O Grupo
de Trabalho de Sociologia da Arte no 9º Congreso Chileno de
Sociología contou com uma diversidade de trabalhos concentrados nas
áreas de música, artes visuais e literatura de países como Chile,
Argentina, Brasil e México. A coordenação do GT ficou a cargo de
Marisol Facuse (Prfª. Drª Universidad de Chile), Laura Lattanzi
(Prfª. Drª Universidad de Chile), Tomás Peters (Profº Drº
Universidad de Chile y Carolina Ibarra (Universidad Arcis).
Dia
3
No
último dia do Congresso, as últimas mesas discutiram temas
relacionados ao uso da cultura pela máquina política estatal,
gestão cultural e políticas públicas e a relação entre
identidade e produção cultural. Foram apresentados vários
trabalhos interessantes, estando apenas um destoando do nível das
discussões. Esse trabalho em particular apresentava dados
estatísticos que demonstrava uma concentração de equipamentos
culturais nos bairros de Providência e Santiago Centro, em Santiago,
sem entrar em uma discussão mais aprofundada sobre qual relação
era possível estabelecer entre produção cultural e presença de
museus, salas de concerto, de teatro, etc. Os dados estatísticos,
como vários pesquisadores sabem, não falam por si e nem sempre
podem ser inferidos destes diagnósticos completos e/ou taxativos
sobre determinada realidade. Além do mais, é preciso investigar e
ter claro de que fontes estes dados provêm, para não incorrer em
erros de análise básicos. Por exemplo, durante a apresentação, o
autor desse trabalho afirma que há apenas dois estúdios de gravação
de música no setor de Providência e que esta realidade poderia
afetar a produção musical. O dado a que se refere este autor
provavelmente é um dado oficial (ele era representante do Conselho
Nacional de Cultura do Chile) que não condiz com a realidade de
infinidades de estúdios particulares que existem pela cidade. A
produção musical da cidade é profícua e ocorre, em grande parte,
por fora de circuitos oficiais e documentados pelo Estado, para dar
apenas um pequeno exemplo. O trabalho não apresentou relações mais
complexas entre instituições e produção de cultura e em que
medida a presença ou falta delas interfere nesse processo.
Passando
aos trabalhos interessantes, me chamou atenção na primeira mesa a
apresentação da antropóloga Carla Pinochet (Chile), especialmente
pelo debate que gerou depois. O trabalho, intitulado Ciudad,
Festival Y Democracia. Sobre El Papel De La Cultura En El Chile
Contemporáneo, discutia
a relação entre a instauração do processo democrático no Chile e
a realizações de festivais populares. Estes eventos, de caráter
massivo, dialogavam com uma espécie de reivindicação popular da
celebração e da ocupação do espaço público após anos de
ditadura, repressão e negação do público. Porém, afirma a
autora, é preciso atentar para a dimensão instrumentalizante que
esses eventos alcançaram a partir do momento que foram capitalizados
por forças políticas do momento para gerar benefícios eleitorais.
Ao mesmo tempo que havia a afirmação de uma dimensão democrática
e cidadã na realização destes eventos (alguns dos festivais
passaram a realizar serviços cidadãos como de retirada de
documentos), por outro lado eram realizados por produtoras
particulares e os artistas participantes, ao menos no período Lagos,
eram escolhidos, em sua maioria, por sua simpatia com o movimento
chamado “Nova Concertação”. Desse modo, Pinochet centra o
interesse da sua pesquisa nessa relação paradoxal entre a
reivindicação do coletivo, do democrático e do popular versus a
organização vertical desses eventos e a instrumentalização dos
mesmos por forças políticas que se estabeleciam no poder na época.
Estes eventos de caráter massivo, segundo a autora, não geraram uma
política cultural permanente (não haviam investimentos em
estruturas culturais para além da realização destes festivais). A
presença de produtoras privadas, diz ainda Pinochet, marca uma
característica do estado neoliberal chileno em que o poder privado
passa a adquirir o protagonismo na realização de políticas
estatais (processo aprofundado ainda mais no governo de Piñera) e,
nesse caso, será a iniciativa privada que protagonizará a
realização destes eventos, como acontece até os dias atuais. Essa
relação com produtoras privadas faz com que o foco passe a estar no
número de público e não em um processo de formação destes.
Segundo Pinochet, o conteúdo das ações culturais deste festival
pode ser considerado “circense”, ou seja, espetacular e não
geram uma participação. Para a autora, não existe um processo de
formação de audiências e esses eventos não produzem nenhum
impacto em níveis de violência dos locais onde ocorrem nem são
permanentes no tempo. A autora situa esse tipo atuação política,
apoiada na realização de grandes eventos, como Tecnologia da
Felicidade no interior das políticas democráticas. O debate que
esse trabalho gerou foi bastante interessante pois se centrou em
algumas questões relativas ao público e às noções de “alta”
e “baixa” cultura. Foi questionado a definição um pouco
taxativa da autora sobre o conteúdo de algumas ações ser
“circense” e isso significar uma relação com uma noção de
baixa qualidade. Também se questionou uma ideia de passividade do
público que poderia subentender de sua explicação. A autora
considerou alguns dos comentários como importantes, mas justificou
seu foco na relação entre políticas de estado populistas e a
relação disso com a esfera privada e mercantil na produção de
grandes eventos populares. Obviamente, é preciso tomar cuidado com
certas definições de cultura do espetáculo e alienação para não
reproduzir preconceitos culturais em relação à cultura popular e
de massa. Na minha opinião, a autora realiza uma pesquisa bastante
interessante e a atenção aos conteúdos culturais enfatizados é
extremamente necessária e a análise dos mesmos, estando embasada em
parâmetros mais analíticos e relacionados ao objetivo da pesquisa,
será fundamental.
A
segunda mesa se centrou na discussão sobre identidade, mestiçagem,
afirmação cultural e processos de exotização na experiência e
produção cultural. O primeiro trabalho apresentado, da autora
Constanza Lobos (Chile), tratou das relações de integração
cultural (mestiçagem) a partir da análise de práticas culturais de
músicos imigrantes no Chile. A autora apresenta, a partir de três
estudos de caso, diferentes estratégias adotadas pelos músicos
imigrantes em sua trajetória no Chile. A partir da análise da
trajetória destes grupos, como se formaram, de onde vieram, onde
tocam, que repertório executam e como, em seus discursos, definem e
representam suas práticas, a autora define três processos
distintos: 1) assimilação cultural; 2) Transculturação; 3)
Reafirmação da Identidade Cultural. No primeiro caso, o grupo
abandona sua música tradicional para incorporar demandas do mercado
chileno no seu repertório; no segundo, se trata de um grupo que
adaptou elementos da música tradicional de sua cultura,
misturando-os a outros elementos; no terceiro caso, o músico em
questão faz uma constante afirmação de sua identidade, tocando
apenas um repertório próprio que se relaciona com a música
tradicional do seu país. A conclusão a que chega a autora é a de
que há um processo ainda incipiente de mestiçagem, existindo uma
forte afirmação identitária dos imigrantes e pouca noção de uma
identidade transnacional. Segundo a autora, falta uma maior
integração destas comunidades à cultura chilena e vice-versa, onde
haja um real intercâmbio e enriquecimento cultural a partir destas
influências diversas.
Na
segunda apresentação da mesa, da autora Marisol Facuse (Chile), as
noções de tradição e autenticidade que aparecem mencionadas na
primeira apresentação, são melhor problematizadas. Apresentando
o trabalho Identidades
Nacionales, Autenticidad
Y Exotización En Las Músicas Migrantes Latinoamericanas, Facuse
centra
o
interesse de pesquisa nas transformações identitárias através de
relações coletivas que impactam na prática musical. Facuse
centra sua análise nos migrantes latino-americanos no Chile,
evidenciando como relações de poder estão também incluídas na
relação entre identidades culturais que compartilham o fundo comum
da colonialidade. Nesse
processo, segundo a autora, persistem a disputa pela autenticidade e
processos de criação do exotismo que acabam por gerar valores e
juízos no processo de transmissão das práticas culturais. Em sua
investigação, Facuse identificou que processos relacionados a
noções de autenticidade e originalidade podem
gerar dificuldades
e/ou
resistências na
transmissão de práticas ou na
realização destas em outros ambientes urbanos e culturais. Porém,
acredita que práticas
como a
musical possuem
uma potência de gerar novas sociabilidades fundadas na integração
e no reconhecimento mútuo, para contrapor-se à
realidade atual de distanciamento, etnofilia (fascinação pelo
outro), curiosidade e exotização, de um lado, e resistência de
transmissão cultural através
de uma afirmação de autenticidade,
de outro. Em sua análise identifica que a realização dos carnavais, por exemplo, incorporou elementos festivos (musicais e
dançantes) nos protestos de rua chilenos. Ou seja, a realização
destas festas insere novos modos de ocupação do espaço urbano e
diferentes práticas musicais associadas. Em resumo, para Facuse,
apesar de ainda permeado por resistências , preconceitos e
desigualdades,
o processo de transculturação acontece e é possível observá-lo
em práticas musicais, alimentares e de vestimenta que se modificam e
são incorporadas. O interessante desta análise é propor uma
observação da transculturação em seus detalhes, não tomando os
processos de resistência nem os de aculturação como totais e/ou
homogêneos. Nos exemplos relatados, a complexidade da noção de
representação cultural (conceito de Lefevbre) tornava visível uma
experiência migratória de representar o que já não está. A
reencenação de festividades, a reprodução de práticas musicais,
dançantes, alimentares, são essa constante reivindicação de uma
originalidade que se perdeu no processo de migração, mas que se
pretende recordar, representar. E no processo de contato entre estas
distintas tentativas de manter o eu, do lado de quem imigra e do lado de quem recebe o imigrante, as porosidades são por onde as
mudanças ocorrem.