Texto Inédito
Quando se pesquisa e se reflete sobre a história recente do campo da arte contemporânea, é impossível ignorar a importância e a presença do Grupo Fluxus. As práticas realizadas pelos artistas que dele fizeram parte irão influenciar em vários aspectos as práticas conceituais posteriores: a performance e o happening, os usos de novas tecnologias midiáticas, o questionamento social e político presente nas obras, o compartilhamento e o trabalho em rede, são algumas das características do Fluxus que poderão ser bastante encontradas em vários trabalhos realizados no período de fins dos anos 1960 e década de 1970 (e até em vários trabalhos produzidos atualmente).
Segundo Walter Zanini (2003), o Fluxus tem fontes de inspiração complexas e diversas, sendo possível destacar: o futurismo italiano (especialmente Luigi Russolo e seus experimentos com o ruído); o construtivismo russo da Frente de Esquerda das Artes (no que tange a uma certa ideologia Fluxus de comprometimento social da arte); o músico e performer John Cage (que ampliará a investigação musical até o nível da performance e da anulação da composição para enfatizar o som aleatório).
Emergindo
em um período entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, os
artistas participantes de Fluxus, especialmente o seu mentor e maior
organizador, George Maciunas (lituano radicado em Nova Iorque),
estiveram conectados com o período que Foster chama de primeiro
retorno vanguardista, ou seja, momento em que as questões da
vanguarda eram retomadas per
si
na tentativa de realizar um novo questionamento da instituição arte
do período. Essa característica aparece de modo mais claro no
discurso de Maciunas, destacado por Zanini. Segundo este autor,
"Maciunas pretendia, acima de tudo, na atmosfera poética do
trabalho que foi iniciador, uma arte feita de simplicidade,
antiintelectual, que desfizesse a distância entre artista e
não-artista, uma arte em estreita conexão com a normalidade da vida
e segundo princípios coletivos e finalidades visceralmente sociais”
(2003:12).
Desse
modo, nos manifestos escritos por Maciunas, estava presente o
questionamento do artista enquanto produtor privilegiado, o que
sugeria a proposta de fim da categoria artista (ou seja, a integração
total do fazer artístico com o fazer prático da vida); assim como
também rejeitava o objeto de arte como um bem não-funcional a ser
vendido e meio de vida para um artista e em favor de uma produção
antiindividualizada. E assumir a posição contrária ao sistema
artístico imperante, tinha que incluir os próprios meios de
expressão de Fluxus: concertos (como eram chamados os happenings
realizados pelos artistas), publicações, arte correio, videoarte,
etc. Estas ações eram, na melhor das hipóteses, consideradas
transitórios (uns poucos anos) e temporárias. Ou seja, estariam
presentes e seriam realizadas até o momento em que as belas artes
pudessem ser totalmente banidas (ao menos em suas formas
institucionais) e os artistas encontrassem outra ocupação.
O
nome de batismo do grupo, dado por Maciunas, foi bem representativo
de como o Fluxus atuou. Escolhido do latim, a palavra que significa
“mudança contínua”, “estado não-determinado”, “flutuante”
representa bem o que foi o grupo, uma comunidade de artistas
espalhados por várias partes do mundo (especialmente Estados Unidos
e Europa) que contribuíam com distintos projetos e ações, reunidos
em rede (uma das primeiras conexões em rede realizadas antes da
internet, foi dos artistas do grupo Fluxus reunidos em torno da mail
art).
O
projeto, desde o princípio desterritorializado, iniciou em Nova
Iorque, em início
da década de 1960,
quando artistas se reuniam na galeria de Maciunas (só para lembrar,
ele mesmo um desterritorializado). Segundo
ainda Zanini,
a AG Galery
converteu-se, “em 1961, por breve tempo, em núcleo de conferências
e performances musicais (ou concertos, como eram ironicamente
nomeadas)” (2003:12).
Nessas
reuniões, estavam
presentes artistas como
La Monte Young, Dick Higgins, Toshi Ichiyanagi, Yoko Ono, Al Hansen,
Walter de Maria, Jackson Mac Low, Ray Johnson, Henry Flint, Philip
Corner, Richard Maxfield (que
foi professor de Maciunas),
além de John
Cage, uma
espécie de mentor e mestre
de vários destes
artistas.
Nessas
ocasiões, “rememorará depois Maciunas,
fazia-se tudo o que Fluxus fez mais tarde, porém sem utilizar esse
nome"(2003:12).
Nessa
mesma época, Maciunas acabou obrigado
a ir para a Alemanha, em finais de 1961, e
levou
consigo um numeroso material entre partituras e
outros documentos os quais esperava publicar. Nessa
época, iniciou
um projeto de uma revista para
a
qual pôs o nome de Fluxus. Porém, sem dinheiro para realizar as
publicações que desejava, aproveitou as partituras para realizar
festivais em Colônia, na Alemanha (onde estava residindo), contando
com a participação de vários artistas que conheceu durante sua
estadia na Alemanha. Entre eles estava Nam June Pake (conhecido
também por seus experimentos com televisores) e Wolf Vostell.
A
partir destes festivais, surgiu
o que seria depois nomeado de Grupo Fluxus. Zanini
relata que a “certidão de nascimento” do grupo foi a
multiperformance Fluxus Internationale Festpiele Neuester Musik
(Festival Internacional Fluxus de Música Novíssima), realizada no
salão de festas do Museu do Estado de Wiesbaden, entre 1 e 23 de
setembro de 1962. Constavam nesse projeto 14 concertos de músicos e
artistas de diversas nacionalidades, ativos em dois continentes.
Segundo Zanini, "o grupo fez, assim, seu aparecimento como fruto
de uma internacionalização de propósitos. As performances tinham
sua base na música ou antimúsica que criavam com revolucionário
caráter teatral, visual e sonoro, através de ações em que além
de Cage, havia a influência dos rumores de Luigi Russolo”
(2003:13).
Após
este
primeiro festival, se seguiram vários outros, realizados
em distintos lugares da europa, desde Londres, como Dusseldorf,
Copenhague, Paris, Estocolmo, Oslo, Amsterdã-Haia e Nice, entre 1962
e 1963. Nesses seguidos eventos, foram agregados novos nomes e
uma rede de núcleos de Fluxus foi se
formando. Somente
a partir de 1964 que
os concertos
serão realizados também
em Nova Iorque. Todos esses eventos
levaram a que a comunidade artística
em torno do Fluxus fora bastante ampliada
nos anos 1960. E apesar da óbvia
maioria de estadunidenses
e europeus, houve numerosa participação de artistas japoneses
(radicados em Nova Iorque ou mantendo relações pelo núcleo de
Tóquio), além do coreano Nam June
Paik. Na
América do Sul, Fluxus contou com associados como Mauro Kagel, na
Argentina e Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Sílvio Hansen, Ypiranga
Filho e outros, no Brasil (mais especificamente, no Recife).
Os associados de Fluxus distribuíam-se
ainda por numerosos países do
leste europeu (como na então
Checoslováquia de Mila Knizák).
Sendo
territorialmente difuso, Fluxus irá se caracterizar também por uma
variedade de ações e meios utilizados pelos artistas que compunham
a rede. O happening será uma das principais formas de expressão
artística do grupo, visto sua vinculação inicial em torno dos
concertos realizados por Maciunas em que performance (realização de
um ato cênico) e o uso de objetos cotidianos para a obtenção de
sons, eram destaques. E como happenings que são, diz Zanini, “os
concertos Fluxus tinham antecedentes nas vanguardas históricas e, em
tempo mais recente, na conhecidíssima experiência multidisciplinar
de Untitled Event (Evento Sem Título) de Cage, em Black Mountain
College (1952) e no considerado primeiro happening no ocidente, em
1959, de Kaprow, artista próximo ao Grupo Fluxus em seus inícios”
(2003:17). É importante também ressaltar a relação de Fluxus com
a atividade performática desenvolvida no Japão por grupos de
artistas e, sobretudo, pelo Grupo Gutai, na segunda metade da década
de 1950.
As
práticas de Fluxus porém não estiveram restritas ao evento e ao
happening. A partir dos concertos e dos experimentos com música de
alguns artistas, veio a exploração de outras tecnologias como o
vídeo. O artista Nam June Paik, por exemplo, conhecido por seu um
dos primeiros a experimentar a televisão como uma linguagem
artística, extrapola suas pesquisas em música eletrônica,
realizadas junto com Stockhausen em fins dos anos 1950 na Alemanha, e
começa a realizar videoarte. Seu primeiro filme, conhecido como Zen
for Film (1962) trata-se de 23 minutos de fita virgem. Este artista é
considerado, inclusive, o inventor da videoarte, junto a outro
participante de Fluxus, Wolf Vostell.
Outra
característica importante de Fluxus destacada no início era o forte
teor de intervencionismo social implícito no discurso do grupo,
especialmente de Maciunas. Apesar desse projeto de intervenção
social direta não ter sido exitoso (nesse sentido, é como se a
tentativa de reunir arte e vanguarda tivesse falhado, dando razão a
autores como Burger), vários trabalhos foram impactados por esse
ideal. Um dos exemplos
mais fortes está em práticas realizadas por artistas participantes
de Fluxus em que o exame da condição
da mulher na sociedade moderna tomavam
forma. Antes
mesmo do desencadeamento dos movimentos
feministas – que, no final dos anos
1960, irão eclodir com força-, uma
série de performances de Alison
Knowles, Yoko Ono, Shigeko Kubota, Mieko Chiomi, entre outras
marcaram fortemente a discussão sobre o
lugar da mulher na arte e na sociedade de maneira geral.
Uma das mais emblemáticas desse período
é a performance de Kubota, Vagina
Painting (1965),
em que a artista realiza um quadro
expressionista pintando com um pincel preso à sua vagina.
Falta
ainda mencionar a prática da mail art, introduzida no Fluxus pelo
artista Ray Johson. Esta será uma das ações responsáveis por
ampliar mais a rede e inserir no grupo artistas de lugares
ainda mais distantes, como no caso da América do Sul. Conectados
desde vários continentes e países através da troca de
cartões-postais contendo trabalhos artísticos, estes artistas
formarão algo como uma conexão em rede somente equiparável à
reliazada atualmente através da
internet. O Brasil esteve presente nessa
rede através da atuação dos artistas Paulo Bruscky, Daniel
Santiago, Sílvio Hansen, Ubirajara Lisboa, entre outros que,
conectados à rede Fluxus, trocavam correspondência com o resto do
mundo, divulgado trabalhos de poesia visual. A participação deste artistas no Fluxus, a produção de arte-correio e poesia visual realizada nesse período por estes artistas é um dos capítulos mais interessantes da história da arte no Recife, o qual pretendemos explorar com mais profundidade nos próximos textos.
Referência:
Referência:
ZANINI,
Walter (2003). Atualidade
de Fluxus.
ARS
(São Paulo); 2.3; 10-21.
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