quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Museu e a Modernidade

Texto inédito

Pensar em museu, quase sempre, implica pensar passado, tradição, memória. Mas e o que isso tem a ver com modernidade? Aparentemente, nada. Mas se retomarmos o fio da meada de sua instituição, poderemos ver como esta  tem a ver com o processo de modernização da sociedade.

Iniciando esta discussão, encontramos no texto da pesquisadora Lisbeth Rebollo1, uma noção de museu em que estes aparecem ligados à ideia de produção de conhecimento, de salvaguarda de “tesouros” e de exposição. Remontando aos primeiros usos registrados do termo, a autora o encontra no grego mouseîon, traduzido como templo das musas, e registra que este já era usado no século I A.C. para denominar uma espécie de centro interdisciplinar de cultura e patrimônio. Estes eram lugares de contemplação e estudos literários, artísticos e científicos, não estando ainda relacionados à ideia de coleção e de salvaguarda e exibição da mesma. O nome museu será pouco usado após esse período, até reaparecer em meados do século XV, quando o colecionismo torna-se moda na Europa.

Durante esse período, marcado pela revolução do olhar e da sensibilidade, provocados, entre outras coisas, pela expansão marítima, pelo aparecimento e ampliação do espírito humanista e científico da época, o Renascimento testemunha o surgimento de grandes coleções principescas e também pertencentes a autoridades religiosas. Surgidas a partir do século XIV, serão ampliadas nos próximos dois séculos graças aos financiamentos de famílias nobres a artistas cortesãos, mas também aos objetos trazidos da América, da Ásia, África e Oriente Médio.

Além dessas coleções principescas e religiosas, nesse período surgem também os famosos gabinetes de curiosidades e as coleções científicas. Estas eram formadas por estudiosos e tinham um objetivo mais pragmático de colecionismo: de promover conhecimento e estimular o estudo científico sobre a natureza. Reuniam grande quantidade de objetos e seres exóticos vindos de terras distantes. No início caóticos, com o tempo foram se aprimorando para acompanhar os progressos científicos realizados, principalmente, nos séculos XVII e XVIII. Muitos destes gabinetes se tornaram, posteriormente, museus científicos e de história natural.

Porém, nesse período, essas coleções, apesar de grandes e vastas, eram de acesso restrito e privado, restringindo-se aos frequentadores da corte e amigos e conhecidos dos donos destas. As galerias, inventadas nesse período, são os corredores dos palácios e dos templos onde residem as obras. Os gabinetes funcionam como museus, mas ainda não possuem a ideia de abertura ao público. Somente em finais do século XVIII irão surgir configurações museais voltadas à preservação do patrimônio e de sua exibição pública. Sendo assim, o conceito de museu que vai nos interessar aqui se relaciona às configurações que este assume a partir da emergência da sociedade burguesa, das ideias iluministas de conhecimento e progresso, da configuração dos Estados Nação e da relação com o desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. Ou seja, para esta tese, interessa entender o museu como projeto intrinsecamente ligado à emergência da modernidade, como destaca Andreas Huyssen2.

Desse modo, é preciso considerar que durante o século XVIII acontece uma mudança fundamental na estrutura social da Europa, especialmente na França, país em que profundas transformações políticas e sociais irão, posteriormente, impactar em todo este continente e na ideologia ocidental. A Revolução Francesa de 1789 destituiu o Antigo Regime, detonando, junto com ele, as estruturas aristocráticas e nobiliárquicas que, entre outras coisas, mantinha os artefatos artísticos e culturais à distância da massa da população, restritos às galerias criadas nos palácios e nas Igrejas. Aliado a uma necessidade de afirmação nacional, de fomento de uma ideia de identidade cultural, de salvaguarda dos monumentos e de desvinculação dos mesmos à monarquia e à igreja (para evitar que fossem destruídos), surgem os museus como o espaço neutro de salvaguarda e exibição de extensas coleções artísticas e científicas, antes escondidas das vistas de todos ou ordenadas de maneira menos sistemática (como nos já citados antigos gabinetes de curiosidades). Segundo ainda Rebollo:
Na França, após a revolução de 1789, inúmeros monumentos são destruídos. Para salvaguardar as riquezas artísticas, evitando-se estes atos de destruição e pilhagem, criam-se estes espaços neutros para fazer esquecer a significação religiosa, feudal ou monárquica das obras de arte. Estes espaços são os museus que assumem o papel fundamental de conservar as obras e os monumentos após a ruptura com o Antigo Regime. Procede-se a um grande inventário das coleções existentes. O Estado se torna proprietário e conservador dessas coleções científicas e artísticas. A República, pouco a pouco, assume um compromisso com a história da nação. Um decreto faz com que todas as obras de arte sejam reunidas no Louvre. No dia 10 de agosto de 1793, aniversário da queda da monarquia, abre-se o Museu des Arts. As obras de arte são vistas não só como monumentos históricos, mas como grandes meios de instrução, cujo talento enriquece as gerações. (GONÇALVES, 2004:14)


É importante observar o destaque dado para o papel do Estado nessas configurações iniciais dos museus. Estas instituições cumpriam um importante papel político nos Estados Nação em formação, sendo um suporte fundamental para o fomento de uma ideia de identidade nacional. Eram produtores de conhecimento, ou seja, quase alfabetizadores das massas sobre a história de suas nações, eram salvaguarda dessa memória e, portanto, criadores e difusores de uma narrativa que ajudava a promover uma ideia de pertencimento e identificação local nas populações. E, como diz Huyssen, a união dessa necessidade de formação de uma integração nacional, por um lado, aliada ao medo do esquecimento e da perda que afirma uma vontade de tradição é diretamente relacionada a um projeto moderno de sociedade.

Esta narrativa criada e difundida pelo museu necessitava ser legitimada para poder funcionar plenamente em seus objetivos instrutivos e formativos. Deste modo, a ideia de neutralidade e universalidade eram pontos-chave nas narrativas museológicas (e históricas e científicas) da época. Segundo o sociológo Jacques Leenhardt, “longe dos templos, das igrejas, dos palácios, longe da natureza ou das culturas exóticas, os objetos (reunidos no museu) flutuam numa ausência de relação com qualquer prática que seja. E, por causa dessa ausência de relação, eles se tornam o resquício do eterno humano, a presença da universalidade do homem tal como a época que inventou o museu tendia a promover” (in GONÇALVES, 2004:16). É dentro desta perspectiva universalista, neutra (distanciada de intenções monárquicas e religosas), desconectada de seus contextos originais para servir a um bem maior que, em 1793, é criado, por exemplo, o Louvre, através de um decreto que determinava que todas as obras confiscadas da corte real deveriam ser reunidas nele e disponibilizadas para o público.

Várias outras instituições foram criadas nesse período, até início do século XIX, consolidando de vez esta concepção moderna de museu. São elas: Museu Britânico (Grã Betanha, 1753), Museu Belvedere (Viena, 1783), Museu Real dos Países Baixos (Amsterdã, 1808), Museu do Prado (Madri, 1819), Altes Museum (Berlim, 1810), Museu Hermitage (São Petersburgo, 1852). Importante ressaltar que esses museus foram concebidos dentro de um espírito nacionalista, tendo, portanto, como característica principal, uma latente ambição pedagógica – formar o cidadão através do conhecimento do passado. Dessa forma, estas instituições participaram de maneira decisiva no processo de constituição das identidades nacionais em formação no período. Conferiam uma ideia de passado e um sentido de antiguidade fundamentais para o processo de constituição dos Estados Nação.

Lembrando que, neste momento, vários países do continente americano e africano, entre outros, ainda viviam um período colonial, é importante considerar que estes museus funcionaram, também, como uma espécie de vitrine das conquistas dos seus criadores. Artefatos indígenas, tesouros descobertos nas pirâmides egípcias, Maias e Astecas, objetos produzidos por populações africanas, aborígenes, entre outras, tudo que era próprio dos conquistados, antes guardados nas cortes e palácios, passaram também a ser exibidos para a população, geralmente nos museus de história natural.
Esse discurso que criava a separação de um eu e um eles, geralmente o outro lado sendo interpretado como próximo à natureza, não civilizado, selvagem, marcou também a legitimação da conquista destes povos e da ideia de evolução própria daquela época, na qual a Europa seria o estágio mais avançado. Em outras palavras, o museu também foi o lugar onde a epistemologia europeia universalista tomou corpo em forma de verdade absoluta, visto que este lugar era tido praticamente como templo dotado da capacidade de suspender os artefatos de seus contextos originais, recolocando-os em um ambiente cujo foco era a transmissão do saber e do conhecimento. Como consequência disso, tudo o que se exibia e se tornava visível aí, se convertia automaticamente em uma verdade, em um discurso legítimo.

Mas, como lembra Huyssen, os museus também são espaços dialéticos em que esses elementos entram em contradição e em conflito todo o tempo. Este autor reconhece, por um lado, o caráter de salvaguarda e colecionista dos museus, o que o torna prenhe de um caráter mortuário (como também afirma Adorno em sua análise sobre os museus). Ou seja, o museu como o mausoléu dos objetos, lugar de satisfação de uma pulsão de morte que acaba por assassinar o que entra em seu ambiente (satisfação da vontade de tradição, recuperação de uma memória que justifique o presente). Porém entende, por outro lado, esta instituição como também passível de abrigar a reconstrução desse passado no presente, através da ação do público e dos agentes que contribuem para a formação da narrativa apresentada no museu – cujo canal de transmissão, por excelência, são as exposições.

Neste ponto, o das exposições, acreditamos importante reter-nos um pouco mais. Isso porque, na opinião de vários pesquisadores e também da nossa, os discursos dos museus, para serem apreendidos e difundidos, dependem da exibição. São vários os estudos sobre as exposições que enfatizam o seu caráter de promotor de visibilidade e legitimação de objetos artísticos, científicos, arqueológicos e também técnicos, numa dimensão mais ampla. Rebollo, citando outra vez Jacques Leenhardt, destaca que este autor pensa a exposição como sendo, também, um espaço social de saber, “remetendo-se ao registro de que, no século XIX, a palavra exposição significa metonimicamente o lugar onde as pessoas podem ver, conhecer várias coisas que antes eram desconhecidas, em particular no campo do desenvolvimento científico e técnico.” (2004:30).

E, voltando a Huyssen, é nas exposições, nesse espaço de saber compartilhado que proporciona, que, na opinião do autor, acontece a possibilidade de uma sobra de significado que excede o conjunto das fronteiras ideológicas, abrindo um espaço para a reflexão. Essa possibilidade de fronteira é importante ser considerada porque é aí onde muitas das ações críticas às instituições podem se realizar ou, por outro lado, transformar as próprias em espaços de reflexão crítica e propositiva. Por outro lado, é importante pensar também que, ao longo do tempo, a atividade expositiva passa a se relacionar não só com a dimensão do saber e da visibilidade de discursos institucionais, mas também, ainda no século XIX, com a dimensão do mercado.

E a relação a exposição com o mercado, especialmente na época dos salões no século XVIII, impactará em transformações importantes, a partir da emergência da ideologia da autonomia da arte. E na análise de Sônia Salcedo (2008), tem-se um interessante quadro deste relacionamento entre exibição, legitimação e necessidade de busca de espaços autônomos para a arte - também ela autônoma. Para a autora, “se toda obra é uma afirmação que só se revela quando abandona o isolamento do ateliê e se apresenta diante de outro sujeito, depreendemos que a autonomia do circuito artístico vincula-se à transmissão e à recepção de seus objetos, pois é exibindo-os que as ideias e convicções artísticas adquirem concretude” (2008:25). Desse modo, a autora põe em evidência uma problemática interessante: a de que a arte autônoma, mesmo rechaçando o mercado, necessitava criar os seus mecanismos institucionais para que a sua crítica pudesse existir e se efetivar. Para que houvesse a arte desinteressada acompanhada da fruição assim também definida, era preciso que houvesse lugares que tornassem possível essa relação. Ou seja, voltando a Bourdieu: a arte autônoma necessitava criar o seu campo próprio de ação.

Este rechaço ao mercado da arte será uma questão mobilizadora e permanecerá presente tanto em vários movimentos de vanguarda, como em reflexões filosóficas sobre o lugar da estética no mundo (e a sua função emancipadora do homem). Neste momento, os artistas perceberam que a arte estava sendo posta em função de interesses privados burgueses, tornando-se refém de um mercantilismo que a destituía de sua potência estética. Segundo Salcedo:
De acordo com a pesquisa feita por Hegewisch, os salões, desde suas origens, foram motivos de discórdias tanto para os artistas quanto para o público. Na verdade, a organização dessas exposições sempre enfatizou interesses distitntos daqueles relacionados à própria natureza da arte. E isso ocorria, primeiro, sob a forma de didatismo público, cujo caráter populista propagava a simpatia e as benesses do Estado no século XVIII. Depois, soba a imagem soberba do mecenato burguês, cujo caráter de ostentação propagava as benesses do que era industrialmente progressista no século XIX. (2008:26)


Ou seja, com o surgimento dos salões, em meados do século XVIII, organizados de maneira independente do gosto monárquico, promovia-se, por um lado, a autonomia do sujeito artista e, por outro, a formação de um público e de uma crítica que tornaram-se um novo corpo regulador do gosto. Todo esse movimento, por sua vez, passou a atrair outros interesses elitistas. Desse modo, diz Salcedo, durante cerca de um século esses salões alçaram o patamar de espetáculo e de grandes eventos, o que dava visibilidade à produção artística crescente, mas também era um importante atrativo de lucros e investimentos que, logicamente, passaram a cobrar um retorno. E este era, geralmente, em forma de atração de grandes compradores, o que acabava por tornar os artistas peças de uma engrenagem econômica.

Esse processo vai gerar insatisfações do lado dos artistas e também do público, nem todo ele afeito ao jogo realizado nos salões. É aí que o que Bourdieu chama de teoria da arte pura começa a ganhar corpo e a se materializar em disputas que contribuirão para a formação do campo da arte moderna. Analisando o campo da literatura, Bourdieu foca nas disputas ocorridas entre os defensores da arte engajada, com discurso político forte e relacionado às classes proletárias (a quem se deveria emancipar através da arte, mas de forma didática); os promotores da arte burguesa e pequeno-burguesa, com caráter evidentemente mercadológico e espetacular em que o entretenimento e a comercialização eram o objetivo principal; e, finalmente, os defensores da ideia de arte pela arte que rechaçavam a submissão da criação artística tanto a uma função didática (e populista), quanto a uma condição de produto mercadológico ou de entretenimento.

Se na literatura, os artistas começam a produzir obras em que o texto e sua composição começam a ser levados em conta, mais que os temas a serem abordados, levando a uma exploração da linguagem literária, o mesmo processo ocorre nas artes visuais. A emergência de uma crítica de arte que reúne a reflexão sobre o caráter próprio do artístico, tanto em relação à produção literária quanto à reflexão da produção pictórica, começa a forjar um campo de agentes para essas novas práticas. O poeta e escritor Charles Baudelaire é um dos mais conhecidos precursores de um pensamento crítico que ia além do comentário ou do julgamento de gosto que eram mais comuns naquele momento.

Pensar a crítica como uma produção que deve refletir a obra de arte, não focado em julgamentos de gosto superficiais, mas em análises estéticas próprias àquela arte, são um dos indícios fortes da emergência de um campo da arte autônoma. Por isso e pelas características apontadas sobre sua produção poética, permeada pelo conflito em relação à modernidade, indo além do romantismo e voltando-se para análise do aqui e agora, Baudelaire é considerado um dos “pais” do modernismo artístico.

Esse pequeno desvio no argumento, ao dar enfoque a Baudelaire, faz sentido para pensar que foi através de uma série de agentes e lutas que foi emergindo o campo da arte autônoma na França, que posteriormente se nomeará e classificará como arte moderna. Os movimentos artísticos contestadores do status quo artístico do momento, a exemplo do impressionismo (considerado um dos primeiros a romper com as convenções tanto pictóricas, quanto expositivas e de fruição), começam a criar para si espaços e redes onde circulavam. Segundo ainda Sônia Salcedo:
Como decorrência desses fatos, tanto o artista quanto o público tornavam-se peças indefesas e manipuláveis para o jogo de interesses do mercado que, ali criado, tinha por objetivo usá-los para atrair grandes compradores. Em resposta a isso, os artistas mobilizaram-se em busca de um público verdadeiramente interessado na arte. Assim, eles próprios promoveram suas exposições individuais e independentes, não só anexas àqueles salões - a exemplo de Courbet e Manet que construíram seus próprios pavilhões -, como também em diversos espaços privados, escapando, desse modo, tanto da degradação artística promovida pelo caráter especulativo daqueles salões quanto da desvalorização de suas obras em razão do excessivo número de trabalhos expostos naquelas apresentações”. (2008:27)


Esses novos espaços criados pelos artistas, os quais geralmente eram os seus próprios atelieres, irão influenciar sobremaneira nas futuras configurações das instituições artísticas. A noção de autonomia, de protagonismo da obra e de sua materialidade, de sua desvinculação da relação financeira (e também social e política), todas essas reivindicações serão reverberadas nas instituições de arte moderna e em suas configurações.


1REBOLLO, Lisbeth (2004). Entre cenografias

2HUYSSEN, Andreas (1997). Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.

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