sexta-feira, 15 de abril de 2016

Relato do Seminário Futuros Progresivos y Resonancias Críticas de los 80


O seminário internacional Futuros Progresivos y Resonancias Críticas de los 80, realizado no auditório do Museo de la Solidaridad entre os dias 12 e 13 de abril, em Santiago, é uma das atividades relacionadas à mostra Poner el Cuerpo, em cartaz na mesma instituição. Ambos são reverberações da pesquisa realizada pela Rede de Conceitualismos do Sul para a realização da exposição Perder la Forma Humana: una imagen sísmica de los años ochenta em América Latina, que aconteceu no Museo Reina Sofía, Madrid, entre outubro de 2012 e março de 2013.

Além da mostra, Perder La Forma Humana também contou com uma série de seminários onde os artistas foram convidados a apresentar suas pesquisas e ações, fomentando a criação de uma rede entre estes. Os encontros e a itinerância da mostra, que percorreram Lima e Buenos Aires, aconteceram até 2014. Desse modo, Futuros Progresivos é uma espécie de itinerância não-oficial, continuando, no Chile, as discussões geradas pela exposição de arte conceitual que ativou a participação de pessoas de vários países da América do Sul em sua formação.

Dia 1 (12.04)

Assim como os encontros de Perder la Forma Humana, o seminário Futuros Progresivos também foi organizado com o intuito de evidenciar a fala dos artistas. E a primeira mesa contou com a participação de Alberto Diáz, representante do grupo chileno Agrupación de Plásticos Jóvenes (APJ), António Kadima, membro do Taller Sol, também do Chile, e Alfredo Márquez, da agrupação peruana Taller NN. A mesa foi intitulada Trazos Insurgentes: La Gráfica e destacava a experiência desses artistas com a produção de cartazes e panfletos.

Essa experiência gráfica foi marcadamente importante em fins dos anos 1970 e período da década de 1980. Em parte, no Chile, devido a uma herança muralista, representada pelas brigadas políticas que ocupavam os muros na época da campanha de Allende, aliada a uma estética política de esquerda que privilegiava a serigrafia e a gravura como formatos (por sua facilidade de produção, circulação e, se supunha, recepção). Por outro lado, no Peru, adotaram uma visualidade Pop que contestava tanto uma estética tradicional de esquerda, como denunciavam o terrorismo de estado e o genocídio do povo peruano.

A primeira agrupação apresentada, a Agrupación de Plásticos Jóvenes (APJ), surgiu em 1976 a partir da reunião de estudantes iniciada no Grupo Semilla, formado em torno da Facultat de Bellas Artes. Após uma exposição encerrada pela polícia, quando vários membros foram presos, o Semilla terminou. Mas vários dos seus membros voltaram a reunir-se em torno da APJ, continuando a realizar mostras nas universidades e espaços alternativos, como o Taller 666. A partir daí, começaram a ampliar as atividades para o ambiente urbano, entendendo-o como espaço de intervenção e suporte de ação. Essa passagem para o espaço público ampliou a dimensão ativista do grupo, que passou a se articular com estudantes de artes gráficas para a produção de cartazes e panfletos, além de associar-se a grupos comunitários e sindicatos, realizando pinturas murais nesses lugares.

Segundo depoimento de Alberto Díaz, primeiro convidado a falar, havia na época um clima de articulação coletiva bastante forte. Nas universidades, afirma Díaz, passaram a circular livros sobre Arte Conceitual e essa informação levou a uma compreensão de um agir artístico na cidade que impulsionou certas ações (para além da tradição das brigadas políticas que já existia). O grupo passou a voltar o foco para a ação de intervenção urbana e nos conflitos sociais. Passaram a realizar vários tipos de ações com cartazes, produzindo desde materiais para protestos, como também panfletos em que as pessoas eram convidadas a intervir. A APJ também produzia cenários e espécies de murais móveis, participando em ações teatrais e realizando intervenções murais na cidade. O teor das ações era crítico das ações de terrorismo de estado cometido pela ditadura de Pinochet, contra a censura estabelecida e estimulava a conexão social.

Após Díaz, foi a vez de António Kadima falar sobre o Taller Sol. Criado em 1977, o Taller Sol, assim como a APJ, também usou o recurso da produção de cartazes e panfletos como meio de intervenção urbana e política. Em seu relato, Kadima destacou o processo de rearticulação cultural ocorrida no período pós-ditadura, momento em que vários intelectuais e artistas foram ou mortos ou exilados. A partir da organização grupal, os artistas passaram a se rearticular, formando novas redes de ação e resistindo ao que Kadima chamou de “apagão cultural” da ditadura. O Taller Sol foi uma dessas instâncias de articulação a qual, também, realizou pesquisas sobre o processo criativo popular no Chile pós-ditadura, criando o que ele chama de Arquivo de Memória da Resistência, atualmente bastante importante. O grupo realizava também ações musicais, de teatro e de dança, além da pesquisa dessas manifestações. Ainda em funcionamento, o Taller Sol possui hoje um importante acervo documental da época, sendo um centro de pesquisa das ações artísticas de fins dos anos 1970 e década de 1980 no Chile.

O terceiro convidado da mesa, o peruano Alfredo Márquez, membro do grupo Taller NN, destacou a ação gráfica e de guerrilha realizada por eles no período dos anos 1980. Se, por um lado, essas ações se assemelhavam bastante às experiências realizadas no Chile, por outro se diferenciavam pelo teor estético dos cartazes produzidos. Utilizando a técnica da fotocópia e da serigrafia, também utilizada pelos grupos APJ e Taller Sol, a diferença na experiência peruana é o destaque a uma visualidade marcadamente Pop. O Taller NN se apropriava de cartazes e fotos imprimindo novas frases sobre eles (técnica também usada pela APJ), mas também utilizavam imagens populares para intervir sobre elas. Um exemplo é a icônica imagem de Mao Tse Tung com os lábios pintados e colorida com cores fortes como rosa e amarelo. A semelhança com as imagens serializadas de Andy Wharol, a exemplo de sua Marilyn Monroe, são fortes.

Mas, segundo Márquez, a relação com essa herança Pop não era direta. Para ele, mais do que a Pop Art, eram as capas de discos de rock o que marcava a visualidade da época para sua geração. Ele reconhece uma influência da Pop Art, mas afirma que esta não era uma referência intelectual para o grupo. Se tratava mais de uma referência estética mais ampla, presente no mundo da mídia e da arte e relacionado a uma cultura punk a que o grupo se referia. Isso porque, em meio à guerra entre o estado Peruano, representado pela figura de Alberto Fujimori e o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso (grupo de influência maoísta), a influência punk e seus símbolos de anarquismo e subversão são ativadas por grupos de resistência. E esses grupos, chamados pela esquerda partidária da época de “marginais regressivos”, segundo Márquez, se destacavam por uma resistência que colocava em xeque tanto as narrativas esquerdistas em voga no período como as governistas.

Nos cartazes produzidos pelo Taller NN, se destacam as intervenções em imagens divulgadas pela mídia de corpos mortos empilhados (que poderiam ser confundidas com os campos de concentração de Auschwitz), pintadas com cores fortes e vibrantes, destacando a banalidade dessas mortes em peças que parecem quase publicitárias. Esses corpos desidentificados, anônimos e desconfigurados eram classificados pelas iniciais NN. Essa sigla foi apropriada pelo grupo, nomeando-o. Outra apropriação que o grupo realizou foi do número 424242, que aparece em vários dos cartazes e panfletos produzidos. Esse era um telefone divulgado pelo governo para denúncias de possíveis terroristas membros do grupo Sendero Luminoso. As denúncias anônimas foram responsáveis pelo desaparecimento de milhares de pessoas.

A guerra civil peruana durou 20 anos, entre 1980 e 2000, deixando um saldo de quase vinte mil desaparecidos, milhares de exilados e várias outras mortes confirmadas. E o relato de Márquez sobre esse contexto foi especialmente importante diante da atual possibilidade de vitória de Keiko Fujimori para a presidência do Peru. Keiko é filha de Alberto Fujimori, que atualmente cumpre pena por assassinato doloso, sequestro, lesões graves, além de acusações de corrupção durante seu mandato.

A segunda mesa da noite contou com a participação de pesquisadores da Rede de Conceitualismos do Sul, que falaram sobre a experiência de construção da mostra Perder la Forma Humana. Participaram da mesa a argentina Ana Longoni, membro articuladora da Rede, o brasileiro André Mesquista, a chilena radicada na Argentina Fernanda Carvajal e a curadora Isabel García, também chilena. Além destes, participou o artista chileno Felipe Rivas, membro do Colectivo Universitário de Ciéncias Sexuales.

Abrindo a fala, Ana Longoni, membro mais antigo da Rede de Conceitualismos do Sul e uma de suas articuladoras, destacou que esta nasceu de uma necessidade de pensar as práticas conceituais desde o sul e suas formas de redes de contato e colaboração, recuperando experiências chave ocorridas a partir dos anos 1970 e que ficaram invisibilizadas. Esse trabalho de levantamento e troca realizado pela rede leva ao convite para a realização da mostra Perder la Forma Humana o qual, segundo Longoni, foi iniciativa do Museu Reina Sofía. Inicialmente, o Reina Sofia pretendia destacar as ações realizadas nos anos 1970, mas, segundo Longoni, a rede preferiu investigar os anos 1980, considerando que as discussões do período anterior já haviam sido realizadas em grande número. Além disso, pelo fato da narrativa histórica oficial conceber esse período como sendo o da volta à pintura, várias ações de guerrilha urbana, de intervenção social, de questionamento de gênero, práticas artísticas underground, relações com a cultura punk, entre outras, acabaram desaparecidas desse relato histórico. Havia, então, por parte da Rede, um interesse em uma metáfora corporal da arte desse período que evidenciava relações entre processos de violência e o corpo, diz Longoni. Sendo assim, os eixos de pesquisa para a produção de Perder la Forma Humana foram: ativismos artísticos, desobediências sexuais, travestismos, espaços undergrounds, redes, pAnk (destaque do A para dar visibilidade a uma experiência latino-americana do punk). A partir desses eixos, o grupo de pesquisadores estabeleceu relações de confrontação, contágio e contaminação, a fim de não categorizar as experiências.

O interessante desse relato sobre a mostra aparece no momento em que Longoni revela que 90% do material participante de Perder la Forma Humana nunca havia estado antes em um espaço expositivo. Para ela, esse fato coloca a questão da presença de práticas marginais no museu. Isso leva a pensar em como o museu pode ser visto, segundo ela, como um espaço de interpelações, um espaço público a ocupar, para além de um espaço de legitimação artística. Porém, Longoni destaca tensões entre a expografia “cubo branco” do espaço museal e a qualidade precária dos materiais expostos. E um outro incômodo revelado por Longoni foi o fato de que em 2014, ao final da itinerância da mostra em Buenos Aires, a ArteBA, feira Argentina de arte contemporânea, já exibir parte desse material. Para Longoni, essa situação coloca a questão da velocidade de apropriação que o mercado apresenta e a responsabilidade dos pesquisadores nesse processo.

A socióloga Fernanda Caravajal, em sua fala, também expõe um incomodo sobre a relação entre o arquivo e o mercado levantada por Longoni. Destaca a necessidade de pensar em como processos de investigação se relacionam com uma dimensão de valorização mercantil. E para Isabel García, essa questão passa por perguntar-se “De que maneira os arquivos começam a socializar-se?”. Essa resposta, para García, tem que passar pela relação do arquivo com a memória e por uma discussão sobre o que é obra e o que é documento. A compra dos arquivos expostos em Perder la Forma Humana por colecionadores e instituições coloca, para a curadora, a questão sobre quando a especificidade dos arquivos se perde.

As questões reveladas pelas pesquisadoras da Rede em suas falas põe em evidência um debate que circula no campo da arte e para o qual tento contribuir com a minha tese, ainda por defender, sobre os agenciamentos artísticos. Nesta pesquisa, argumento que os trabalhos artísticos, vistos como práticas discursivas e estéticas, estão em constante movimento, reatualizando-se e realizando novas disputas discursivas a cada nova configuração. Ou seja, com esse argumento defendo o fato de que as práticas artísticas e os artefatos físicos a ela relacionados (sejam fotos de registros ou fotos como produção artística, vídeo, textos, entre outros) não são estáticas ou entes fechados e totais, cuja apropriação por instituições ou pela lógica do mercado também seja total e irreversível. O fato de documentos textuais e fotos de registros estarem sendo exibidos e comercializados em feiras de arte não significa, a meu ver, a completa “morte” da potência crítica e subversiva do trabalho. Acredito que, mais do que uma morte, o trabalho passa por uma ressignificação em que o discurso embutido no que chamo de texto-arte (a sua dimensão estética e material) passa a encampar, nessa nova esfera, outras disputas discursivas e a pôr outros conflitos em evidência. Por exemplo, os arquivos de Perder la Forma Humana, ao passarem a existir em um ambiente artístico, ou seja, ao serem inseridos no campo da arte, passam a obter uma condição de artefato artístico, deixando de possuir a característica underground e marginal que as significou em um primeiro momento. E nesse processo, incorpora outros discursos, inclusive os dos pesquisadores da Rede, além dos museais e de mercado, estabelecendo outra disputa entre o que significou essas ações em seu tempo, o que os seus autores assumem como ação e ethos artísticos, o processo que transforma esses documentos em novos artefatos artísticos e a atual configuração do campo da arte, em sua interrelação entre a dimensão institucional e mercadológica.

O fato desses materiais, conforme a própria Longoni revela em sua fala, provocarem uma tensão no interior do ambiente expositivo do museu Reina Sofía, ainda dominado pelo padrão “cubo branco” é um desses agenciamentos que esses arquivos provocam no interior institucional. Além disso, a possibilidade de multiplicação desses arquivos, alguns disponibilizados on line, provocam outras situações de tensão em que a aquisição por colecionadores e instituições exige a imposição de uma lei de copy right sobre os mesmos, que nem sempre é cumprida. Por outro lado, a socióloga Fernanda Caravajal coloca em questão o fato de que essa circulação pode servir, paradoxalmente, a uma valorização desses arquivos. Essa disputa insere um ruído no interior do campo da arte, na medida em que evidencia como operam as regras de transformação de objetos em artefatos artísticos e as possibilidades de questionamento das mesmas, através desses mesmos objetos. E também inclui nesse processo os pesquisadores da rede que, no papel de curadores da mostra, passaram a ser agentes dessa transformação de status desses arquivos no interior do campo da arte. O que é tornar visível esses arquivos? É inseri-los na esfera pública? E se considerarmos que essa esfera pública é o campo da arte, como esperar que esses arquivos visibilizados não participem das regras e discursos que conformam esse espaço? Essas são questões que eu incluiria nesse debate sobre a “mercadorização” dos documentos exibidos em Perder la Forma Humana.

Além disso, segundo lembrou André Mesquita em sua fala, algumas das ações realizadas nesse período, embora impossíveis de serem retomadas e refeitas, se não como encenação, reverberam em novas ações realizadas no período atual. Ações de intervenção urbana e ativismo que foram significantes no momento de suas realizações e que, atualmente, somente podem ser acessadas através de registros das mesmas, não são apenas meros documentos passíveis de serem apropriados por discursos institucionais e mercadológicos. São também uma potência e um registro coletivo de ação que se reatualiza em novos manifestos e intervenções urbanas. André lembra o caso da ação do coletivo paulistano 3 nós 3 chamada ensacamento. O grupo saía pela cidade de São Paulo colocando sacos na cabeça de estátuas de importantes monumentos da cidade. Depois, ligava para as redações dos jornais da cidade denunciando a ação e criando um factoide da mesma na imprensa. A dupla ocupação do espaço público realizado (a cidade e a esfera pública), em 1979, apareceu novamente em 2015, no contexto das ocupações escolares de São Paulo. Alunos ensacaram a cabeça do monumento ao bandeirante Fernão Dias, que dava nome à escola. Mesquita revela que ao questionar os alunos sobre a ideia de ensacar o monumento nenhum deles citou a ação do 3nós3, disseram que eles haviam criado isso. A ação dos alunos questionava o fato de haver um monumento para um assassino de milhares de indígenas em sua escola (o mesmo feito em 2013 nas pichações ao Monumento das Bandeiras, situado em frente ao Parque Ibirapuera). Novos contextos, novos questionamentos, realizados a partir de práticas similares que mostram como as práticas ativistas e estéticas podem uma e outra vez acontecer, de maneiras igualmente significativas.

Dia 2 (13.04)

O último dia do seminário Futuros Progresivos contou com apenas uma mesa. Nesta, se discutiu a articulação política em movimentos sociais e grupos chamados coordenadorias de cultura que marcaram o cenário político e artístico chileno durante a década de 1980. Participaram da mesa a ativista e feminista chilena Kena Lorenzini, do grupo Mujeres por la Vida, o artista e ativista Havilio Perez, também membro da APJ e, novamente, António Kadima (Taller sol) e Alberto Díaz (APJ).

A primeira a falar foi Kena Lorenzini. Com uma fala bem humorada, a feminista contou o processo de formação do Mujeres por la Vida, um grupo formado em 1983 por mulheres dissidentes de vários partidos políticos da época, desde o Partido Democracia Cristiana (de centro-esquerda) até o MIR (movimento de esquerda revolucionária). As mulheres se reuniram em torno de um grupo independente por não encontrar espaços para suas vozes e ações no interior das organizações partidárias das quais participavam, diz Lorenzini. As mulheres reunidas em torno do grupo Mujeres por la Vida passaram a realizar ações de intervenção urbana, atuando em protestos e realizando marchas e outros eventos, geralmente no dia 08 de março. As ações objetivavam visibilizar as situações de violência cometidas pelo governo ditatorial que, em 1983, alcançavam o limite. E a luta contra a ditadura também era uma luta pela visibilidade feminina e o protagonismo da mulher na esfera política e pública, que reunia não apenas mulheres oriundas de partidos políticos, mas também artistas.

Uma ação interessante relatada por Lorenzini se tratou do ato realizado por elas no 08 de março de 1989, no Estádio Nacional, que reuniu cerca de 25 mil mulheres. O evento teve o formato de uma peça teatral em cujo roteiro as mulheres, nomeadas como Bruxas, clamavam frases em que convocavam o feminino como força revolucionária contra a violência ditatorial e reivindicavam o reconhecimento da potência da mulher na vida social e democrática chilena. Este 08 de março foi um dos maiores atos realizados pelo grupo e reuniu desde militantes feministas, até representantes da população mapuche e mulheres ligadas ao esoterismo. Outra ação icônica do grupo, também no final dos anos 1980, foi o apagamento da Chama da Liberdade, monumento em formato de pira constantemente acesa foi criado por Pinochet em 1975 e representava o exército do Chile. O fogo foi apagado com uma toalha molhada pelo grupo Mujeres por la Vida, em uma ação que possuía um forte caráter simbólico de negação do poder militarizado aí representado. O grupo Mujeres por la Vida continua ativo e participa em atos e protestos constantemente sendo, desde 1983, uma importante articulação social da sociedade civil chilena em prol dos direitos das minorias.

O segundo momento da mesa contou com a apresentação das chamadas coordenadorias de cultura. O processo, relatado por Kadima, Peres e Díaz fala sobre o processo de rearticulação popular em torno da cultura após o golpe militar. Kadima inicia lembrando o vácuo cultural criado pela ditadura após o assassinato ou o exílio de vários intelectuais e artistas, como o caso icônico do músico Vítor Jara, grande símbolo da violência da ditadura militar chilena. Porém, já nos seguintes anos após o golpe, um processo de rearticulação popular ocorre, a exemplo dos grupos artísticos universitários surgidos na época (como a APJ), a fundação do cinema Normandie, em 1975, entre outras atividades que provocaram uma movimentação dos setores universitários e artísticos na época. Essa movimentação se amplia em 1980, quando ocorre, segundo os palestrantes, uma explosão da ação coletiva. Nesse momento, grupos feministas (como o Mujeres por la Vida) se aproximam de agrupações de artistas, trabalhando de forma conjunta e colaborativa em ações cruzadas. Além disso, os sindicatos e movimentos populares que resistiram ao golpe militar, também se aproximam dessas outras agrupações surgidas posteriormente.

No início da década de 1980, acontece o primeiro congresso de cultura no país, evento que torna-se o estopim para a articulação dos coletivos. A aproximação do Movimento de Direitos Humanos, movimentos feministas e as agrupações de artistas (como o Taller Sol e a APJ) resulta na criação de uma jornada de direitos humanos e cultura, realizada em 1982. E é a partir daí que se decide pela criação de uma primeira coordenadoria para a artistas e trabalhadores da cultura. Essas coordenadorias eram coletivos organizados politicamente que atuavam pelo desenvolvimento cultural e artístico da sociedade civil chilena, mas sem criar formações partidárias, diz Kadima. A missão da coordenação era criar condições para o desenvolvimento da cultura e possibilitar a atividade dos artistas e trabalhadores culturais. A partir dessa organização, se realizou um segundo congresso de cultura que reuniu mais de 500 pessoas de várias partes do mundo. Porém, a crítica realizada por Kadima foi a de que, um ano após a criação da primeira coordenadoria, estas organizações começaram a ser cooptadas pelos partidos. Os cargos diretivos foram ocupados por representantes desses partidos, na época perseguidos pela ditadura e com pouco espaço na esfera institucional política. Esse movimento gerou o que ficou conhecido posteriormente como grêmios, que eram estruturas partidarizadas e excludentes, gerando a dispersão dos artistas.

Esta última mesa sobre as organizações populares e da sociedade civil ainda contou com relatos breves sobre o processo das brigadas muralistas chilenas, brevemente citadas no dia anterior. Nessa parte do relato, não pude deixar de fazer relações com o contexto do Recife dos anos 1980, em que as brigadas artísticas se engajaram na campanha de políticos na democracia recém-nascida. No Chile, essas brigadas tiveram um período de forte expansão na década de 1960, durante as campanhas pró-Allende, e oscilavam entre iniciativas populares e campanhas partidárias. A investigação dessa relação entre as brigadas artísticas do Recife e de Santiago será melhor explorada posteriormente, em outro texto sobre o tema.





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