Neoliberalismo. Essa palavra, de tão dita repetidas vezes, já se
tornou uma espécie de jargão o qual quase ninguém se pergunta mais
sobre o seu sentido. O que é neoliberalismo? Uma ideologia
econômica. Mas que ideologia econômica é essa? Uma ideologia
econômica que, em termos gerais, defende a ampliação das forças
do mercado e do patrimônio privado em detrimento da esfera do
Estado, diminuída e restringida ao papel de facilitador dos negócios
e realizador do controle social, através da polícia. Esse
encolhimento da esfera estatal resulta na diminuição ou quase
ausência de políticas de bem-estar social e investimentos em amplos
setores da vida social, incluindo a cultura.
Privatizar, o lema principal do neoliberalismo, se tornou uma ação
com graves consequências para vários países, especialmente nós
aqui na América Latina. Setores estratégicos como de produção
energética, telefonia e até gestão das águas, foram vendidos para
o capital estrangeiro. Enquanto isso, setores como o de cultura
passaram a ser dominados por um pensamento empresarial onde o
marketing ganha destaque. Em vários países, grande parte das
políticas culturais foi reduzida à promoção de fundos de
financiamento e acordos com o empresariado para que este financie a
cultura em troca de abono dos impostos. Os artistas e demais agentes
da cultura, nesse cenário, foram obrigados a especializar-se em
áreas como administração, gestão de projetos e contabilidade, a
fim de sobreviver a essa nova lógica da necessidade de captar
recursos para produzir.
E num cenário de políticas estatais para a cultura reduzidas,
priorização do financiamento privado, as instituições também
sofrem impactos bastante importantes. O principal deles é diminuição
do envio de verbas para manutenção, falta de política para
constituição de acervos, dificuldade de estabelecimento de
programações de exposições consistentes e constantes, diminuição
do protagonismo das instituições no fomento da produção artística
(pouca ou nenhuma realização de cursos e seminários, pouca
produção de publicações, não-estruturação de setores de
pesquisa e não realização de programas para artistas). Para
sobreviver, muitas destas instituições são obrigadas a concorrer
por patrocínios, muitas vezes participando dos mesmos editais que os
artistas, gerando uma competência desigual, por um lado, e
dificultando a manutenção de políticas regulares institucionais,
visto que estas se vêm sujeitas às instabilidades dos editais, por
outro.
Essa descrição mais ou menos genérica da situação institucional
frente a falta de políticas estatais para a cultura dá uma sensação
de familiaridade imediata. Causa a impressão de se estar descrevendo
a situação real de vários museus pelo mundo. E essa situação de
descaso leva a várias consequências no interior dos contextos
culturais e sociais.
Junto com isso, a visão da cultura como um “serviço”, inserida
por esse pensamento empresarial e mercadológico neoliberal, é
relacionado, por vários pesquisadores, ao surgimento dos chamados
museus pós-modernos, ou museus-espetáculo. São instituições
constituídas, geralmente, com projetos arquitetônicos arrebatadores
e situadas em lugares que estão sendo valorizados economicamente. O
objetivo dessas instituições, quase sempre, é o de realizar
exposições que atraiam o maior número de público possível. As
noções de lucro, valorização e commoditie podem facilmente ser
aplicadas para definir estas instituições que se tornam, elas
mesmas, commodities para o mercado imobiliário e turístico do lugar
onde se situam.
No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, uma instituição
com essas características foi recentemente inaugurada, chamada Museu
do Amanhã1.
O fato, em si mesmo, que existam instituições voltadas para o
entretenimento e o turismo não é o grave e o crítico da questão.
O fato é que milhões de reais da esfera governamental da cidade
foram usados na construção de um museu - que tem como sócio um dos
grandes conglomerados de televisão do país, a Rede Globo, além do
Banco Satander - enquanto outras instituições públicas perecem, a
exemplo da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, ameaçada de
fechar por falta de recursos.
A arquitetura deste museu e o lugar onde se situa, na Praça Mauá,
se conectam com a recente política realizada na cidade do Rio de
Janeiro, a da realização de grandes obras para tornar a cidade
turisticamente atrativa para as Olimpíadas. Aliada a essa política,
está a ação de higiene social, através do braço armado da
polícia, que tem sido uma das principais formas de ordenar o espaço
urbano nessa cidade nos últimos anos, além de indicar que tipo de
política para a cultura se realiza. Aqui, muito claramente, vemos
operar a lógica da espetacularização da cultura com o objetivo de
gerar renda e valor.
Outro fator que atinge diretamente o setor cultural são as crises
econômicas, aliadas à precariedade da estrutura estatal.
Recentemente, foi anunciado, em São Paulo, o fechamento do Paço das
Artes. Criado em março de 1970, a instituição chega às vésperas
do seu aniversário de 46 anos com a incerteza de sua continuidade. A
última exposição, do alemão Harun Farocki, está em cartaz até
março. De aí em diante, é incerto o futuro da instituição que
nunca teve uma sede própria em sua história. Funcionando atualmente
em um prédio situado no campus da Universidade de São Paulo, terá
que sair do atual endereço porque o Instituto Butantã, a quem o
edifício pertence, está pedindo-o de volta. E junto com a perda do
edifício, a atual diretora da instituição, Priscila Arantes, prevê
um corte na verba de 15 milhões anuais, dividida com o Museu da
Imagem e do Som. A esperança é a de que a Secretaria de Cultura do
Estado de São Paulo entregue um edifício para que o Paço das Artes
construa sua própria sede e possa continuar funcionando e realizando
ações de fomento e exibição da arte contemporânea no país.
Dentre as várias atividades realizadas pelo Paço, estão programas
importantes e reconhecidos em todo o país como o edital Temporada
de Projetos e o Programa de Residência Paço das Artes. Além
disso, desde 2011, o Paço abriga a PARTE, umas das primeiras feiras
exclusivas para a arte contemporânea.
Outra situação parecida, ou talvez mais grave, ocorre em Recife,
Nordeste do Brasil. No interior de um contexto mais amplo de crise
política e econômica, que toma conta de todo o país, a situação
cultural da cidade se tornou mais crítica após uma sequência de
duas administrações municipais que desmontaram toda a pequena
estrutura que se havia conseguido construir. Seguindo a mesma lógica
de política urbana e cultural voltada para a promoção de um
turismo de marketing, e baseado em uma relação espúria entre
instituições privadas e a esfera governamental, foram criadas duas
novas instituições, o Paço do Frevo e Cais do Sertão. Situadas em
uma área histórica da cidade (o Paço do Frevo) e numa antiga zona
portuária da cidade (Cais do Sertão) - a qual foi completamente
descaracterizada para dar lugar a empreendimentos turísticos - foram
construídas em sistema de Parceria Público-Privada, onde o Estado
financiou grande parte da obra e uma empresa privada ficou a cargo da
administração da instituição.
O financiamento dessas duas instituições levou o Estado a alegar
falta de verbas para a manutenção de outras ações culturais, como
o pagamento dos artistas que participaram de ações realizadas pela
Fundação de Cultura do Estado (Fundarpe), além de custar também,
no nível municipal, o completo abandono de instituições que foram
fundamentais na estruturação da arte contemporânea na cidade, a
exemplo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM). Sem
contar a destruição do Teatro do Parque, um dos mais tradicionais
da cidade, que está em ruínas e a prefeitura se recusa a realizar
sua reforma.
Mas o que mais indignou a cena cultural da cidade foi o anúncio de
fechamento das duas instituições recém-construídas. O Paço do
Frevo já demitiu funcionários e deixou vários em aviso-prévio. O
Cais do Sertão também anunciou o fechamento, provocando a revolta
da classe artística e da população que lutou, desde o início,
contra a revitalização da qual o projeto do museu fazia parte, que
descaracterizou todo o patrimônio portuário da cidade. A corrupção
evidente da relação entre o governo e o setor privado chegou no
limite do desmonte completo, momento em que as instituições se
tornam empresas que são fechadas ao não proporcionar o lucro
esperado pelos seus donos. Instituições que foram construídas com
dinheiro público, que modificaram um pedaço da cidade
historicamente importante e que, no final, não constituíram nenhum
benefício além o de promover lucros ao setor privado. E em pouco
menos de três anos de funcionamento já são descartadas e fechadas,
demonstrando um completo descaso com o setor cultural pelos governos
do estado de Pernambuco e da cidade do Recife, além de um evidente
entreguismo do patrimônio público à irresponsabilidade
administrativa do setor privado.
Importante dizer que a única instituição que funciona de maneira
mais ou menos regular é o Museu do Estado que foi privatizado. Ou
seja, a única instituição estatal que Pernambuco possuía está
agora sob os cuidados do Banco Satander, até quando este deseje.
Com uma produção bastante prolífica e atuante, seja nas artes
visuais, como na música e no teatro, Recife quase nunca, ou muito
poucas vezes em sua história, contou com uma malha institucional que
desse suporte e fomentasse a mesma. Iniciativas pontuais, as vezes
privadas, e sem continuidade, marcam a história dos grandes momentos
da produção artística. Aliás, a história da arte visual
recifense é marcada pela articulação e ação em coletivos de
artistas. Foi graças a vários momentos de produção em grupo que a
arte pernambucana se manteve potente e ativa, no seio de uma completa
carência institucional que é histórica.
E no Brasil, em geral, foram poucos os momentos em que o Estado
promoveu políticas culturais. Uma primeira tentativa de estruturação
estatal aconteceu no período do governo do presidente Getúlio
Vargas conhecido como Estado Novo, entre 1937 e 1945. Nesse momento,
participaram do governo intelectuais importantes como Mário de
Andrade e foram criados órgãos até hoje fundamentais como o
Serviço do Patrimônio Artístico (SPHAN) hoje tornado instituto
(IPHAN). Após a época da ditadura do Estado Novo, foi no período
da ditadura militar que a área da política cultural brasileira
viveu um novo momento de expansão, quando novos órgãos como a
Fundação Nacional das Artes (Funarte) foram criados. É importante
ressaltar essa coincidência: quando o país viveu dois de seus
maiores momentos de governos ditatoriais foi também quando teve
maior atenção a área cultural. O aparente paradoxo se resolve
quando compreendemos que a necessidade de integração nacional
exigida pelo controle ditatorial, por um lado, e a necessidade de
controle da produção cultural e intelectual, por outro, foram
motivos que levaram à criação de inciativas estatais nessas áreas.
E, desde os anos 1980, quando a lei Sarney foi criada, o Estado, que
nunca foi exatamente presente na formulação de políticas culturais
e na sua estruturação, se ausentou ainda mais no Brasil. Essa lei,
parecida a várias outras implantadas na América Latina, autoriza o
financiamento de ações culturais através do patrocínio privado.
Empresas são estimuladas a investir na cultura em troca de isenções
fiscais dos governos. O que parece investimento privado é, na
verdade, dinheiro público, visto que esses recursos deixam de
tornar-se impostos que são, teoricamente, dinheiro dado por todos
para ser compartilhado para todos. E, além de tudo isso, as
inciativas culturais ficam sujeitas à lógica de marketing das
empresas, o que promove a desigualdade da destinação desses
investimentos, prejudicando a diversidade da produção artística.
Sem instituições fortes, estruturadas e funcionando bem, a produção
artística fica à mercê desses investimentos privados e de ações
coletivas ou particulares para continuar existindo. O desmonte
institucional torna-se prejudicial até para o mercado de arte, visto
que as galerias passam a cumprir o papel de instituições,
fomentando a produção, a pesquisa e a difusão, o que prejudica sua
atividade de expor, inserir o artista no mercado e vendê-lo. Além
disso, são instituições fortes, que possuem políticas de acervo,
que podem fazer o mercado girar também ao adquirir obras e exibir os
artistas. Ou seja, até para a lógica de mercado, essa ideologia
neoliberal do espetáculo e da efemeridade na área da cultura,
levada ao extremo que estamos vivendo, torna-se prejudicial. É
preciso uma mudança urgente nos parâmetros governamentais no
tratamento da cultura e do patrimônio público. E a primeira coisa é
o público, que somos nós, que somos todos, tomarmos consciência do
nosso papel cidadão e começarmos a defender o público da sanha
lucrativa sem limite de uma parte do privado.
1O
Museu do Amanhã foi inaugurado no Rio de Janeiro no dia 19 de
dezembro de 2015.