quarta-feira, 17 de junho de 2015

Grupo Fluxus: um breve preâmbulo desde Walter Zanini


Texto Inédito

Quando se pesquisa e se reflete sobre a história recente do campo da arte contemporânea, é impossível ignorar a importância e a presença do Grupo Fluxus. As práticas realizadas pelos artistas que dele fizeram parte irão influenciar em vários aspectos as práticas conceituais posteriores: a performance e o happening, os usos de novas tecnologias midiáticas, o questionamento social e político presente nas obras, o compartilhamento e o trabalho em rede, são algumas das características do Fluxus que poderão ser bastante encontradas em vários trabalhos realizados no período de fins dos anos 1960 e década de 1970 (e até em vários trabalhos produzidos atualmente).

Segundo Walter Zanini (2003), o Fluxus tem fontes de inspiração complexas e diversas, sendo possível destacar: o futurismo italiano (especialmente Luigi Russolo e seus experimentos com o ruído); o construtivismo russo da Frente de Esquerda das Artes (no que tange a uma certa ideologia Fluxus de comprometimento social da arte); o músico e performer John Cage (que ampliará a investigação musical até o nível da performance e da anulação da composição para enfatizar o som aleatório).

Emergindo em um período entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, os artistas participantes de Fluxus, especialmente o seu mentor e maior organizador, George Maciunas (lituano radicado em Nova Iorque), estiveram conectados com o período que Foster chama de primeiro retorno vanguardista, ou seja, momento em que as questões da vanguarda eram retomadas per si na tentativa de realizar um novo questionamento da instituição arte do período. Essa característica aparece de modo mais claro no discurso de Maciunas, destacado por Zanini. Segundo este autor, "Maciunas pretendia, acima de tudo, na atmosfera poética do trabalho que foi iniciador, uma arte feita de simplicidade, antiintelectual, que desfizesse a distância entre artista e não-artista, uma arte em estreita conexão com a normalidade da vida e segundo princípios coletivos e finalidades visceralmente sociais” (2003:12).

Desse modo, nos manifestos escritos por Maciunas, estava presente o questionamento do artista enquanto produtor privilegiado, o que sugeria a proposta de fim da categoria artista (ou seja, a integração total do fazer artístico com o fazer prático da vida); assim como também rejeitava o objeto de arte como um bem não-funcional a ser vendido e meio de vida para um artista e em favor de uma produção antiindividualizada. E assumir a posição contrária ao sistema artístico imperante, tinha que incluir os próprios meios de expressão de Fluxus: concertos (como eram chamados os happenings realizados pelos artistas), publicações, arte correio, videoarte, etc. Estas ações eram, na melhor das hipóteses, consideradas transitórios (uns poucos anos) e temporárias. Ou seja, estariam presentes e seriam realizadas até o momento em que as belas artes pudessem ser totalmente banidas (ao menos em suas formas institucionais) e os artistas encontrassem outra ocupação.

O nome de batismo do grupo, dado por Maciunas, foi bem representativo de como o Fluxus atuou. Escolhido do latim, a palavra que significa “mudança contínua”, “estado não-determinado”, “flutuante” representa bem o que foi o grupo, uma comunidade de artistas espalhados por várias partes do mundo (especialmente Estados Unidos e Europa) que contribuíam com distintos projetos e ações, reunidos em rede (uma das primeiras conexões em rede realizadas antes da internet, foi dos artistas do grupo Fluxus reunidos em torno da mail art).

O projeto, desde o princípio desterritorializado, iniciou em Nova Iorque, em início da década de 1960, quando artistas se reuniam na galeria de Maciunas (só para lembrar, ele mesmo um desterritorializado). Segundo ainda Zanini, a AG Galery converteu-se, “em 1961, por breve tempo, em núcleo de conferências e performances musicais (ou concertos, como eram ironicamente nomeadas)” (2003:12). Nessas reuniões, estavam presentes artistas como La Monte Young, Dick Higgins, Toshi Ichiyanagi, Yoko Ono, Al Hansen, Walter de Maria, Jackson Mac Low, Ray Johnson, Henry Flint, Philip Corner, Richard Maxfield (que foi professor de Maciunas), além de John Cage, uma espécie de mentor e mestre de vários destes artistas. Nessas ocasiões, “rememorará depois Maciunas, fazia-se tudo o que Fluxus fez mais tarde, porém sem utilizar esse nome"(2003:12).

Nessa mesma época, Maciunas acabou obrigado a ir para a Alemanha, em finais de 1961, e levou consigo um numeroso material entre partituras e outros documentos os quais esperava publicar. Nessa época, iniciou um projeto de uma revista para a qual pôs o nome de Fluxus. Porém, sem dinheiro para realizar as publicações que desejava, aproveitou as partituras para realizar festivais em Colônia, na Alemanha (onde estava residindo), contando com a participação de vários artistas que conheceu durante sua estadia na Alemanha. Entre eles estava Nam June Pake (conhecido também por seus experimentos com televisores) e Wolf Vostell.

A partir destes festivais, surgiu o que seria depois nomeado de Grupo Fluxus. Zanini relata que a “certidão de nascimento” do grupo foi a multiperformance Fluxus Internationale Festpiele Neuester Musik (Festival Internacional Fluxus de Música Novíssima), realizada no salão de festas do Museu do Estado de Wiesbaden, entre 1 e 23 de setembro de 1962. Constavam nesse projeto 14 concertos de músicos e artistas de diversas nacionalidades, ativos em dois continentes. Segundo Zanini, "o grupo fez, assim, seu aparecimento como fruto de uma internacionalização de propósitos. As performances tinham sua base na música ou antimúsica que criavam com revolucionário caráter teatral, visual e sonoro, através de ações em que além de Cage, havia a influência dos rumores de Luigi Russolo” (2003:13).

Após este primeiro festival, se seguiram vários outros, realizados em distintos lugares da europa, desde Londres, como Dusseldorf, Copenhague, Paris, Estocolmo, Oslo, Amsterdã-Haia e Nice, entre 1962 e 1963. Nesses seguidos eventos, foram agregados novos nomes e uma rede de núcleos de Fluxus foi se formando. Somente a partir de 1964 que os concertos serão realizados também em Nova Iorque. Todos esses eventos levaram a que a comunidade artística em torno do Fluxus fora bastante ampliada nos anos 1960. E apesar da óbvia maioria de estadunidenses e europeus, houve numerosa participação de artistas japoneses (radicados em Nova Iorque ou mantendo relações pelo núcleo de Tóquio), além do coreano Nam June Paik. Na América do Sul, Fluxus contou com associados como Mauro Kagel, na Argentina e Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Sílvio Hansen, Ypiranga Filho e outros, no Brasil (mais especificamente, no Recife). Os associados de Fluxus distribuíam-se ainda por numerosos países do leste europeu (como na então Checoslováquia de Mila Knizák).

Sendo territorialmente difuso, Fluxus irá se caracterizar também por uma variedade de ações e meios utilizados pelos artistas que compunham a rede. O happening será uma das principais formas de expressão artística do grupo, visto sua vinculação inicial em torno dos concertos realizados por Maciunas em que performance (realização de um ato cênico) e o uso de objetos cotidianos para a obtenção de sons, eram destaques. E como happenings que são, diz Zanini, “os concertos Fluxus tinham antecedentes nas vanguardas históricas e, em tempo mais recente, na conhecidíssima experiência multidisciplinar de Untitled Event (Evento Sem Título) de Cage, em Black Mountain College (1952) e no considerado primeiro happening no ocidente, em 1959, de Kaprow, artista próximo ao Grupo Fluxus em seus inícios” (2003:17). É importante também ressaltar a relação de Fluxus com a atividade performática desenvolvida no Japão por grupos de artistas e, sobretudo, pelo Grupo Gutai, na segunda metade da década de 1950.

As práticas de Fluxus porém não estiveram restritas ao evento e ao happening. A partir dos concertos e dos experimentos com música de alguns artistas, veio a exploração de outras tecnologias como o vídeo. O artista Nam June Paik, por exemplo, conhecido por seu um dos primeiros a experimentar a televisão como uma linguagem artística, extrapola suas pesquisas em música eletrônica, realizadas junto com Stockhausen em fins dos anos 1950 na Alemanha, e começa a realizar videoarte. Seu primeiro filme, conhecido como Zen for Film (1962) trata-se de 23 minutos de fita virgem. Este artista é considerado, inclusive, o inventor da videoarte, junto a outro participante de Fluxus, Wolf Vostell.

Outra característica importante de Fluxus destacada no início era o forte teor de intervencionismo social implícito no discurso do grupo, especialmente de Maciunas. Apesar desse projeto de intervenção social direta não ter sido exitoso (nesse sentido, é como se a tentativa de reunir arte e vanguarda tivesse falhado, dando razão a autores como Burger), vários trabalhos foram impactados por esse ideal. Um dos exemplos mais fortes está em práticas realizadas por artistas participantes de Fluxus em que o exame da condição da mulher na sociedade moderna tomavam forma. Antes mesmo do desencadeamento dos movimentos feministas – que, no final dos anos 1960, irão eclodir com força-, uma série de performances de Alison Knowles, Yoko Ono, Shigeko Kubota, Mieko Chiomi, entre outras marcaram fortemente a discussão sobre o lugar da mulher na arte e na sociedade de maneira geral. Uma das mais emblemáticas desse período é a performance de Kubota, Vagina Painting (1965), em que a artista realiza um quadro expressionista pintando com um pincel preso à sua vagina.

Falta ainda mencionar a prática da mail art, introduzida no Fluxus pelo artista Ray Johson. Esta será uma das ações responsáveis por ampliar mais a rede e inserir no grupo artistas de lugares ainda mais distantes, como no caso da América do Sul. Conectados desde vários continentes e países através da troca de cartões-postais contendo trabalhos artísticos, estes artistas formarão algo como uma conexão em rede somente equiparável à reliazada atualmente através da internet. O Brasil esteve presente nessa rede através da atuação dos artistas Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Sílvio Hansen, Ubirajara Lisboa, entre outros que, conectados à rede Fluxus, trocavam correspondência com o resto do mundo, divulgado trabalhos de poesia visual. A participação deste artistas no Fluxus, a produção de arte-correio e poesia visual realizada nesse período por estes artistas é um dos capítulos mais interessantes da história da arte no Recife, o qual pretendemos explorar com mais profundidade nos próximos textos.

Referência:
ZANINI, Walter (2003). Atualidade de Fluxus. ARS (São Paulo); 2.3; 10-21.


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