Brasil dos anos 1960/1970: arte, cidade e agonismo
Na
arte brasileira a questão política em conjunto com a preocupação
estética, de experimento linguístico, foi marcante nos anos 1960 e
1970. Os concretistas cariocas do grupo Frente, em desacordo com as
propostas paulistas, fundam o Neoconcretismo, movimento que tem em
Ferreira Gullar seu principal formulador teórico. Os artistas Ligya
Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica são os mais conhecidos -
responsáveis pelos futuros desdobramentos do Neoconcretismo que
irão, entre outras coisas, marcar a inserção da arte no ambiente,
no espaço público.
É
a partir da década de 1960, que essa radicalização das
experiências neoconcretas promovida por artistas como Lygia Clark,
Ligya Pape e Hélio Oiticica se desenvolve. A questão política
intervém no trabalho desses artistas de forma impactante, refletida
nas experiências artísticas empreendidas por eles nesse momento. É
quando Lygia Clark vai buscar a participação do público com os
Bichos,
esculturas que só se completam a partir da manipulação do
espectador, por exemplo. Ou quando Hélio Oiticica radicaliza o
envolvimento do outro a partir dos parangolés,
esculturas de vestir, trabalhos que só existem a partir do
expectador que precisa vesti-lo, adentra-lo. Para Paulo Sérgio
Duarte (2008), essas contribuições serão decisivas para a passagem
do moderno ao contemporâneo na arte brasileira.
E
são decisivas, também, por inserir, de maneira inédita, a questão
do envolvimento do artista com o espaço público, com o ambiente e
com o outro que habita esse lugar. Por inserir, segundo o
entendimento de Chantal Mouffe (2007), o agonismo no espaço público
e político da cidade. Envolver o outro, nesse momento, representava
tirar os sujeitos de sua passividade crônica, ativá-los, torná-los
políticos (no sentido Mouffiano) – ou seja, torná-los passíveis
de lutar, de ter voz no espaço público.
Para
Mouffe, o político
é
a dimensão do antagonismo – do conflito. Ele diferencia-se da
política, visto
que esta se refere ao conjunto de instituições, discursos e
práticas que tentam estabelecer uma certa ordem, que organizam a
existência humana. Porém, a capacidade estruturante e organizativa
da política se dá através de condições potencialmente
conflitivas, visto que são afetadas pela dimensão do
político (Mouffe,
2007:18). Desse modo, o antagonismo está constantemente presente nas
relações sociais.
Sendo assim, é a relação entre o político e a
política que baseia a democracia radical de Mouffe e Laclau.
Nesse
espaço de democracia pluralista, o âmbito do político
tem
que se transformado no da política.
Isto
pressupõe, segundo Mouffe, que o inimigo a ser destruído deve
passar a ser visto como adversário a se enfrentar - alguém com
ideias distintas que devemos combater, mas cujo direito a defender
essas ideias será inquestionável. No campo da democracia radical, o
antagonismo,
ao invés de ser eliminado, deve ser transformado em agonismo.
Logo,
a questão para Mouffe não é se a arte é política ou não, mas
sim observar as formas possíveis de arte crítica. Essas formas se
traduzem, em Mouffe, na capacidade que a arte que apresenta de
provocar dissensões, de tornar visível o que o consenso dominante
obscurece. A arte crítica, em Mouffe,
(…)
está constituída por uma diversidade de práticas artísticas
voltadas à dar voz a todos os silenciados no marco da hegemonia
existente. (…) o projeto agonista é, particularmente, apropriado
para entender a natureza das novas formas de ativismo artístico que
têm surgido recentemente e que, de formas diversas, vêm
encaminhadas à impugnar o consenso existente. (Mouffe, 2007: 67/68)
A arte crítica, para Mouffe, é a que está perpassada pela dimensão do político, do conflito. É a que realiza intervenções agonísticas no espaço público, não para promover uma ruptura total com um estado de coisas existente e criar algo absolutamente novo, mas para provocar rupturas, conflitos, ruídos que tragam ao nível da esfera pública discussões, questões, identidades e sujeitos obscurecidos, soterrados sob o pensamento universal do capitalismo.
E
dentro do entendimento de Mouffe do que é o político na arte (a
capacidade de inserir a crítica e a ruptura no espaço público
através do artístico) que pode-se observar como arte e a política
se relacionavam no Brasil dos anos 1960 e 1970. No momento em que
autores como Jameson e Bürguer pregavam o fim da capacidade crítica
da arte pós-moderna, o recrudescimento do governo militar no Brasil
ampliava as experiências no espaço público, palco privilegiado
para as manifestações artísticas mais radicalmente críticas.
Neste momento, grande parte dos artistas não estava tão preocupada
em produzir para o mercado de arte, para expor em galerias ou museus.
A ditadura – e sua consequente censura aos artistas – impôs uma
nova relação artística baseada na necessidade de expressão, de
crítica e protesto contra a situação sócio-política.
Este
período marca o surgimento, além das experiências ambientais
marginais de Oiticica, de manifestações artísticas cunhadas com o
termo arte de
guerrilha
- em que os artistas realizavam ações isoladas, mas com grande
potencial ruptor e desestabilizante. É o caso do conhecido trabalho
Trouxas (1970)
de Arthur Barrio, por exemplo – intervenção urbana em que foram
jogadas trouxas ensanguentadas de carne no Rio Arrudas, em Belo
Horizonte. As trouxas iam parando nas margens do rio e chamando a
atenção dos transeuntes e moradores, por assemelhar-se à imagem de
um cadáver coberto por um lençol. Essa era uma crítica aos
desaparecimentos de civis durante a ditadura e uma espécie de
denúncia dos “desovamentos” de corpos dos assassinados políticos
– crimes nunca desvendados.
Outro
exemplo de trabalho de guerrilha - pequenas ações que adentram o
espaço público e provocam ruídos - é o trabalho de Cildo Meireles
Inserções em
Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula (1970).
A ação consistia em carimbar em cédulas de cruzeiro (moeda
corrente no Brasil do período) a pergunta incisiva: Quem
Matou Herzog?,
jornalista assassinado nos porões da ditadura naquele ano. Neste
trabalho, o artista busca criar um sistema alternativo de informação,
questionando a versão oficial da mídia de suicídio. A facilidade
de circulação da moeda, permite que a mensagem adentre o espaço
público, provocando o conflito, gerando a dúvida em relação à
versão hegemônica. A crítica, por sua vez, é protegida pelo
anonimato, já que a circulação não permite conhecer a origem da
mensagem.
Em
Recife, mais especificamente, a arte realizada no espaço público
tem, se não o seu nascimento, sua ascensão no cenário artístico
promovido por artistas como Paulo Bruscky e Daniel Santiago. Eles
foram pioneiros na expansão dos suportes artísticos para além da
pintura e da escultura no cenário recifense.
De caráter crítico, as
intervenções urbanas de Bruscky e Santiago estão sempre
questionando o contexto político e social onde se inserem, o cenário
artístico em voga e todos os seus postulados sobre o que é arte e o
que não é. Um exemplo que bem apresenta as características da
arte realizada por estes artistas naquele período é o projeto
Chanteclair (1978),
no qual os artistas organizaram uma exposição na zona de
prostituição da cidade. O fato de se realizar um evento artístico
em uma área da cidade socialmente depreciada, a ressignifica,
subverte seus sentidos para revalorizá-la.
Trazer
a Zona de prostituição para a arte, representa trazer um mundo
soterrado pelo discurso moral dominante à visibilidade. É dar aos
seres que habitam esse mundo a possibilidade de aparecer, de existir
no espaço público, de poder falar sobre si dentro do espaço
antagonista que os calam.
Manifestações
agonistas contemporâneas
Atualmente também são
inúmeros os exemplos de artistas que atuam no espaço público,
provocando rupturas, desvendando fatos e pessoas calados pelo
consenso dominante, inserindo o agonismo no espaço democrático da
cidade. Ações como a do artista Krzysztof
Wodiczko são mecanismos de rupturas e desvendamentos dentro do
espaço público, através da inovação e pesquisa artísticas.
Wodiczko trabalha sobre os monumentos das cidades, independentemente
de suas formas, já que para ele a arquitetura pode funcionar como um
agente ideológico ou um parceiro psicológico e tanto pode educar
como participar no processo de socialização, na forma como integra
seu corpo com nossos corpos, na forma como pode mudar ou destruir
nossas vidas (Freire,1997). Este artista faz intervenções com
projeções de imagens em prédios públicos em várias cidades.
Uma
das mais conhecidas, é a projeção de um míssil feita sobre um
monumento da internacional comunista em uma cidade da Polônia. Esse
trabalho é irônico por subverter o significado original do
monumento – uma exaltação à revolução comunista – e colocar
sobre ele questionamentos outros sobre a violência e a validade
dessa revolução para a população.
Ainda
mais recente é o trabalho do artista polonês Artur Zmijewski.
Trazido para participar do projeto Políticas da Arte, da Fundação
Joaquim Nabuco,em 2010, o artista apresentou vídeos que, com ironia, trazem
à tona questões soterradas da discussão em seu país. Em um dos
vídeos, pessoas brincam nuas dentro de um espaço apertado e
sufocante. Correm dando tapinhas umas nas outras, num frenesi quase
infantil. Durante cerca de dez minutos, tenta-se descobrir onde é que
estas pessoas estão, até que o artista revela que estão todos
presos em uma antiga câmara de gás de um campo de concentração
polonês.
Porém,
o vídeo mais impressionante é o que contém, reunidas em uma mesma
sala, pessoas de diversas facções ideológicas da polônia: um
grupo católico reacionário, outro mais liberal e outro comunista. O
artista cria uma espécie de dinâmica de grupo explosiva entre eles,
revelando suas hostilidades e levando-os à guerra, literalmente.
Num primeiro dia, os participantes são convidados a criar símbolos
que representem aquilo que acreditam e porque lutam. No outro dia,
são feitas camisas para cada um com estes símbolos,
identificando-os como diferentes uns dos outros. Num outro momento,
eles são convidados a modificar no símbolo do grupo oposto aquilo
que creem ser ofensivo aos seus ideais (que está errado).
Tudo
começa bem civilizadamente, as pessoas receosas de interferir nos
símbolos do outro grupo, pedindo licença e desculpa, discordando de
forma educada e discreta. Porém, ao final da semana, os
participantes já estão discutindo entre si, se agredindo
verbalmente, destruindo as camisas uns dos outros, tocando fogo nos
emblemas e atirando-os pela janela. Um verdadeiro cenário de guerra
se forma e as pessoas já nem se importam mais com a câmera do
artista que, impassível, somente assiste a confusão.
Zmijewski,
como um cientista, reproduz em laboratório a realidade que domina o
exterior no seu país. Os conflitos ideológicos que levam à guerras
e disputas constantes, que provocam imensa instabilidade política,
estão representados no nível da população comum. Não são homens
da política, mas sim senhoras e jovens, habitantes da Polônia,
divididos politicamente em facções hostis. O artista mostra, assim,
aos próprios participantes, como o ódio está baseado em ideias, em
símbolos que os levam a uma luta sangrenta em defesa deles. Mostra à
Polônia que tudo não passa de construções verbais e simbólicas e
que é possível modificá-las. Tenta destruir o discurso hegemônico
rompendo-o em sua origem, causando o ruído e a dúvida sobre a sua
validade universal. “Será mesmo que tem que ser assim? Será que
não pode ser de outro jeito?”, os participantes perguntam-se ao
deparar-se com os restos de sua guerra.
Ao questionar-se sobre suas verdades, os participantes deixam
entrever o ruído que foi inserido no espaço público pelo trabalho
de Zmijewski. A arte, aqui, mostrou sua capacidade ruptora e
ressignificativa de discursos e verdades universais.
É
assim que a arte pós-moderna – também conhecida como
contemporânea – é crítica. Ela não mais se engaja em projetos
amplos de modificação universal da sociedade. A arte, agora, abriga
o político, a condição de poder inserir questionamentos,
conflitos, rupturas e revelações no espaço público, subvertendo
discursos, ativando sujeitos e revelando identidades definidas e
obscurecidas por discursos dominantes e excludentes. Já não se
trata mais de uma mudança universal da sociedade, mas de pequenas
inserções críticas, voltadas para inserir o agonismo no espaço
público antagonista. A arte já não tem mais a necessidade de ser
política, de servir a um projeto político amplo de revolução e
libertação dos sujeitos. Ela só precisa ser arte, dentro do espaço
público da sociedade global onde ela se insere.
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