Trecho de texto originalmente publicado na edição número 5 da Revista Caiana. Disponível em: http://caiana.caia.org.ar/template/caiana.php?pag=articles/article_1.php&obj=158&vol=5
Desde o ato icônico realizado por Duchamp (o de colocar um urinol para participar de um salão) que jogar
com as características das instituições, suas limitações e
restrições passou a existir enquanto práticas artísticas de questionamento da instituição arte. E durante o período dos anos 1960 e 1970, que pode se considerado de expansão e aprofundamento destas manifestações vanguardistas anteriores, esse tipo de ação passou a fazer parte, de forma mais sistemática, das poéticas de artistas emergidos nesse período. Essa produção, surgida após a expansão promovida pelo conceitualismo, acabou ficando conhecida – após o crítico Benjamin Buchloh3
assim a nomear - como Crítica Institucional.
No
texto icônico Conceptual
Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique
of Institutions,
ao analisar
a produção artística realizada entre o período de 1960/1970 nos
Estados Unidos,
Buchloh avalia que os questionamentos iniciados pelos artistas
conceituais, pós-minimalismo e Pop Art, se davam desde uma
programática revelação (e questionamento) dos critérios de
julgamento e validação do estético, que se torna, aqui, mais uma
questão de poder que de gosto. O resultado dessas operações, diz
ele, é que a definição da estética se torna, por um lado, matéria
de uma convenção linguística e, por outro, função de, tanto um
contrato legal, como um discurso institucional (um discurso do poder,
mais do que de gosto). Essa erosão trabalha, assim, não somente
contra a hegemonia do visual, mas contra a possibilidade de qualquer
outro aspecto da experiência estética como autônoma e
autossuficiente.
Em outras palavras, Buchloh identifica como artistas, levados pela prática da Arte Conceitual a ultrapassar o objeto artístico em seus questionamentos, chegam a realizar uma prática que é imaterial, discursiva e que começa a se realizar a partir das estruturas linguísticas, discursivas e de sentido que permeiam desde o objeto artístico até a forma de sua exibição. Ao se aterem à desmaterialização do objeto, à sua definição enquanto arte ou não-arte, diz Buchloh, se situam em um nível contratual e administrativo da crítica (Crítica Administrativa), investigando os parâmetros contratuais (no sentido de um contrato social compartilhado) de definição dos objetos de arte. Ao ampliarem o foco dessa investigação para o museu, as galerias, as instituições como o espaço que define e onde acontece o contrato, aí se dá o que ele chama de Crítica Institucional.
É importante ressaltar que, nesse momento, Buchloh não cria um conceito para definir essas práticas. Nesse texto, sem pretender inciar uma espécie de definição teórica de uma prática artística específica, Buchloh estava apenas analisando, retrospectivamente, a produção de Arte Conceitual nos Estados Unidos. Porém, foi esse ato de classificação (em prol do reconto histórico da produção da Arte Conceitual) que posteriormente definiu essa prática e também o que se convencionou chamar de a primeira geração da Crítica Institucional.
Sendo assim, ficou com os artistas Marcel Broodthaers, Hans Haacke, Daniel Buren, Michael Asher o título de primeira geração da Crítica Institucional e situá-los dentro de uma prática definida que, posteriormente, seria retomada por uma segunda geração, a qual promoveria algumas ampliações. Ou seja, se passou a definir e falar sobre a Crítica Institucional, não apenas como uma ação dentre várias do conceitualismo, mas como uma espécie de prática, como se esta tivesse sido mesmo um movimento de arte. E o que facilitou essa compreensão foram as semelhanças encontradas entre esses artistas: a crítica aos discursos subjacentes às instituições como material de criação artística; a revelação das ficções, ou seja, arbitrariedade discursiva, que permeiam as instituições (naturalizadas em forma de cânones) e seus mecanismos econômicos e políticos; e o questionamento das instituições como lugares privilegiados para a compreensão e fruição da arte.
Em outras palavras, nesse período de surgimento, a Crítica Institucional estadunidense e europeia volta-se, principalmente, para os museus e galerias e vislumbra suas estruturas, discursos e práticas como material de produção artística. Ao mesmo tempo que se realizam no interior das instituições, as práticas têm como foco a produção de uma fissura nas estruturas discursivas destas. Objetivam o cânone institucional, os agentes de sua reprodução e os efeitos destes sobre artistas e trabalhos. A crítica política e econômica que acontece se dá desde a própria instituição e incidindo nesta.
Um exemplo deste tipo de ação é o trabalho do artista Hans Haacke, Momma Poll4 (1970). Durante a mostra Information, uma das maiores exposições de Arte Conceitual realizadas nos anos 1970 no MoMa, Haacke colocou duas urnas de acrílico de votação no espaço expositivo convidando o público a opinar sobre a seguinte questão: “O fato do governador Rockefeller não haver denunciado a política do presidente Nixon na Indochina será uma razão para você não votar nele em novembro?”. Havia um local para o sim e outro para o não e o primeiro foi o que acabou mais cheio.
Haacke só revelou o conteúdo da pergunta no dia da abertura da exposição. O fato de inquirir sobre a participação do governador Rockefeller em eventos relacionados à guerra do Vietnam era especialmente polêmico, visto a recusa da população ao envolvimento do país no conflito. E a polêmica aumentava ao se recordar que a família Rockefeller foi uma das fundadoras do MoMa, tendo o próprio Nelson sido presidente da instituição por anos.
O
irmão de Nelson, David Rockefeller, que era o presidente do Moma na
época de Information,
pediu que a obra de Haacke fosse retirada da mostra. Porém John
Hightower, diretor naquele período, não seguiu as ordens da
presidência, mantendo Momma
Poll na
exposição (e acabou demitido depois).
O trabalho de Haacke, então, foi exibido tempo suficiente para provocar desestabilizações institucionais importantes (e também para se tornar uma referência de ações nomeadas como Crítica Institucional). É conhecida a relação do MoMa com os interesses políticos do Estado Estadunidense, atuando como forte via de propaganda ideológica deste, especialmente nos países latino-americanos. Geralmente mascaradas sob a forma de “apoios” culturais, incentivo à produção artística latino-americana, o MoMa, através do seu principal financiador, Rockefeller, realizou uma forte campanha, principalmente no período dos anos 1950, de inserção cultural em países como o Brasil, por exemplo. Incentivava artistas à realizar bolsas e residências nos Estados Unidos, além de financiar a criação de instituições nacionais e eventos como a Bienal de São Paulo. Dessa forma, o impacto da obra de Haacke é tornar evidente e público o envolvimento do MoMa com toda a estrutura política estadunidense, revelando o quão pouco “neutro”, distanciado e imaculado era aquele espaço. As paredes brancas do espaço expositivo diziam muita coisa sobre relações políticas, interesses econômicos e a geopolítica do país. Era preciso fazê-las falar.
Crítica
Institucional – a formação do cânone
Se até o momento se disse que Buchloh, por uma necessidade metodológica de situar artistas identificados com a prática da Arte Conceitual em suas diferentes estratégias, cunhou o termo Crítica Institucional, a emergência desse termo como um cânone, ou seja, um conceito definidor de práticas artísticas, se deu nos anos 1980, a partir de artistas identificados com essas práticas realizadas nos anos 1960/1970, como reconhece a própria Andrea Fraser5. Nesse momento de retomada, a questão da definição do que é Crítica Institucional se tornou mais evidente (e, creio eu, também necessária). A necessidade vinha da própria prática que pedia novos questionamentos sobre o que é instituição – algo já iniciado pelos próprios artistas da primeira geração – e sobre a inserção em um outro contexto, agora de abertura para o neoliberalismo, financeirização da arte e processos de estabilização dos novos sujeitos emergidos nas lutas dos anos 1960 na arena política (feministas, movimentos negros e queers).
E
foi a partir daí que a reflexão sobre a Crítica Institucional
tomou corpo e começou a alargar seu campo para além da instituição
como museu, galerias ou colecionadores. Se a primeira geração já
se havia dado conta de que os artistas, eles mesmos, são também
instituição, participam para sua existência, reprodução ou
ruptura, a segunda geração desenvolve de maneira ainda mais ampla
essa consciência, tornando o sujeito-artista e sua prática o
fundamento da Crítica Institucional. A instituição agora é
reconhecida como um conjunto de discursos e práticas que, se por um
lado são autônomos (no sentido de que conformam seu próprio
mundo), por outro estão em estreita conexão com outras instituições
sociais que o modelam e conformam também.
Daí que foi possível para os artistas da segunda geração, como Andrea Fraser, Fred Wilson, Reneé Green - tidos como os mais citados -, iniciarem uma prática de questionamento que incluíam as discussões feministas, o pós-colonialismo, além da própria crítica ao apoio que as artes prestavam à ideologia neoliberal, através dos museus-empresas. Não somente o museu, ou o sistema de arte estão em jogo nas práticas críticas desses artistas, mas posições e definições de sujeitos, uma episteme que subjaz não apenas as relações museológicas que se estabelecem, mas também relações sociais que determinam lugares, seguindo uma hierarquização quase sempre desvantajosa para negros, mulheres, homossexuais. O museu é o lugar de explicitação dessas relações sob determinadas práticas. A visão do outro (especialmente o negro) como exótico ou selvagem, a posição da mulher como objeto passivo da representação (especialmente de seu corpo) e quase nunca como agente no fazer representativo; enfim, o questionamento do outro como objeto, do museu como lugar do espetáculo e ambiente privilegiado da crescente financeirização da arte (e do artista). A revelação e questionamento de uma episteme colonialista e instrumentalizadora são os marcos críticos dessa nova fase da Crítica Institucional (e que continuam até hoje no trabalho de alguns dos artistas citados, especialmente Andrea Fraser).
Porém, a aceitação dos trabalhos dessa nova geração não foi pacífica. Vários críticos veem nesse momento, uma tentativa de ampliação da Crítica Institucional que acabou por reificá-la mais. E uma dificuldade de aceitação que me parece central nesses críticos é o fato de que essa nova geração modificou o entendimento do que é instituição, tornando-a generalizada. Entender essa noção ampliada, essa noção sociológica da instituição, parece tarefa difícil pra muitos críticos, que acabam, por conta disso, sem conseguir enxergar um outro lado da crítica dessa segunda geração em suas práticas e escritos.
Essa ampliação crítica realizada pela Crítica Institucional nos anos 1980 já era identificável no trabalho dos artistas latino-americanos. Retomando as considerações feitas por Ramírez anteriormente, esta autora destaca o papel do questionamento político e ideológico das ações de crítica à instituição existente em vários trabalhos realizados na América Latina. Os contextos de ditadura em vários países, a repressão, o envolvimento do poder econômico com essa situação política e a condição de colonizados eram temas que surgiam em vários trabalhos nesse período. Ou seja, o conceitualismo, aqui, além de assumir um percurso diferente de surgimento, assumiu formas críticas que, mesmo presente em alguns trabalhos nos anos 1960 nos Estados Unidos e Europa, só vieram aparecer mais fortemente nos anos 1980.
Há que se dizer que a Crítica Institucional, em seu momento inicial, já levava em consideração as relações políticas e econômicas que se esquadrinham sob os museus e galerias. Mas, nos anos 1980, essa crítica se amplia para não só desvendar estruturas subjacentes nos museus, mas entendê-los como espaços produtores (e reprodutores) de formas de conhecimento e discursos (ideológicos) que são excludentes, desiguais ou economicamente determinados. Em sua segunda fase, a Crítica Institucional operava não apenas no desvelamento (e também), mas na interferência nos modos de produzir conhecimento existente nos museus. Pensando no caso particular da América Latina, os artistas antes de desvelar, pretendiam inserir a crítica dentro das instituições. Realizavam ações similares às dos artistas da segunda geração, inserindo a crítica ao contexto mais amplo nas instituições, considerando-as nessa operação. Uma tática de produção da crítica social a partir da instituição e em seu interior.
3
Benjamin Buchloh, Conceptual
Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique
of Institutions..
In: October, Vol. 55 (Winter, 1990), pp. 105-143, 1990.
4Hans
Haacke, Momma Poll, 1970,
duas urnas de acrílico, células foto-elétricas, dispositivo de
contagem, gráfico de registro dos resultados, cartaz com pergunta
sobre alguma questão política da época, Museum of Modern Art,
Nova York.
5Andrea
Fraser, Da
Crítica das Instituições a uma Instituição da Crítica. In:
Revista Concinnitas ano
9, volume 2, número 13, dezembro 2008, p. 179-187,.
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