O Grupo
de Trabalho de Sociologia da Arte no 9º Congreso Chileno de
Sociología contou com uma diversidade de trabalhos concentrados nas
áreas de música, artes visuais e literatura de países como Chile,
Argentina, Brasil e México. A coordenação do GT ficou a cargo de
Marisol Facuse (Prfª. Drª Universidad de Chile), Laura Lattanzi
(Prfª. Drª Universidad de Chile), Tomás Peters (Profº Drº
Universidad de Chile y Carolina Ibarra (Universidad Arcis).
Dia
2
O
segundo dia começou com uma primeira mesa em que a relação entre
teoria estética e sociologia ficaram mais evidenciadas. Além do meu
próprio trabalho, apresentaram-se também Tomás Peters com o
trabalho
Lo Crítico-Cultural en el Arte Actual: Diálogos E Influencias Entre
Pierre Bourdieu, Hans Haacke Y Andrea Fraser;
e
Gino
Bailey
com a conferência El
Arte Prospettico como un habitus de una sociedad basada en las
relaciones espaciales.
O
trabalho de Peters se baseou no livro Free
Exchanges,
no qual um diálogo entre Pierre Bourdieu e Hans Haacke revela a
dimensão sociológica de parte da prática artística do período,
evidenciada especialmente pelo que ficou conhecido posteriormente (na
década de 1980) como Crítica Institucional. Peters apresenta essa
relação, mostrando trabalhos artísticos de Andrea Fraser,
artista que marcou, na década de 1980, a construção do cânone da
Crítica Institucional e propõe ao final a análise de um trabalho a
partir destas questões. O trabalho escolhido por ele foi o do
artista chileno Felipe Rivas, uma vídeo-instalação onde o artista
se masturbava em frente a uma fotografia de Salvador Allende que se
tornou polêmica e acabou censurada da exposição In-Visible para a
qual havia sido selecionada. O trabalhou gerou uma série de ruídos
ao interior da política institucional chilena ao ironizar a figura
de Allende, produzindo uma reação institucional em cadeia.
Essa
discussão ecoou na minha própria apresentação, visto que trato
especialmente de analisar os trabalhos artísticos em sua relação
com o campo da arte. A conferência que apresentei se chamou
Agenciamentos
Artísticos: uma proposta de análise sociológica dos trabalhos
artísticos e
se tratou dos resultados da pesquisa realizada para a minha tese
recém defendida. Defendo aqui uma proposta de análise sociológica
dos trabalhos artísticos em que estes sejam tomados como agentes,
entes ativos em seu processo de significação e reprodução no
campo, não apenas objetos de análise. Para criar esse conceito e
esse método de análise dos trabalhos, me baseei na ideia de campo
da arte, de Bourdieu, de práticas artísticas agonistas de Chantal
Mouffe, de obra inorgânica de Peter Bürger, além da noção de
artista cúmplice e agente duplo de Hal Foster. A noção de que os
trabalhos artísticos realizam lutas discursivas no interior do campo
também se relaciona com a prática da Crítica Institucional que
inseriu, no interior do campo da arte, práticas artísticas que se
constituem a partir da instituição onde se inserem (e de sua
crítica).
A
mesa seguinte foi dedicada a discussões relacionadas ao campo da
literatura e contou com trabalhos bem interessantes. Foram abordadas
questões como processos de canonização e o sistema literário,
estética literária em meios digitais, mudança social a partir da
análise de novelas chilenas do período pós-ditadura e a noção de
“ensemblage” e diversidade nas práticas literárias chilenas
atuais. Mas o destaque que dou aqui foi em relação ao debate gerado
posteriormente a apresentação dos trabalhos. A discussão se
centrou em temas como o questionamento de noções de sujeito e a
relação com a ideia de autor. Também se discutiu a ideia de
relação sujeito-objeto como exteriores, propondo uma noção de que
ambos se constituem em relação e, desse modo, a obra e o espectador
estão em um processo intrínseco de construção um do outro.
Me
chamaram a atenção nessa mesa particularmente os trabalhos de José
Rivera, Posdictadura,
Neoliberalismo Y Epocalidad. Representaciones Del Cambio Social En La
Novela Chilena Reciente. Los Casos De Bolaño, Leonart, Zambra,
Contreras Y Labbé e
o
de Carolina Gainza, Literaturas
Y Estéticas Digitales: Análisis De Literatura Digital En Chile. No
primeiro, me chamou a atenção como o autor realiza a análise da
mudança epistemológica ocorrida no interior da cultura e da
sociedade chilena no século XX, desde a ditadura, o processo de
instauração do neoliberalismo e o período posterior a isso. Me
interessou a análise que o autor realizou, observando a construção
dos personagens nas obras de novelistas canônicos, como Bolaños e
Contreras, e em como estes expressavam em seus dramas uma mudança de
estrutura de pensamento e epistemológica. O exemplo de análise que
ele utilizou se tratava de um personagem criado por Bolaños que era
neto de um francês imigrado para o chile a finais do século XIX. O
avô era um médico que havia vindo ao Chile para realizar
voluntariado, no seio de uma estrutura colonial francesa em que este
era o iluminado que trazia a luz à escuridão, ou seja, trazia a
cura e o conhecimento para um lugar desprovido do mesmo. A conexão
do neto com o avô é que este também é médico e, assim como este,
também imigra para realizar trabalho voluntário. Só que este
imigra do Chile para a África, circulando entre distintos lugares
periféricos. E ao contrário do avô, o neto já não crê que irá
levar a luz, o conhecimento, a salvação. E essa falta de crença o
leva a tornar-se viciado em morfina e, posteriormente, a traficar a
droga. Esse exemplo exposto por Rivera apresenta um choque entre duas
estruturas epistemológicas, de fins do século XIX e fins do século
XX. O avô crê no progresso, acredita estar no topo do processo
civilizacional, considera os “outros” a partir da sua cultura
“superior”, civilizada. O neto não tem mais uma noção de
missão e parece representar o que ficou conhecido como
pós-modernidade, ou momento de descrença e contestação da
modernidade (ou período do fim das utopias, fim das meta-narrativas
e até, para alguns mais descrentes, fim da história).
O
segundo trabalho interessante foi o de Carolina Gainza, que focou
sobre a literatura digital e os processos de criação nesse meio
através de um mapeamento de ações realizadas por poetas de
Santiago, Chile. O interessante dessa pesquisa é como Gainza propõe
uma observação dos processos de produção literária em meio
digital enfatizando questões que o estruturalismo e o
pós-estruturalismo já deixava evidente em suas críticas à noção
de autor: a ideia de que o sentido deriva de uma única fonte sendo
único e unidirecional. A noção de hipertextualidade, ou seja, a
derivação de um texto em outros textos é fundamental para entender
a existência de produções literárias no meio digital. E além
disso, o meio digital insere também a noção de hipermídia: a
ampliação do texto para imagens e sons. O interessante desse
trabalho é o interesse de Gainza em observar como funciona o
processo de criação no meio digital e em como estes geram textos e
modos de se relacionar distintos. Ou seja, como a poesia em meio
digital, além de ser vista como melhor ou pior que no meio
tradicional (o livro), interessa a Gainza como motivadora de outras
relações de leitura e de outros sujeitos criados nessa relação a
exemplo do que ela define como poeta-hacker, por um lado, e
leitor-operador: o leitor como ativador de códigos para realizar a
poesia. Mas Gainza também enfatiza, e isso é importante, que essa
capacidade ativa do leitor não é ampla, sendo limitada pela própria
proposta poética em questão. É importante lembrar nesse ponto que
a arte conceitual, o minimalismo e outras neovanguardas já no final
dos anos 1960 colocaram a questão do espectador ativo em evidência,
com o objetivo de questionar a epistemologia do espectador passivo,
ou mero observador. A noção de espectador emancipado colocava em
evidência uma relação entre espectador e obra vertical e
hierárquica e propõe uma ideia de espectador como participante da
construção do sentido e da ação do trabalho artístico. Mas
também é importante observar também como essa noção de
espectador ativo também pôde ser apropriada pelo museu-espetáculo
ou a noção de exposição blockbuster, servindo a um ativamento
acrítico e voltado a uma ideia de entretenimento, mais do que de
ativação sensível. Além de tudo isso, Gainza enfatizou também a
noção de hackeamento, cara à cultura digital, que se relaciona a
uma inserção provocadora de quebras no interior do sistema. A noção
de hackeamento é onde reside parte da potência política das ações
poéticas em meio digital; outra parte reside na noção de
compartilhamento e questionamento da propriedade intelectual que a
cultura digital põe em evidência.
As
mesas seguintes contaram com discussões que iam desde a análise da
indústria do comic (Diego Rivera e o estudo sobre os comics de
Marvel e DC Comics e sua relação com a política estadunidense),
passando por trabalhos centrados na relação entre performance e
espaço urbano. Neste último, as discussões variaram entre a
análise do movimento estudantil chileno e suas estratégias de
ativação do espaço público (Marcela Valdovino, Chile), a noção
de performatividade nas manifestações sociais chilenas (José
Parra, Chile), chegando na análise da estruturação de um campo de
práticas performáticas na cidade de Córdoba, Argentina (María
Cabezas, Argentina).
Este
último trabalho me interessou particularmente pela relação que
Cabezas estabelecia entre identificar os circuitos de performance que
estavam constituindo-se em Córdoba a partir da observação das
redes que estes grupos criavam, suas interações e as propostas
performáticas que elaboravam. Apesar de achar que a autora passou
muito tempo da sua análise em uma explicação da dificuldade de
definição do conceito de performance, deixando de explorar melhor
estes outros aspectos interessantes da sua proposta, acredito que
haviam elementos importantes para uma proposta de análise
sociológica da performance urbana em seu trabalho. Cabezas se centra
na observação do festival Convergências, na edição realizada em
2014, para identificar os artistas que trabalham com a peformance na
cidade e passaram a constituir uma rede de práticas que começa a
“institucionalizar-se”, segunda a autora. Com institucionalizar a
autora está entendendo que estas práticas começam a habitar
espaços como o da universidade, mas ainda sem chegar aos museus. Sua
análise se complexifica quando começa a preocupar-se em não apenas
observar e identificar quem são esses grupos, mas em como interatuam
e como a performance está imbricada com todos estes aspectos, e
também com os aspectos urbanos que ativam em sua existência.
Realiza, portanto, uma análise da performance considerando os
elementos estéticos desta, observando questões de sintaxe
performática em sua relação com o entorno onde ocorre. A autora
conclui sua apresentação afirmando que ainda encontra dificuldades
para definir a performance como prática artística e/ou ação de
intervenção em um ambiente urbano e coletivo; também afirma ter
dificuldades de acesso a informações e aos próprios participantes
destas redes performáticas que ainda são fechadas e restritas aos
seus membros. Inseriu o facebook no processo de construção da
análise por ser o modo mais eficaz de acessar essa rede (que poderia
funcionar como um elemento performático mais). A única coisa que
senti falta nessa apresentação foi de entender como a autora usa a
teoria de Latour (citada por ela como marco teórico) para analisar
todos esses elementos. Apesar de explicar o uso da ideia de redes e
de mediação de Latour, faltou, para mim, uma melhor relação entre
as ideias de Latour com a análise da própria performance que
tornaria esse trabalho ainda mais interessante. Ou seja, a
performance como um complexo que inclui a ação direta na rua, as
pessoas e objetos que participam dela, até o facebook como
mobilizador desta. Acredito que a autora intui essa relação e
chegará nela em algum momento.
A
última mesa do dia apresentou trabalhos em que a relação entre
artistas, instituições e mercado foram o centro. O primeiro versou
sobre a relação entre artistas e mercado no Chile (Maria Vargas,
Chile). Em seguida, foi discutida a relação da institucionalização
da arte e o estabelecimento de capital social entre os artistas de
Monterrey (Tânia Alonso, México). Por último, se apresentou a
relação entre trabalho artístico e novas tecnologias na área da
música independente na Argentina (Guillermo Guiña, Argentina). O
enfoque nessa mesa estava em questões mais estruturais, com exceção
do primeiro que, através da metodologia da produção de relatos de
vida, tentou observar a relação dos artistas com o mercado de
maneira mais micro (quase individual).
Sobre
este, gostaria de comentar que acredito que o tema é bastante
relevante e importante, mas penso que esse estudo realizado sobre os
artistas e a relação com o mercado me pareceu estar ainda em
processo. Havia um importante foco nos artistas, em seus relatos
biográficos, suas percepções e estratégias de relação com o
mercado. Mas senti falta de uma análise estrutural dessa relação.
Em um dos casos estudados, apareceu a relação que a artista
estabelecia com o mercado, suas estratégias de criar público e
gerar interesse para seu trabalho, produzindo valor, através de
ferramentas como o facebook. Mas senti que a apresentação dessas
estratégias não vieram acompanhadas de uma análise mais acurada
sobre as mesmas. O que significam essas estratégias pessoais no
interior da estrutura do mercado de arte neoliberal chileno? Essa
pergunta ficou sem resposta para mim. Mas penso que o avançar dessa
pesquisa talvez aponte essas questões para as autoras que a
apresentaram.
O
trabalho da mexicana Tania Alonso versou sobre o processo de
institucionalização da arte na cidade de Monterrey, México, e como
isto gerou processos de produção de capital social entre os
artistas locais. A autora faz um breve relato histórico-geográfico
da cidade, evidenciando o caráter industrial e empresarial da mesma
e relaciona esse dado com os processos de institucionalização da
arte que começa a se formar aí em meados da década de 1990. Essas
características, segundo Alonso, fazem com que Monterrey esteja mais
identificada ao discurso da arte contemporânea e a uma noção de
profissionalização, diferenciando-se das cidades mais ao sul do
México em que a produção cultural se identifica a uma identidade
cultural indígena. A autora não utiliza a noção de campo da arte
de Bourdieu para se referir a esse processo de institucionalização,
preferindo o conceito de institucionalização de George Dickie o
qual, segundo ela, se baseia nos escritos de Artur Danto. Media essa
noção de institucionalização com o conceito de capital social de
Bourdieu em sua análise dos processos de profissionalização dos
artistas e do mercado local.
O
último trabalho apresentado nesse dia, do autor Guillermo Guiña,
chamou a atenção para processos de precarização do trabalho na
relação com novas tecnologias digitais na produção musical
independente. Particularmente me interessou a relação que Guiña
estabelece com a noção de espírito do capitalismo de Boltansky e
Chiapello, no qual se evidencia como a emergência do discurso
empresarial, relacionada à rearticulação do capital que tornou o
neoliberalismo hegemônico na década de 1980, insere noções
empresariais na cultura. Entre os termos mais comuns desse léxico
empresarial na área da cultura, estão as noções de flexibilidade,
liberdade, autonomia relacionados à ideia de indústria criativa.
Processos que geram o artista produtor, empresário de si mesmo que
compete em um cenário de desigualdade (enfatiza como as indústrias
de streaming como Spotify são concentradoras de renda no cenário
aparentemente democrático da rede digital). A inserção dessas
noções de auto-gestão (até mesmo da noção de gestão) na
cultura, no plano político, significa um giro na noção de
incentivo em produção cultural para o apoio a projetos de economia
cultural. O interessante da análise foi apresentar como grupos de
artistas independentes passam por um processo de precarização do
trabalho musical, em que as novas tecnologias não interferem
positivamente no processo de pré-produção e de produção musical.
Ou seja, o enfoque do autor era em processos laborais na produção
artística e sua precarização e desvalorização sistemática
versus noções românticas de autonomia e liberdade no seio de um
processo de transformação do artista em empreendedor de si mesmo e
concorrente em um mercado desigual e excludente. Se as novas
tecnologias, por um lado, parecem facilitar a divulgação e a
difusão do trabalho, não são significativamente positivas em
processos de gravação e produção do material musical que ainda
exigem investimentos em equipamento e em espaços físicos. O mercado
de streaming concentra os lucros com as músicas vendidas e se
beneficia da renovação da oferta musical realizadas pelos próprios
artistas que se auto-gestionam. A análise do autor ainda evidencia
relações de trabalho precárias em que os músicos são obrigados a
tocar sem receber pagamento em várias situações, com o intuito de
ganhar visibilidade. Num contexto de incentivo à auto-gestão, de
pouco ou nenhum financiamento estatal na produção musical
(cultural), de mercado competitivo e desigual, os músicos
independentes são transformados em empreendedores, investidores e
administradores dos seus próprios trabalhos, passando a competir
individualmente com outras instâncias e agentes da indústria
cultural mais organizados e melhor posicionados. E no meio de todo
esse processo, a condição de precariedade se mantém obscurecida
por uma estrutura de sentimento (Williams) em que a condição de
marginalidade da arte é vista de maneira romantizada, segundo Guiña.
Esse trabalho despertou meu interesse porque, a meu ver, lança
perguntas que acredito ser fundamentais no debate da relação entre
arte, mercado, políticas públicas e prática artística são: quais
são os tabus que a arte enfrenta na relação com a noção de
trabalho? Como considerar o trabalho artístico em um sistema
produtivo? Seria a arte um trabalho como outros? E se sim, como
proteger os artistas de determinadas dinâmicas precárias e
desiguais dos mercados de arte? Creio que estas são questões importantes para refletir e pesquisar.
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