da obra, tornando seus fluidos e membros parte desse
processo. Deixa-se de ver o corpo como um conjunto do qual o artista
faz parte. Esse corpo estranhado passa a servir como matéria para o
questionamento social de seus posicionamentos, suas localizações,
suas configurações e enquadramentos. As identidades sociais, são,
assim, postas em questão, através dessas ações corpóreas
individuais.
Oiticica e os parangolés:
corpo, cor, favela, arte e política
Porém, ao mesmo tempo em que o
corpo tornado objeto artístico parece exigir uma dissociação, um
estranhamento, por outro lado ele gera uma empatia e
compartilhamento, à medida em que evoca sentimentos comuns a todos.
O sofrimento dos artistas que se auto-flagelam é comovente, é
perturbador, nos é comum. Nos retira de uma zona de conforto,
apresenta-nos uma nova forma de experienciar o corpo que não nos era
conhecida, mas que passa a ser compartilhada por nós. Nos
desmobiliza, mas nos reinsere em uma nova comunidade, onde passamos a
compartilhar a experiência artística que nos foi dada. Nas palavras
de Mouffe, nos apresenta a ruptura de um consenso a qual não podemos
mais ignorar, expondo a fragilidade e o caráter construído de nossa
forma de viver e usar o corpo.
E é nesse contexto de
reinserção em uma nova comunidade de experiência e de ruptura de
consensos sobre identidades sociais que os parangolés de Oiticica
podem ser situados. A arte corporal de Oiticica, apesar de não se
inserir no corpo do artista em si, provoca um estranhamento, a
reinserção do corpo em um novo ambiente, diferente do cotidiano.
Esse deslocamento não é tão doloroso e perturbador como o da Body
Art americana, por exemplo. Ele é festivo, é popular, é
compartilhado. Em Oiticica, não é o corpo se mutilando, se
fragmentando e se contorcendo que questiona identidades e consensos,
e sim, um corpo que se expande, que adentra o ambiente, que cresce e
compartilha que o faz.
Porém, antes de falar dos
Parangolés, vale fazer uma breve referência sobre o projeto
neoconcretista e o que ele significou para o campo artístico
brasileiro. Ele emergiu da dissidência do grupo carioca em relação
ao paulista na relação com o concretismo, que se estabeleceu de
maneira bem diferenciada nesses dois lugares. Emergido no cenário
artístico brasileiro em fins da década de 1950, o abstracionismo
concreto fazia eco ao projeto moderno de “desenvolvimento”
econômico que se iniciava no país naquele período. Defendendo uma
estética funcional, da forma pura, sem referência à subjetivismos,
o concretismo pretendia criar uma arte da pura visualidade, que
servisse à construção de uma sociedade moderna, atuando na
modelação de uma visualidade moderna (exata, funcional, limpa).
Através de artistas como Waldemar Cordeiro (um dos mais conhecidos),
o projeto concretista ganhou visibilidade no cenário artístico e
passou a orientar grande parte da produção do período.
Mas o
grupo concretista carioca divergia do paulista em relação à
completa exclusão da subjetividade da criação artística, que
acabava por tornar o fazer artístico uma mera produção objetual. A
divergência foi crescendo até chegar à total ruptura, quando o
grupo carioca se auto-denominou neoconcreto e lançou um manifesto,
bastante inspirado em Merleau-Ponty, afirmando a necessidade da
experiência no fazer artístico, mas sem negar totalmente alguns
pressupostos do abstracionismo geométrico (a exemplo da investigação
sobre o espaço, por exemplo). Esse movimento inaugurou o que é
conhecido como a “neovanguarda brasileira”.
Uma nova proposta de criação artística estava emergindo junto com
a ideia da arte como vivência em oposição à da arte como produção
do concretismo. Era o nascimento da entrada da arte no espaço, no
ambiente, na vida, mas não como algo funcional, mas experiencial. A
dimensão da vivência, na tentativa de se opor a uma racionalidade
dicotômica e excludente, acabou por fazer surgir, na arte
brasileira, o espectador como participante na criação da obra de
arte. O indivíduo passa a ser visto como ser no mundo, potência
criativa, alteridade necessária ao processo de criação artística.
Dentro desse contexto de
expansão artística do grupo neoconcreto, do qual Oiticica fazia
parte, surgem os parangolés. Eles são resultado da ampliação da
experimentação deste artista com a cor e o espaço. Eles
radicalizam a inserção da cor no ambiente, na medida em que se
tratam de capas de vestir. Mas além disso, essa nova obra de
Oiticica também radicaliza um outro aspecto buscado pelo artista,
desde a saída do quadro para o espaço: a participação. Parangolés
é uma obra que só acontece a partir do outro. Do corpo do outro. A
alteridade é essencial para a existência mesma desta obra. Nas
palavras de Oiticica:
O
Parangolé
revela
então o seu caráter fundamental de estrutura ambiental, possuindo
um núcleo principal: o participadora-obra, que se desmembra em
“participador”, quando assiste e “obra’ quando assistida de
fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra
ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição por
ex.) criam um sistema ambiental Parangolé
que
por sua vez poderia ser assistido por outros participadores de fora
(OITICICA, in ALVES, 2007:34)
O participador,
aqui evocado, é, ao mesmo tempo, obra e expectador. Ele é obra na
medida em que coloca seu corpo como objeto artístico, vestindo o
parangolés, e é expectador, ao passo que contem, em si, a
possibilidade de também assistir a outro corpo-obra. Oiticica, com
essa operação, ressignifica o lugar do espectador e da obra no
sistema de arte e, como diria Rancière, promove uma ruptura num
sistema sensível. O artista redistribui a experiência de ser
artista e de ser espectador, de criar a obra, de fazer parte dela, ou
apenas assisti-la. Repartilha esse sensível, reordenando lugares
antes pré-determinantes do que se dava a sentir, tanto como artista,
tanto como público.
Além disso,
Oiticica promove, ainda, uma ruptura na medida em que confunde as
noções do que é quadro, escultura e dança como sendo proposições
artísticas distintas. Nessa obra, essas áreas se misturam, se
integram, se intercalam para mostrar que a arte não precisa ter
delimitações nem fronteiras. O parangolé é mais que uma obra, é
uma teoria, um conceito de arte que quer estar além das limitações
e imposições. Segundo depoimento do artista:
Para
mim a característica mais completa de todo esse conceito
de
ambientação foi a formulação do que chamei de
PARANGOLÉ.
É isto muito mais do que um termo para definir uma
série
de obras características: as capas, os estandartes e tenda.
Porque
nessas obras foi-me dada a oportunidade, a idéia de
fundir
cor, estruturas, sentido, poético, dança, palavra, fotografia
foi
o compromisso definitivo com o que defino por totalidade
obra,
se é que de compromissos se possa falar nessas
considerações.
Chamarei, então, PARANGOLÉ,
de agora em
diante
a todos os princípios definitivos formulados aqui, inclusive o
da
não formulação de conceitos que é o mais importante
(OITICICA
in: ALVES, 2007:36).
Parangolés
são a tentativa de uma anti-arte, que, em si, é uma tentativa de
ressignificação da arte moderna brasileira. É a reivindicação de
uma arte que aconteça no ambiente, de uma repartilha do sensível,
no sentido de que Oiticica abraça o espectador como participante,
abre-se para essa alteridade e modifica os lugares antes determinados
de quem é obra e de quem assiste a o quê. A obra pode assistir o
espectador e ser vista por ele. Além disso, Parangolés trazem a
ideia de uma arte que se quer agora total: cor, estrutura,
movimento, dança, poesia, tudo passa a existir em uma mesma obra.
Ou seja, Oiticica rompe com as distribuições dadas das expressões
artísticas, refundindo-as e ressignificando-as ao reinseri-las no
que ele denomina como anti-arte. Nas palavras de Daniel Alves (2007):
O
Parangolé
seria
sustentado por interesse na busca da estrutura básica dos objetos.
Interesse encontrado pelo artista naquilo que chamou de
“primitividade construtiva popular” que só acontece nas
passagens urbanas, suburbanas, rurais, obras que revelam um núcleo
construtivo primário. O Parangolé
aventou
a procura daquilo que Oiticica chamou de fundação objetiva de um
novo espaço e um novo tempo na obra e no espaço ambiental. Com isso
o Parangolé
almeja
um sentido construtivo na constituição de uma Anti-arte Ambiental
por excelência. Nessa Anti-arte ambiental aconteceria uma síntese
de suas ordens que transitavam em algo próximo da arquitetura.
(2007:34)
E essa
busca por uma “primitividade construtiva popular” traz um outro
aspecto político de extrema importância em Parangolés:
a busca da marginalidade. A urbanidade popular, suas construções
improvisadas, são marcantes nessa obra, que constitui-se,
basicamente, como uma ação em tempo real, permitindo o improviso
surgido a partir das proposições. Parangolés
são capas coloridas, feitas para serem usadas em movimento e
dependem da ação de cada um que as veste. São precários e
improvisados, assim como a ação de quem irá usá-las. Se inspiram
nas escolas de samba do Rio de Janeiro, em seus estandartes e
fantasias, mas, principalmente, em sua musicalidade. Parece haver
samba nos parangolés.
O corpo, inserido nos
parangolés, deixa de ser apenas corpo, passa a adentrar o ambiente,
a ser parte dele, porém ressignificando-o. Os parangolés são
vetores para uma nova significação seja do espaço, seja do tempo,
seja do corpo e seja da identidade do corpo que os vestem. Nesse
caso, uma identidade marginal, situada nas bordas de uma cidade que a
evita e invisibiliza.
Essa
evocação intensa da identidade marginal é algo politicamente
fundamental nos Parangolés.
É aqui que Oiticica torna visível o negro favelado, morador dos
morros do Rio de Janeiro, completamente invisibilizado pela classe
média da cidade e, principalmente, pelo poder público da época. A
romantização desse morador do morro, festeiro, sambista,
improvisador, malemolente, adaptável (como a capa), é uma tentativa
de torná-lo atraente, visível e notado para um Rio de Janeiro que,
naquele momento, ignorava esses sujeitos de forma quase completa. É
uma ação pública, política, de ressignificação de uma
identidade marginal, considerada criminosa e periculosa pelo poder
policial (como diria Rancière), ideia difundida e reforçada nos
meios de comunicação. O corpo negro que adentra o parangolé, que
dança com ele, torna-se vetor de sua ressignificação social. É o
corpo individual ressignificando uma identidade social,
desconstruindo o consenso que o obscurece e cala, dando-lhe
visibilidade e, assim, a possibilidade de uma voz pública, a chance
de construir sua própria identificação.
Claro que, atualmente, há muito
que se questionar dessa identificação romantizada do marginal.
Pode-se situa-la como um novo consenso obscurecedor e rotulador. Mas, o
que interessa aqui identificar é essa ação de ruptura de um
consenso que, na época, desconsiderava qualquer positividade na
identidade marginal. Essa identificação com a marginalidade é
política: subverte consensos e reivindica, numa época de ditadura
militar, espaços de liberdade de expressão, no lugar onde a
repressão é mais dura e cruel até hoje.
Os
Parangolés
são uma ação de repartilha do sensível, pois agem como vetores de
criação de novos mundos sensíveis para os negros moradores de
favela, que passam a experimentar uma nova experiência estética e
também sensível, que incide na mudança de percepção deles sobre
si mesmos. A positivação estética da identidade negra marginal
atua na produção de novas subjetividades políticas que passam a
reivindicar um novo espaço no comum, uma entrada no todo que não os
comporta. Positivar a identidade negra revela a negatividade
anteriormente dada a ela e promove a tentativa de questionamento
dessa partilha do sensível que os deixava de fora. Dessa maneira,
podemos dizer que Parangolés
são também uma ação de ressignificação social da identidade
marginal. Uma prática artística que usa o corpo como vetor de
ruptura política de consensos sociais que invisibilizam e calam
sujeitos, deixando-os de fora da participação na política, no
social e no sensível. São, portanto, uma prática agonística no
seio da esfera pública, revelando para ela identidades marginais,
tornando-as aptas a lutar politicamente pela sua visibilidade.
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