Texto inédito
Pensar em museu, quase sempre, implica pensar passado, tradição, memória. Mas e o que isso tem a ver com modernidade? Aparentemente, nada. Mas se retomarmos o fio da meada de sua instituição, poderemos ver como esta tem a ver com o processo de modernização da sociedade.
Iniciando esta discussão, encontramos no texto da
pesquisadora Lisbeth Rebollo1,
uma noção de museu em que estes aparecem ligados à ideia de
produção de conhecimento, de salvaguarda de “tesouros” e de
exposição. Remontando aos primeiros usos registrados do termo, a
autora o encontra no grego mouseîon,
traduzido como templo das musas, e
registra que este já era usado no século I A.C. para denominar uma
espécie de centro interdisciplinar de cultura e patrimônio. Estes
eram lugares de contemplação e estudos literários, artísticos e
científicos, não estando ainda relacionados à ideia de coleção e
de salvaguarda e exibição da mesma. O nome museu será pouco usado
após esse período, até reaparecer em meados do século XV, quando
o colecionismo torna-se moda na Europa.
Durante esse período, marcado pela revolução do olhar e da sensibilidade, provocados, entre outras coisas, pela expansão marítima, pelo aparecimento e ampliação do espírito humanista e científico da época, o Renascimento testemunha o surgimento de grandes coleções principescas e também pertencentes a autoridades religiosas. Surgidas a partir do século XIV, serão ampliadas nos próximos dois séculos graças aos financiamentos de famílias nobres a artistas cortesãos, mas também aos objetos trazidos da América, da Ásia, África e Oriente Médio.
Além dessas coleções principescas e religiosas, nesse período
surgem também os famosos gabinetes de curiosidades e as coleções
científicas. Estas eram formadas por estudiosos e tinham um objetivo
mais pragmático de colecionismo: de promover conhecimento e
estimular o estudo científico sobre a natureza. Reuniam grande
quantidade de objetos e seres exóticos vindos de terras distantes.
No início caóticos, com o tempo foram se aprimorando para
acompanhar os progressos científicos realizados, principalmente, nos
séculos XVII e XVIII. Muitos destes gabinetes se tornaram,
posteriormente, museus científicos e de história natural.
Porém, nesse período, essas coleções, apesar de grandes e
vastas, eram de acesso restrito e privado, restringindo-se aos
frequentadores da corte e amigos e conhecidos dos donos destas. As
galerias, inventadas nesse período, são os corredores dos palácios
e dos templos onde residem as obras. Os gabinetes funcionam como
museus, mas ainda não possuem a ideia de abertura ao público.
Somente em finais do século XVIII irão surgir configurações
museais voltadas à preservação do patrimônio e de sua exibição
pública. Sendo assim, o conceito de museu que vai nos interessar
aqui se relaciona às configurações que este assume a partir da
emergência da sociedade burguesa, das ideias iluministas de
conhecimento e progresso, da configuração dos Estados Nação e da
relação com o desenvolvimento científico, tecnológico e
industrial. Ou seja, para esta tese, interessa entender o museu como
projeto intrinsecamente ligado à emergência da modernidade, como
destaca Andreas Huyssen2.
Desse modo, é preciso considerar que durante o século XVIII
acontece uma mudança fundamental na estrutura social da Europa,
especialmente na França, país em que profundas transformações
políticas e sociais irão, posteriormente, impactar em todo este
continente e na ideologia ocidental. A Revolução Francesa de 1789
destituiu o Antigo Regime, detonando, junto com ele, as estruturas
aristocráticas e nobiliárquicas que, entre outras coisas, mantinha
os artefatos artísticos e culturais à distância da massa da
população, restritos às galerias criadas nos palácios e nas
Igrejas. Aliado a uma necessidade de afirmação nacional, de fomento
de uma ideia de identidade cultural, de salvaguarda dos monumentos e
de desvinculação dos mesmos à monarquia e à igreja (para evitar
que fossem destruídos), surgem os museus como o espaço neutro de
salvaguarda e exibição de extensas coleções artísticas e
científicas, antes escondidas das vistas de todos ou ordenadas de
maneira menos sistemática (como nos já citados antigos gabinetes de
curiosidades). Segundo ainda Rebollo:
Na França, após a revolução
de 1789, inúmeros monumentos são destruídos. Para salvaguardar as
riquezas artísticas, evitando-se estes atos de destruição e
pilhagem, criam-se estes espaços neutros para fazer esquecer a
significação religiosa, feudal ou monárquica das obras de arte.
Estes espaços são os museus que assumem o papel fundamental de
conservar as obras e os monumentos após a ruptura com o Antigo
Regime. Procede-se a um grande inventário das coleções existentes.
O Estado se torna proprietário e conservador dessas coleções
científicas e artísticas. A República, pouco a pouco, assume um
compromisso com a história da nação. Um decreto faz com que todas
as obras de arte sejam reunidas no Louvre. No dia 10 de agosto de
1793, aniversário da queda da monarquia, abre-se o Museu des Arts.
As obras de arte são vistas não só como monumentos históricos,
mas como grandes meios de instrução, cujo talento enriquece as
gerações. (GONÇALVES, 2004:14)
É
importante observar o destaque dado para o papel do Estado nessas
configurações iniciais dos museus. Estas instituições cumpriam um
importante papel político nos Estados Nação em formação, sendo
um suporte fundamental para o fomento de uma ideia de identidade
nacional. Eram produtores de conhecimento, ou seja, quase
alfabetizadores das massas sobre a história de suas nações, eram
salvaguarda dessa memória e, portanto, criadores e difusores de uma
narrativa que ajudava a promover uma ideia de pertencimento e
identificação local nas populações. E, como diz Huyssen, a união
dessa necessidade de formação de uma integração nacional, por um
lado, aliada ao medo do esquecimento e da perda que afirma uma
vontade de tradição é diretamente relacionada a um projeto moderno
de sociedade.
Esta narrativa criada e difundida pelo museu necessitava ser
legitimada para poder funcionar plenamente em seus objetivos
instrutivos e formativos. Deste modo, a ideia de neutralidade e
universalidade eram pontos-chave nas narrativas museológicas (e
históricas e científicas) da época. Segundo o sociológo Jacques
Leenhardt, “longe dos templos, das igrejas, dos palácios, longe da
natureza ou das culturas exóticas, os objetos (reunidos no museu)
flutuam numa ausência de relação com qualquer prática que seja.
E, por causa dessa ausência de relação, eles se tornam o resquício
do eterno humano, a presença da universalidade do homem tal como a
época que inventou o museu tendia a promover” (in GONÇALVES,
2004:16). É dentro desta perspectiva universalista, neutra
(distanciada de intenções monárquicas e religosas), desconectada
de seus contextos originais para servir a um bem maior que, em 1793,
é criado, por exemplo, o Louvre, através de um decreto que
determinava que todas as obras confiscadas da corte real deveriam ser
reunidas nele e disponibilizadas para o público.
Várias outras instituições foram criadas nesse período, até
início do século XIX, consolidando de vez esta concepção moderna
de museu. São elas: Museu Britânico (Grã Betanha, 1753), Museu
Belvedere (Viena, 1783), Museu Real dos Países Baixos (Amsterdã,
1808), Museu do Prado (Madri, 1819), Altes Museum (Berlim, 1810),
Museu Hermitage (São Petersburgo, 1852). Importante ressaltar que
esses museus foram concebidos dentro de um espírito nacionalista,
tendo, portanto, como característica principal, uma latente ambição
pedagógica – formar o cidadão através do conhecimento do
passado. Dessa forma, estas instituições participaram de maneira
decisiva no processo de constituição das identidades nacionais em
formação no período. Conferiam uma ideia de passado e um sentido
de antiguidade fundamentais para o processo de constituição dos
Estados Nação.
Lembrando que, neste momento, vários países do continente
americano e africano, entre outros, ainda viviam um período
colonial, é importante considerar que estes museus funcionaram,
também, como uma espécie de vitrine das conquistas dos seus
criadores. Artefatos indígenas, tesouros descobertos nas pirâmides
egípcias, Maias e Astecas, objetos produzidos por populações
africanas, aborígenes, entre outras, tudo que era próprio dos
conquistados, antes guardados nas cortes e palácios, passaram também
a ser exibidos para a população, geralmente nos museus de história
natural.
Esse discurso que criava a separação de um eu e um eles,
geralmente o outro lado sendo interpretado como próximo à natureza,
não civilizado, selvagem, marcou também a legitimação da
conquista destes povos e da ideia de evolução própria daquela
época, na qual a Europa seria o estágio mais avançado. Em outras
palavras, o museu também foi o lugar onde a epistemologia europeia
universalista tomou corpo em forma de verdade absoluta, visto que
este lugar era tido praticamente como templo dotado da capacidade de
suspender os artefatos de seus contextos originais, recolocando-os em
um ambiente cujo foco era a transmissão do saber e do conhecimento.
Como consequência disso, tudo o que se exibia e se tornava visível
aí, se convertia automaticamente em uma verdade, em um discurso
legítimo.
Mas, como lembra Huyssen, os museus também são espaços
dialéticos em que esses elementos entram em contradição e em
conflito todo o tempo. Este autor reconhece, por um lado, o caráter
de salvaguarda e colecionista dos museus, o que o torna prenhe de um
caráter mortuário (como também afirma Adorno em sua análise sobre
os museus). Ou seja, o museu como o mausoléu dos objetos, lugar de
satisfação de uma pulsão de morte que acaba por assassinar o que
entra em seu ambiente (satisfação da vontade de tradição,
recuperação de uma memória que justifique o presente). Porém
entende, por outro lado, esta instituição como também passível de
abrigar a reconstrução desse passado no presente, através da ação
do público e dos agentes que contribuem para a formação da
narrativa apresentada no museu – cujo canal de transmissão, por
excelência, são as exposições.
Neste ponto, o das exposições, acreditamos importante
reter-nos um pouco mais. Isso porque, na opinião de vários
pesquisadores e também da nossa, os discursos dos museus, para serem
apreendidos e difundidos, dependem da exibição. São vários os
estudos sobre as exposições que enfatizam o seu caráter de
promotor de visibilidade e legitimação de objetos artísticos,
científicos, arqueológicos e também técnicos, numa dimensão mais
ampla. Rebollo, citando outra vez
Jacques Leenhardt, destaca que este autor pensa a exposição como
sendo, também, um espaço social de saber, “remetendo-se ao
registro de que, no século XIX, a palavra exposição significa
metonimicamente o lugar onde as pessoas podem ver, conhecer várias
coisas que antes eram desconhecidas, em particular no campo do
desenvolvimento científico e técnico.” (2004:30).
E, voltando a Huyssen, é nas
exposições, nesse espaço de saber compartilhado que proporciona,
que, na opinião do autor, acontece a possibilidade de uma sobra de
significado que excede o conjunto das fronteiras ideológicas,
abrindo um espaço para a reflexão.
Essa possibilidade de fronteira é importante ser considerada porque
é aí onde muitas das ações críticas às instituições podem se
realizar ou, por outro lado, transformar as próprias em espaços de
reflexão crítica e propositiva. Por
outro lado, é importante pensar também que, ao longo do tempo, a
atividade expositiva passa a se relacionar não só com a dimensão
do saber e da visibilidade de discursos institucionais, mas também,
ainda no século XIX, com a dimensão do
mercado.
E a relação a exposição com o mercado, especialmente na
época dos salões no século XVIII, impactará em transformações
importantes, a partir da emergência da ideologia da autonomia da
arte. E na análise de Sônia Salcedo
(2008), tem-se um interessante quadro deste relacionamento entre
exibição, legitimação e necessidade de busca de espaços
autônomos para a arte - também ela autônoma. Para a autora, “se
toda obra é uma afirmação que só se revela quando abandona
o isolamento do ateliê e se apresenta diante de outro sujeito,
depreendemos que a autonomia do circuito artístico vincula-se à
transmissão e à recepção de seus objetos, pois é exibindo-os que
as ideias e convicções artísticas adquirem concretude”
(2008:25). Desse modo, a autora põe em evidência uma problemática
interessante: a de que a arte autônoma, mesmo
rechaçando o mercado, necessitava criar os seus mecanismos
institucionais para que a sua crítica pudesse existir e se efetivar.
Para que houvesse a arte desinteressada acompanhada da fruição
assim também definida, era preciso que houvesse lugares que
tornassem possível essa relação. Ou seja, voltando a Bourdieu: a
arte autônoma necessitava criar o seu campo próprio de ação.
Este rechaço ao mercado da arte
será uma questão mobilizadora e permanecerá presente tanto em
vários movimentos de vanguarda, como em reflexões filosóficas
sobre o lugar da estética no mundo (e a sua função emancipadora do
homem). Neste momento, os artistas perceberam que a arte estava sendo
posta em função de interesses privados burgueses, tornando-se refém
de um mercantilismo que a destituía de sua potência estética.
Segundo Salcedo:
De acordo com a pesquisa feita
por Hegewisch, os salões, desde suas origens, foram motivos de
discórdias tanto para os artistas quanto para o público. Na
verdade, a organização dessas exposições sempre enfatizou
interesses distitntos daqueles relacionados à própria natureza da
arte. E isso ocorria, primeiro, sob a forma de didatismo público,
cujo caráter populista propagava a simpatia e as benesses do Estado
no século XVIII. Depois, soba a imagem soberba do mecenato burguês,
cujo caráter de ostentação propagava as benesses do que era
industrialmente progressista no século XIX. (2008:26)
Ou seja, com o surgimento dos salões,
em meados do século XVIII, organizados de maneira independente do
gosto monárquico, promovia-se, por um lado, a autonomia do sujeito
artista e, por outro, a formação de um público e de uma crítica
que tornaram-se um novo corpo regulador do gosto. Todo esse
movimento, por sua vez, passou a atrair outros interesses elitistas.
Desse modo, diz Salcedo, durante cerca de um século esses salões
alçaram o patamar de espetáculo e de grandes eventos, o que dava
visibilidade à produção artística crescente, mas também era um
importante atrativo de lucros e investimentos que, logicamente,
passaram a cobrar um retorno. E este era, geralmente, em forma de
atração de grandes compradores, o que acabava por tornar os
artistas peças de uma engrenagem econômica.
Esse processo vai gerar
insatisfações do lado dos artistas e também do público, nem todo
ele afeito ao jogo realizado nos salões. É aí que o que Bourdieu
chama de teoria da arte pura começa a ganhar corpo e a se
materializar em disputas que contribuirão para a formação do campo
da arte moderna. Analisando o campo da literatura, Bourdieu foca nas
disputas ocorridas entre os defensores da arte engajada, com discurso
político forte e relacionado às classes proletárias (a quem se
deveria emancipar através da arte, mas de forma didática); os
promotores da arte burguesa e pequeno-burguesa, com caráter
evidentemente mercadológico e espetacular em que o entretenimento e
a comercialização eram o objetivo principal; e, finalmente, os
defensores da ideia de arte pela arte que rechaçavam a submissão da
criação artística tanto a uma função didática (e populista),
quanto a uma condição de produto mercadológico ou de
entretenimento.
Se na literatura, os artistas
começam a produzir obras em que o texto e sua composição começam
a ser levados em conta, mais que os temas a serem abordados, levando
a uma exploração da linguagem literária, o mesmo processo ocorre
nas artes visuais. A emergência de uma crítica de arte que reúne a
reflexão sobre o caráter próprio do artístico, tanto em relação
à produção literária quanto à reflexão da produção pictórica,
começa a forjar um campo de agentes para essas novas práticas. O
poeta e escritor Charles Baudelaire é um dos mais conhecidos
precursores de um pensamento crítico que ia além do comentário ou
do julgamento de gosto que eram mais comuns naquele momento.
Pensar a crítica como uma produção
que deve refletir a obra de arte, não focado em julgamentos de gosto
superficiais, mas em análises estéticas próprias àquela arte, são
um dos indícios fortes da emergência de um campo da arte autônoma.
Por isso e pelas características apontadas sobre sua produção
poética, permeada pelo conflito em relação à modernidade, indo
além do romantismo e voltando-se para análise do aqui e agora,
Baudelaire é considerado um dos “pais” do modernismo artístico.
Esse pequeno desvio no argumento,
ao dar enfoque a Baudelaire, faz sentido para pensar que foi através
de uma série de agentes e lutas que foi emergindo o campo da arte
autônoma na França, que posteriormente se nomeará e classificará
como arte moderna. Os movimentos artísticos contestadores do status
quo artístico do momento, a exemplo
do impressionismo (considerado um dos primeiros a romper com as
convenções tanto pictóricas, quanto expositivas e de fruição),
começam a criar para si espaços e redes onde circulavam. Segundo
ainda Sônia Salcedo:
“Como
decorrência desses fatos, tanto o artista quanto o público
tornavam-se peças indefesas e manipuláveis para o jogo de
interesses do mercado que, ali criado, tinha por objetivo usá-los
para atrair grandes compradores. Em resposta a isso, os artistas
mobilizaram-se em busca de um público verdadeiramente interessado na
arte. Assim, eles próprios promoveram suas exposições individuais
e independentes, não só anexas àqueles salões - a exemplo de
Courbet e Manet que construíram seus próprios pavilhões -, como
também em diversos espaços privados, escapando, desse modo, tanto
da degradação artística promovida pelo caráter especulativo
daqueles salões quanto da desvalorização de suas obras em razão
do excessivo número de trabalhos expostos naquelas apresentações”.
(2008:27)
Esses novos espaços criados pelos artistas, os quais geralmente eram
os seus próprios atelieres, irão influenciar sobremaneira nas
futuras configurações das instituições artísticas. A noção de
autonomia, de protagonismo da obra e de sua materialidade, de sua
desvinculação da relação financeira (e também social e
política), todas essas reivindicações serão reverberadas nas
instituições de arte moderna e em suas configurações.
1REBOLLO,
Lisbeth (2004). Entre cenografias
2HUYSSEN,
Andreas (1997). Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro,
Editora UFRJ.