quarta-feira, 29 de abril de 2015

MOMA: nascimento e constituição do Museu de Arte Moderna no século XX


Texto inédito 

Se os artistas iniciaram, no século XIX, um movimento de criar seus próprios espaços de difusão e produção, como passa a se configurar então o campo da arte moderna? Quais serão seus marcos difusores e legitimadores de discursos no interior do campo? Ou seja, quem eram os agentes e quais instituições foram criadas para fazer circular, legitimar e reproduzir estes discursos autonomistas na arte? Pensando numa possível resposta a essas questões, um caso exemplar vêm à mente: o Museu de Arte Moderna de Nova York. Esta instituição é considerada paradigmática de um modelo de instituição voltado para a arte moderna, funcionando como difusora de padrões e discursos legitimadores sobre esse modo de produção artística.

Segundo o autor Christoph Grunneberg, em seu ensaio The Modern Art Museum (1999), O Museu de Arte Moderna de Nova York foi o primeiro museu devotado exclusivamente à arte moderna, e sua coleção é considerada a mais abrangente do mundo. Para Grunneberg, desde 1929, “o MOMA tem desempenhado um papel crucial na definição do cânone modernista e na formação da maneira como a arte moderna é vista e entendida” (GRUNNEBERG, 1999:32). Deste modo, o famoso MOMA, tido como um dos marcos institucionais da produção moderna no início do século XX, rapidamente define-se como centro de difusão artística e ideológica, tornando-se uma referência mundial na exibição da arte moderna. Será esta instituição uma das grandes responsáveis pela difusão e constituição de uma tipologia museográfica para as exposições de arte moderna, conhecida pelo nome de Cubo Branco. Este modelo convencionou uma cenografia expográfica neutra, feita de paredes brancas, chão de madeira ou com tapetes cinzas, pinturas penduradas com grande espaçamento entre uma e outra e em formato linear e esculturas expostas sempre ao centro das salas, com grande espaço em volta para a sua contemplação ideal. A partir daí, este paradigma irá impor-se como o ideal para a exposição de arte moderna por todo o mundo.

Logo no início de sua criação, o MOMA ainda possuía uma estrutura conservadora, no sentido de ainda não pensar em espaços específicos para a produção moderna, já em plena constituição no período. A primeira mostra, em 1929, foi sobre Cezánne e Gauguin. A exposição “Armory Show”, realizada em seguida, foi considerada a primeira grande mostra internacional do MOMA, com características comerciais e de feira de arte bastante marcantes.

Em 1939, o museu inaugura sua nova sede e, aí, começa a estruturar-se como um museu de arte moderna de fato. Segundo Grunnenberg, a identidade pública do MOMA passará a estar conectada ao seu novo edifício, localizado na rua West 53, em Manhattan. A partir tanto do formato das mostras, como das políticas de acervo e ideias empresariais que o permearam, através das quais a instituição passa a ser colocada como competitiva no mercado (já que também é um lugar de negociação de obras), o MOMA adquire características e feições bem diferentes do seu início: ambiente mais austero, galerias com recursos mínimos e tendência à neutralidade, sem escadaria cerimonial, mas acesso ao nível da rua; sem colunas grandiosas, mas com uma fachada limpa, plana, voltada para a cidade. Neste momento (quando ainda era circundado por casas do século XIX), o prédio do MOMA funcionava como uma efetiva manifestação dos princípios modernos e da perspectiva internacionalista que esta instituição (e seus criadores) desejavam difundir.

Apesar do papel fundamental do MOMA no estabelecimento e difusão do paradigma do Cubo Branco, o surgimento desse padrão, segundo ainda Grunnenberg, não é totalmente creditado a esta instituição, mas depende de uma variedade de fontes externas. Já era possível encontrar manifestações anteriores do modelo modernista de exposição em museus europeus e em mostras realizadas após a primeira guerra mundial, especialmente na Alemanha. E Alfred Barr Jr. (primeiro diretor) viajou muito pela Europa nesse período. Desse modo, o museu, através de seu diretor, adaptou e refinou essas novas técnicas de disposição, optando pelo que agora é reconhecido como um modo modernista de exibir, às expensas de outros modelos de apresentação, os quais, atualmente, estão majoritariamente esquecidos. (1999: 30)

Como exemplo de modelos que foram possíveis precursores do formato Cubo Branco, Grunneberg destaca as exposições Expressionistas realizadas pelo museu Folkwang, em Essen, Alemanha. Para o autor, esta instituição continha um extraordinário ambiente expressionista que refletia as intenções e influências dos artistas. Aqui ainda não existia o ideal de pureza e neutralidade do Cubo Branco e as pinturas e esculturas expressionistas (incluindo trabalhos site-specific criados especialmente para o museu) eram combinados com mobiliário medieval e "arte primitiva". “Como no "display" modernista, as galerias lembravam o estúdio do artista mas, nesse caso, o fazia evocando o caos eclético e o turbilhão emocional do Expressionismo. Junto com as então comuns paredes brancas, os formatos das galerias expunham tijolos e paredes coloridas. Apesar de ficar bastante impressionado pelo formato do Folkwang Museum, Barr foi extremamente seletivo em sua adaptação dos elementos deste” (1999:30).

Ainda sobre Alfred Barr Jr., vale destacar seu importante papel para a definição do MOMA como espaço difusor, não só de produção artística, mas de um discurso ideológico e doutrinador sobre modernismo. Após este período de viagens pela Europa, especialmente Alemanha, como dito por Grunnenberg, Barr será bastante influenciado por ideias em voga no momento, especialmente pelo projeto utópico-educacional moderno da Escola Bauhaus. Filtrando estas influências com as lentes dos interesses específicos da instituição, ele irá formular um formato ideal de exposição da arte moderna onde esta fosse vista em toda sua inteireza e pureza, desvinculada de qualquer referência exterior e distanciada de qualquer adereço ou adorno desnecessário à sua contemplação.

Para Grunnenberg, a adoção do modelo do Cubo Branco pelo MOMA pode ser conectado com a concepção de Barr da arte como um desenvolvimento inevitável em direção à abstração (concepção parecida a de Clemente Greenberg e que se tornará um grande discurso sobre o modernismo, até ser posteriormente contestado). Segundo o autor, no museu moderno, arte abstrata e Cubo Branco entraram em uma relação simbiótica. Em sua aparente exclusão de toda referência do mundo além do domínio da pura forma, eles reforçam a descontextualização tradicionalmente efetuada pelo museu. Sendo assim, Grunnenberg acredita que o modelo do Cubo Branco deve o seu sucesso a esta estratégia de obliteração e auto-negação simultânea: destacando a inerente (isto é, formal) qualidade do trabalho de arte através da neutralização de seu contexto e conteúdo enquanto, ao mesmo tempo, permanece ele mesmo virtualmente invisível e, assim, obscurece o processo de obliteração (1999:31).
Vale destacar, ainda sobre a doutrina do Cubo Branco, sua inevitável relação com a ideologia da arte autônoma. A definição de uma teoria da estética pura, segundo Bourdieu, oblitera sua relação histórica, política, econômica e social. Desse modo, a afirmação de Grunnenberg de que o MOMA fez todos os esforços para remover a arte de qualquer associação com a esfera financeira, ao mesmo tempo que promovia um ambiente de negócios para as obras de arte, revela a operação da doutrina da estética pura transformando-se em ideologia. Segundo o autor:
As galerias foram destinadas a promover um ambiente neutro para a contemplação da arte - sem qualquer distração de decoração, obras vizinhas, ou, de fato, qualquer influência externa. (...) O efeito destes formatos era fazer os objetos parecerem ainda mais desejáveis, efetivamente identificando o visitante de museu com um consumidor - em vez de um simples apreciador de arte desinteressado (...). Acima de tudo, este isolamento do espaço da galeria do mundo exterior do museu funcionou (e continua a fazê-lo até hoje) para reforçar a noção de que a arte não tem nada a ver com o dinheiro ou com a política, mas pertence ao reino universal e intemporal do espírito. As galerias do MOMA são espaços para contemplação, produzindo uma atmosfera de reverência reminiscente da igreja, livre da desordem da ordinária vida cotidiana. (1999:34)


Até aqui parece que já ficou claro o impacto do paradigma do Cubo Branco na formação da instituição de arte moderna e de seus formatos de exibição, além da criação de um modelo de ideal de museu de arte moderna, promovidos pelo MOMA. Mas de onde vinha tamanho poder referencial deste museu? Talvez isso possa se explica por algumas questões. O exílio de vários artistas europeus para Nova York contribui para que este se torne um espaço privilegiado de exposição e produção artística, enquanto a Europa padece das crises sucessivas do pós- primeira guerra, dos regimes nazistas e fascistas e da Segunda Guerra Mundial; a capacidade de Barr, junto com Greenberg, em criar um discurso lógico, linear e progressivo sobre a arte moderna, o qual, por muito tempo, será considerado a narrativa por excelência desta (segundo esta visão, o modernismo se iniciaria com o impressionismo na França e culminaria no expressionismo abstrato americano); a invenção do paradigma do Cubo Branco que influenciará, de maneira profunda, a constituição dos museus de arte moderna ao redor do mundo, difundindo a ideia de neutralidade e distanciamento associadas à fruição da obra de arte moderna; a criação de departamentos específicos como setor educativo, de itinerâncias, biblioteca e, com o tempo, a divisão da curadoria para as áreas de arquitetura, fotografia, além de artes visuais, até então inédito nas instituições museais; o fato de se constituir, também, como espaço para a negociação da arte, tornando o museu um lugar de legitimação da produção artística, não só institucional, mas mercadológica também.

Esse lugar hegemônico conquistado pelo MOMA por quase 30 anos, aos poucos será questionado e combatido. Já a partir dos anos 1950, as críticas começaram a surgir e se amplificar. Mas durante o período dos anos 1960, elas se tornarão ainda mais contundentes. Não só as doutrinas sobre o modernismo aí difundidas (e reforçadas por outros críticos) serão postas em xeque, a partir do questionamento do que esse discurso intencionalmente deixa de fora na produção artística do período, como também (e principalmente) será bastante atacado o paradigma do Cubo Branco. Este espaço neutro, puro, quase sagrado, começará a ser visto como lugar que impõe maneiras de ver, que descontextualiza a obra de um entorno no qual poderia ser potente. Para os críticos, essa ideologia museal trabalha pela construção de um espectador ideal, este geralmente adulto, branco, classe média e homem, além de tratá-lo como consumidor. O museu passará a ser relacionado com o modernismo mercantilista, com o imperialismo americano e com a ortodoxia de um discurso sobre a arte moderna bastante fechado e doutrinário.

E neste momento em que pululavam as críticas contra o MOMA, outra questão ressaltada era a de sua origem social e política. Como afirma Grunneberg, o MOMA foi fundado por benfeitores privados milionários e seus administradores continuaram a ser recrutados da elite social deste país. Estes atores acabavam por determinar a direção geral do museu e, através da nomeação dos membros importantes da equipe, exerciam influência em suas políticas de exibição. Eles também moldaram decisivamente a composição da coleção com doações de obras de arte. Segundo ainda o autor:
Acusações de influência indevida remontam aos anos inciais do MOMA, quando o museu era quase inteiramente financiado por estes administradores. O apoio dos Rockeffelers (entre outras famílias ricas e poderosas) e a escolha da arte moderna como objeto particular de sua filantropia são significantes. A introdução da arte moderna nos Estados Unidos, tem sido argumentado, aconteceu desde o topo e estava intrinsecamente conectado a questões de classe, gosto, economia e política. A arte moderna foi elevada à esfera da alta cultura, funcionando como indicador de distinção social. No processo, sua agenda política e social original ficou obscurecida. Não apenas o MOMA, em si mesmo, foi dirigido com toda a eficiência de um negócio competitivo na economia capitalista, mas as atividades políticas de seus administradores, às vezes, tiveram um impacto direto no museu. (1999:32)


Nesse sentido, é importante ressaltar outro papel importante cumprido pelo MOMA nesse período, especialmente no momento da guerra fria: o de difusor ideológico da propaganda americana para países “amigos”. O expressionismo abstrato foi amplamente difundido para os países latino-americanos, e também por outras partes do mundo, como o sinônimo da liberdade social dos Estados Unidos. A ideia era tratar de abafar produções como o muralismo mexicano, identificada com o socialismo e a questão do trabalhador. Segundo o historiador Dalton Sala (2002), durante as décadas de 1940 e 1950, “iniciavam-se os tempos de guerra fria e a divulgação internacional do expressionismo abstrato como forma ideológica da cultura americana, promovido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York , com orientação e financiamento vindos diretamente do departamento de Estado” (SALA, 2001/2002:124).

O próprio Alfred Barr Jr. realizou a função de embaixador cultural dos Estados Unidos, especialmente aqui na América Latina, realizando exposições no Brasil nos anos 1940. Geralmente mascaradas sob a forma de “apoios” culturais, incentivo à produção artística latino-americana, o MOMA, cujo principal financiador no período, Nelson Rockefeller (diretor do Inter-American Affaris Office, ligado ao departamento de Estado), realizou uma forte campanha, principalmente nos anos 1950, de inserção cultural em países como o Brasil, por exemplo. Incentivava artistas a realizar bolsas e residências nos Estados Unidos, trazia exposições artísticas e intelectuais americanos para realizar diálogos locais e, posteriormente, ajudou na criação de instituições nacionais como o Museu de Arte Moderna (SP) e eventos como a Bienal de São Paulo (questão que veremos com mais detalhes adiante).


A partir deste breve desenho, aqui esboçado, sobre a formação do campo da arte moderna e os discursos e instituições que emergem para estas práticas artísticas, é possível passar adiante neste percurso e voltar o olhar mais detidamente para o jogo realizado no interior deste campo entre as vanguardas artísticas e o discurso conhecido como esteticismo. A partir de agora nos faremos as seguintes questões: O que diferencia o impressionismo, o cubismo ou expressionismo abstrato, por exemplo, de outros movimentos, também entendidos como vanguardistas, a exemplo do surrealismo, do dadaísmo, do construtivismo russo? Qual a implicação de considerar umas vanguardas como sendo o discurso legítimo do modernismo e determinando as práticas em seu interior e outras não? Ou seja, a questão colocada por Rancière sobre o processo de ambiguidade entre esteticismo e modernitarismo no seio do Regime Estético aparece aqui de maneira importante para entender como os distintos discursos, inseridos dentro da própria teoria da arte autônoma, como diz Bourdieu, ou seja, dentro do próprio modernismo, implicará em distintas configurações do seu campo e também em um conflito de práticas artísticas que levará o mesmo a expandir-se constantemente, através da crítica à sua própria configuração.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Crítica Institucional à Brasileira – o caso Fiat Lux


Trecho de trabalho originalmente publicado na Revista Caiana, número 5.
Em: http://caiana.caia.org.ar/template/caiana.php?pag=articles/article_1.php&obj=158&vol=5

O trabalho O Sermão da Montanha: Fiat Lux6, de Cildo Meireles, como muitos dos trabalhos desse artista, já foi bastante analisado e estudado pela historiografia da arte no Brasil. Ele se configura como uma das ações desse artista que promoveram grande impacto no campo da arte brasileiro do período, tornando-se uma importante referência para a compreensão de práticas artísticas críticas em um momento político e cultural conflituoso no país. Diante das várias perguntas já feitas a esse trabalho de Meireles, acredito que ainda se possa fazer mais uma: como essa obra pode revelar uma prática de Crítica Institucional em um contexto cultural, artístico e político latino-americano e brasileiro?

Fiat Lux é uma obra que, para se realizar, necessitava do espaço da instituição onde está inserido. Realizado pela primeira vez em 25 de abril de 1979, no Centro Cultural Cândido Mendes, Rio de Janeiro, a obra consistia de um cubo formado por 126 mil caixas de fósforos empilhadas, cercada por oito espelhos em cuja superfície se podiam ler oito passagens do sermão da montanha (Mateus 5, 3-10), tudo isso sobre uma espécie de “tapete” de lixa negra. Participavam, ainda, cinco atores os quais atuavam como seguranças que circulavam o tempo todo ao redor da obra, cujos passos sobre a lixa soavam como fósforos sendo riscados (o som dos pés na lixa foi gravado e amplificado). A exposição durava somente 24h.

O projeto original de Fiat Lux data de 1973, mas o trabalho só foi realizado seis anos depois. Três tentativas anteriores de montagem dessa obra foram malogradas. A primeira foi em São Paulo, em 1973, em uma galeria privada, mas foi cancelada três semanas antes da inauguração de maneira inesperada. O caso se repetiu no Rio, em 1975, quando outra galeria privada também cancelou a exposição. Em 1978, a mostra foi novamente cancelada, desta vez por conta de um incêndio no MAM do Rio, onde seria realizada.

As tentativas malsucedidas de expor Fiat Lux já revelam um pouco do impacto institucional que este trabalho provocou. Num momento de ditadura, em que as censuras e os boicotes aconteciam a todo momento, tornava-se temerário para as galerias privadas apoiar determinados tipos de ações artísticas. Arriscar-se a serem fechadas ou proibidas de trabalhar era algo que algumas não aceitavam muito facilmente. E o medo se justificava pelo que acontecia às instituições que assumiam o risco de realizar exposições com a produção crítica da época: eventos eram cancelados (a exemplo da Bienal da Bahia, fechada em 1968) e mostras eram boicotadas (como a exposição da pré-Bienal de Jovens de Paris, com a representação brasileira que foi impedida de participar do evento, em 1969).

Levando em consideração esse contexto institucional-político do Brasil da época, é possível dizer que a obra Fiat Lux é uma prática de Crítica Institucional. E o fator principal para esta afirmação está na necessidade do espaço da galeria que o trabalho exige para acontecer. Quando o artista afirma que somente no interior de uma galeria é possível a realização e compreensão de Fiat Lux, vem à tona também sua pretensão de jogar com os sentidos desse lugar, revelando e pondo em questão compreensões sobre este espaço. A galeria não é um lugar neutro, mas sim um lugar de concentração de tensões que, a qualquer momento, podem explodir, assim como o cubo de caixas de fósforo no centro do espaço expositivo que funciona quase como um reflexo do mesmo. Ou seja, para Cildo Meireles, a galeria não está distante do mundo, não compõe um lugar sacro e, por isso mesmo, deve ser contaminada por toda a sorte de tensões políticas que se desenrolam do seu lado de fora. Quando Meireles leva o explosivo pra dentro da galeria, parece revelar o que tem de explosivo dentro dela mesma também.

Ao se tentar comparar esse trabalho com outros realizados por artistas europeus e estadunidenses no mesmo período, é possível estabelecer semelhanças com essas práticas. Mas também existem diferenças importantes de contexto (que geraram distintos modus operandi) que é preciso serem analisadas.

No caso de Momma Poll, trabalho de Haacke aqui brevemente analisado, poderíamos começar observando as semelhanças com Fiat Lux. Pra começar, o trabalho de Haacke tem uma relação direta e necessária com a instituição para se realizar. Assim como em Fiat Lux, antes de querer distanciar-se para criticar, negar para afirmar outra forma de prática artística crítica possível, o trabalho se insere na instituição, a escava desde dentro. Estabelece uma espécie de relação de necessidade com esta para poder existir e operar o seu questionamento.

Porém, a relação de Momma Poll com a instituição onde está inserida é muito mais simbiótica. Este trabalho existe para esta e nesta instituição. Já o de Cildo Meireles é uma obra que pode ser replicada em outras instituições, pois não lida com questões institucionais tão específicas. Em Fiat Lux, não se trata de uma crítica à galeria y ou z que o expõe. Se trata mais de entender o espaço expositivo, tomá-lo como componente do trabalho e da crítica, inseri-lo em um contexto político, mais do que desnudá-lo.

Observando essa diferença inicial entre Haacke e Meireles, já podemos depreender algumas distinções gerais entre práticas institucionais no Brasil e nos Estados Unidos durante o período dos anos 1970. A primeira delas pode se situar no próprio desenho institucional no campo da arte brasileiro da época. Enquanto na Europa, os museus modernos emergem já no século XIX, acompanhando toda uma série de mudanças epistemológicas que atingiram desde a ciência, passando pela religião e chegando às artes; os Estados Unidos começaram mais tardiamente, no início do século XX a compor as suas instituições, especialmente as de arte moderna. Porém, este país se afirmou como potência econômica muito cedo neste século e suas instituições artísticas foram fortalecidas e estruturadas como suporte para uma expansão imperialista pelo mundo. E é no bojo dessa expansão que algumas das instituições de arte moderna surgem no Brasil.

Sendo assim, com instituições jovens (algumas com apenas 20 anos no período dos anos 1970), algumas galerias, o circuito institucional do Brasil, especialmente os de arte moderna, ocorriam basicamente através dos eventos: os salões de arte, as bienais e as exposições (algumas delas promovidas pelos próprios artistas), principalmente. Estes eram os grandes validadores e legitimadores da produção artística. Nos anos 1970, há uma certa ampliação de espaços expositivos, instituições e mostras são produzidas com frequência nesse período. Porém, diferente do contexto institucional estadunidense e europeu, fortemente constituído e instituído a ponto de funcionar como instância reguladora, nomeadora, legitimadora e reprodutora de discursos artísticos, a malha institucional brasileira, por sua precariedade, estava por fazer-se. A luta era por constituição, por formação e fortalecimento dessas poucas instituições. Desse modo, a relação que se estabelece entre os artistas e essas instituições se dá em níveis distintos. As vezes, o ataque mira o sistema político mais amplo, tendo a instituição como vitrine. Outras vezes, se questionam os sistemas de seleção e legitimação dos eventos (salões, bienais, etc) e o ataque acontece mais diretamente, voltado para as práticas institucionais definidoras desses esquemas.

Porém, no caso de Fiat Lux, não dá tampouco pra dizer que o artista, simplesmente, usou a galeria como vitrine para uma ação crítica. A operação é muito mais complexa que isso. Mesmo sem fazer um ataque à galeria diretamente, o trabalho estabelece uma relação complexa com o espaço expositivo e o contexto político que traz à tona a partir dos elementos que põe em jogo no trabalho.
Questões de composição são pensadas e calculadas pelo artista que, além do fator performático, também leva em consideração a dimensão da construção estética do objeto (mesmo que seja efêmero). As 126 mil caixas de fósforos não estão dispostas de forma aleatória. Elas estão reunidas de maneira a formar um cubo, o qual foi colocado intencionalmente na parte central do espaço expositivo. Como uma ironia ao projeto construtivo brasileiro, Meireles pensa geometricamente seu objeto, o dispõe de maneira exata no centro da galeria, mas tudo está composto por fósforos, material ordinário e precário. Além do mais, a “escultura” é um material explosivo extremamente potente. Junto com todos os outros elementos do trabalho, esta composição se torna objeto de contemplação e medo, de interesse e repulsa por parte do público.

Segundo Meireles, sua ideia era fazer um cubo dentro do cubo (o “cubo branco”, o local da exposição) e essa repetição daria uma impressão de espelhamento de um pelo outro. Além do mais, um cubo inserido em outro parece passar, também, uma sensação de aprisionamento, sufocamento com potencial de explosão. Como afirma Meireles em depoimento ao crítico Felipe Scovino7 (2009): “para explodir, você, primeiro, tem que compactar, condensar, reprimir. Enfim, você tem que pressionar. Mas a ideia é toda esta: de condensar e levar o exterior para o centro”.

Segundo ainda Scovino, Meireles calculou exatamente a quantidade de fósforo utilizada na composição do cubo e reuniu um número de caixas de fósforos suficiente para explodir a galeria, caso fossem acesos. A iminência dessa explosão é ressaltada pelo artista através dos outros elementos que compõem a mostra: os cinco atores vestidos de segurança que circulam em volta do cubo, caminhando por sobre o tapete de lixa que faz soar cada passo dado sobre si como um fósforo sendo riscado. A amplificação desse som aumenta a angústia e a tensão provocadas pelos atores. Estão acedendo o fósforo? Não estão? Eles estão fazendo a segurança, mas ao mesmo tempo estão provocando o risco de explodir tudo?

Essa composição põe em questão todo um jogo de tensões e medo dentro do espaço da galeria que está para além dela. O cubo de fósforos é uma alegoria do capital (a ideia de acúmulo pelo acúmulo que pode levar à destruição) e é também uma alegoria política bastante forte (a repressão, condensada, que leva à explosão). E todo o trabalho, essa composição objetual e performática, se torna uma metáfora do contexto de medo e insegurança que passa a adentrar o espaço distanciado e neutro da galeria. Os atores que fazem a “segurança” do cubo de fósforos, parecem policiais à paisana e tanto sua postura, olhar, vestimentas, movimentos, parecem provocar ainda mais a sensação de medo. Num período de ditadura, a polícia assusta, provoca pânico, representa o braço armado e cruel do estado repressor que entrou em voga. Porém, esses medos e angústias, quando em grande número e pressionados por uma força grande, tendem à explosão. É preciso reprimir para explodir, disse Meireles. A repressão estava grande. Esperava-se agora pela explosão. 

Este trabalho de Meireles também coloca em questão os limites entre legalidade e ilegalidade. Uma caixa de fósforo é um objeto que possui pólvora, elemento explosivo que possui a potência do perigo e da explosão, mas que em uma quantidade reduzida é permitida e utilizada por todos. Colocadas em grande número reunido, possui um potencial de explosão que pode levar à morte, mas quem legisla sobre a quantidade de caixas de fósforos que alguém pode adquirir? Se a um cidadão comum não é permitido o acesso a artefatos explosivos, a bombas, nem a armas de fogo, quem o impede de comprar fósforos? Que lei proibia o artista de reunir em uma galeria 126 mil caixas de fósforos e pôr em risco a vida das pessoas que fossem ver a mostra? Se está vedado ao cidadão o acesso ao armamento, a produção de uma arma através do acúmulo de elementos ordinários é um ato ilegal ou legal? Segundo Scovino, “o objetivo do artista não é criar um impacto visual pela quantidade, mas usar este fator quantitativo para alterar funções, criar novas metáforas, reverter significados: porque sozinha a caixa de fósforos é um objeto banal e corriqueiro, de tal maneira integrado ao nosso cotidiano” (2009:14).

Essa ironia colocada em movimento provoca um outro ruído institucional – na instituição jurídica, no conjunto das práticas e discursos que definem o legal e o ilegal no interior do social. Ao transformar algo legal em potencialmente criminoso, Meireles ironiza a arbitrariedade dos sistemas de definição do que é ou não é criminoso. Nesse sentido, esse trabalho realiza uma prática de Crítica Institucional, considerando as dimensões políticas e ideológicas gerais que compõe tanto as instituições sociais quanto as artísticas também, a qual, a partir dos anos 1980, passa a ser realizada pela já mencionada segunda geração. Ampliando a noção de instituição, as ações dos artistas desse período, como já dito, miram não apenas os museus, mas os conjuntos discursivos e de práticas sociais que incidem sobre o social e sobre a arte também. E como já mencionado antes também, quando nos Estados Unidos e Europa essas questões vão ser mais evidenciadas posteriormente, nos anos 1970 as práticas latino-americanas já as colocavam em questão, visto o contexto repressivo político em que estavam mergulhadas.

Ao afirmar isso, não quero dizer que, necessariamente, houve uma vanguarda brasileira (e latino-americana) em relação às questões críticas ou ao entendimento de instituição como os conjuntos de práticas e discursos que conformam, definem e estruturam a vida social geral. Já nos anos 1970, artistas como Hans Haacke se aproximam do pensamento sociológico, especialmente do autor Pierre Bourdieu para refletir sobre o que é instituição e questioná-la. Mas enquanto no período dos anos 1970, a preocupação dos artistas que iniciam a pesquisa institucional em suas práticas se dá em uma dimensão de desvelamento da instituição-arte, de abertura de suas entranhas e estruturas discursivas, da revelação de sua relação com outras instituições sociais, nas práticas latino-americanas, o engajamento das instituições-arte no questionamento das instituições políticas e econômicas que provocavam a repressão, o medo, a desigualdade e a morte tomavam a dianteira em algumas ações de questionamento institucionais.

O fato de Fiat Lux ter duração de apenas um dia também é importante para analisar o contexto da prática de Crítica Institucional engendrada por esse trabalho. Pensando em outros trabalhos realizados nessa época, a questão da efemeridade e precariedade era evocada como dispositivo crítico das instituições e de sua dimensão de reificação do objeto artístico.

Um trabalho exemplar desse tipo de prática a que me refiro é o realizado em 1973, pelo artista Antonio Manuel. Ele propôs a mostra De 0 a 24 horas, uma exposição que se realizou no suplemento cultural de domingo de O Jornal (periódico carioca da época). Inicialmente pensada para ser realizada no MAM do Rio, a mostra foi cancelada e o artista resolveu, então, fazê-la no jornal, veículo de massa e de grande circulação, no qual, imaginou, ampliaria o alcance e o caráter provisório da mostra. O caráter de crítica à instituição aqui ressaltado fica evidente no texto de abertura do suplemento, citado no trabalho de Artur Freitas (2007), o qual dizia:
Está esgotado o ciclo das artes plásticas em galerias, em museus; se a arte, essencialmente, deve estar voltada para o público, para a massa, só terá sentido se feita através de um veículo de massa, de comunicação de massa. A partir dessa premissa, resolveu ele [Antonio Manuel] cancelar a exposição que deveria ter sido aberta anteontem no Museu de Arte Moderna do Rio, para que um jornal - O JORNAL, no caso - fosse a exposição. Um jornal-exposição. Uma exposição que só dura 24 horas, o tempo que dura um jornal nas bancas. É essa a proposta de Antonio Manuel. Que O JORNAL transmita ao público. Para que ele decida. (FREITAS, 2007:162)

Afirmar a precariedade, como ressaltado na frase “uma exposição que só dura 24h, o tempo que dura um jornal nas bancas”, parece algo fundamental ao dispositivo crítico-poético dessa obra. A evidente crítica à instituição como local inadequado à existência, à vivência e à experiência com a arte é ressaltado, dando lugar a um outro dispositivo para realizar a exposição em que o contato desta com o público ocorresse de maneira mais direta e ampla. O museu não é lugar da massa, parece distanciado desta. O jornal, assim, poderia fazer a mediação que a instituição não consegue, ao mesmo tempo que teria a efemeridade inerente a ele (que é descartado após ser lido). O museu reificador, distanciado e estático é negado aqui em prol de um lugar mais dinâmico, amplo e efêmero para a exposição.

A questão da efemeridade está presente em Fiat Lux também, porém, diferente de 0 a 24h, não busca outro meio para realizar a exposição como forma de operar a crítica. Se no caso de Manuel, a censura à mostra no MAM (o seu cancelamento), o levou a realizá-la por outros canais, Meireles insistiu na procura por uma instituição para realizar Fiat Lux. Não teria sentido para este trabalho se realizar em outro lugar. Porque é dentro do espaço expositivo que Meireles quer operar a sua crítica. O espaço institucional é como mais um elemento, e um dos mais importantes, para a compreensão desse trabalho. E o fato de o trabalho durar apenas um dia é outro fator importante no jogo posto em movimento por ele: não se trata de uma exposição artística qualquer, não se trata da mera apresentação de um trabalho artístico, ele é uma ação. E por ser assim, não quer estar preso ao tempo da instituição, não quer se congelar nele. O seu efeito é de impacto e precisa do tempo para funcionar. O tempo curto, efêmero e passageiro da performance.

Os trabalhos de um grupo de artistas brasileiras do período do fim dos anos 1960 e década de 1970 foram denominadas pelo crítico Fernando Morais como arte de guerrilha. Muitas ações e trabalhos desse período primavam pelo acentuado tom político, pela inserção nos sistemas de circulação de informações, pela precariedade e efemeridade. A ação de guerrilha é rápida. Tem que possuir uma intensidade de provocação de ruído forte, pois ela tende a desaparecer sem deixar rastro. Assim são classificados trabalhos como Trouxas, de Artur Barrio (trouxas de carne que eram espalhadas por locais como beiras de rio em Belo Horizonte) ou Inserção em Circuitos Ideológicos – Projeto Cédula, de Cildo Meireles (notas de cruzeiro carimbadas com a pergunta Quem Matou Herzog?). Na arte de guerrilha, a ação é o forte, o jogo sígnico posto em movimento entra em ação no conflito com o sistema oficial de reprodução de informações, mas precisa fazê-lo de modo sorrateiro para não ser eliminado.

No trabalho Fiat Lux, pode ser possível encontrar elementos dessa ação de guerrilha segundo a define Moraes. É uma exposição pensada para durar apenas 24h. É uma ação, mais do que a produção de uma escultura permanente, mesmo que elementos escultóricos – especialmente construtivos – sejam explorados no trabalho. É um jogo sígnico de contra-informação, visto os elementos políticos que evoca na relação estabelecida entre as partes do trabalho (os seguranças com cara de polícia à paisana, a insegurança que eles promovem ao andar sobre a lixa, a capacidade explosiva do cubo de fósforo, etc). E se pensarmos na instituição como sendo, também ela, um sistema de circulação de informação, este trabalho é uma intervenção nesse sistema, visto que insere nele, como um ruído, uma série de questionamentos sobre violência, legalidade e ilegalidade, repressão e explosão.

Desse modo, podemos afirmar que Fiat Lux opera um ação de Crítica Institucional à brasileira no sentido de que põe em movimento uma série de elementos contextuais e específicos da produção artística do período e estabelece com a instituição relações que são distintas daquelas estabelecidas por artistas como Hans Haacke, por exemplo. O enfoque ideológico, a tentativa de promover o engajamento da instituição em uma crítica política mais ampla, a efemeridade, todos são elementos marcantes deste trabalho que promove uma Crítica Institucional político-ideológica. Contaminação da instituição mais do que desvelamento de suas estruturas; questionamento de seus elementos ideológicos que coaduna com a tentativa de engajar a instituição na crítica política.

6Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1973-1979, superfície de 60 metros quadrados, rodeada por oito espelhos de 1,60m x 1,20m, oito versículos do sermão da montanha (Mateus 5, 3-10), 126 mil caixas de fósforo, lixa negra, cinco atores.

7Felipe Scovino, Negócio Arriscado: dispositivos pra um circuito da ironia. In:Revista Poiésis, n 13, p. 159-172, Ago. de 2009

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Crítica Institucional: um breve preâmbulo


Trecho de texto originalmente publicado na edição número 5 da Revista Caiana. Disponível em:  http://caiana.caia.org.ar/template/caiana.php?pag=articles/article_1.php&obj=158&vol=5

Desde o ato icônico realizado por Duchamp (o de colocar um urinol para participar de um salão) que jogar com as características das instituições, suas limitações e restrições passou a existir enquanto práticas artísticas de questionamento da instituição arte. E durante o período dos anos 1960 e 1970, que pode se considerado de expansão e aprofundamento destas manifestações vanguardistas anteriores, esse tipo de ação  passou a fazer parte, de forma mais sistemática, das poéticas de artistas emergidos nesse período. Essa produção, surgida após a expansão promovida pelo conceitualismo, acabou ficando conhecida – após o crítico Benjamin Buchloh3 assim a nomear - como Crítica Institucional. 

No texto icônico Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions, ao analisar a produção artística realizada entre o período de 1960/1970 nos Estados Unidos, Buchloh avalia que os questionamentos iniciados pelos artistas conceituais, pós-minimalismo e Pop Art, se davam desde uma programática revelação (e questionamento) dos critérios de julgamento e validação do estético, que se torna, aqui, mais uma questão de poder que de gosto. O resultado dessas operações, diz ele, é que a definição da estética se torna, por um lado, matéria de uma convenção linguística e, por outro, função de, tanto um contrato legal, como um discurso institucional (um discurso do poder, mais do que de gosto). Essa erosão trabalha, assim, não somente contra a hegemonia do visual, mas contra a possibilidade de qualquer outro aspecto da experiência estética como autônoma e autossuficiente.

Em outras palavras, Buchloh identifica como artistas, levados pela prática da Arte Conceitual a ultrapassar o objeto artístico em seus questionamentos, chegam a realizar uma prática que é imaterial, discursiva e que começa a se realizar a partir das estruturas linguísticas, discursivas e de sentido que permeiam desde o objeto artístico até a forma de sua exibição. Ao se aterem à desmaterialização do objeto, à sua definição enquanto arte ou não-arte, diz Buchloh, se situam em um nível contratual e administrativo da crítica (Crítica Administrativa), investigando os parâmetros contratuais (no sentido de um contrato social compartilhado) de definição dos objetos de arte. Ao ampliarem o foco dessa investigação para o museu, as galerias, as instituições como o espaço que define e onde acontece o contrato, aí se dá o que ele chama de Crítica Institucional.

É importante ressaltar que, nesse momento, Buchloh não cria um conceito para definir essas práticas. Nesse texto, sem pretender inciar uma espécie de definição teórica de uma prática artística específica, Buchloh estava apenas analisando, retrospectivamente, a produção de Arte Conceitual nos Estados Unidos. Porém, foi esse ato de classificação (em prol do reconto histórico da produção da Arte Conceitual) que posteriormente definiu essa prática e também o que se convencionou chamar de a primeira geração da Crítica Institucional.

Sendo assim, ficou com os artistas Marcel Broodthaers, Hans Haacke, Daniel Buren, Michael Asher o título de primeira geração da Crítica Institucional e situá-los dentro de uma prática definida que, posteriormente, seria retomada por uma segunda geração, a qual promoveria algumas ampliações. Ou seja, se passou a definir e falar sobre a Crítica Institucional, não apenas como uma ação dentre várias do conceitualismo, mas como uma espécie de prática, como se esta tivesse sido mesmo um movimento de arte. E o que facilitou essa compreensão foram as semelhanças encontradas entre esses artistas: a crítica aos discursos subjacentes às instituições como material de criação artística; a revelação das ficções, ou seja, arbitrariedade discursiva, que permeiam as instituições (naturalizadas em forma de cânones) e seus mecanismos econômicos e políticos; e o questionamento das instituições como lugares privilegiados para a compreensão e fruição da arte.

Em outras palavras, nesse período de surgimento, a Crítica Institucional estadunidense e europeia volta-se, principalmente, para os museus e galerias e vislumbra suas estruturas, discursos e práticas como material de produção artística. Ao mesmo tempo que se realizam no interior das instituições, as práticas têm como foco a produção de uma fissura nas estruturas discursivas destas. Objetivam o cânone institucional, os agentes de sua reprodução e os efeitos destes sobre artistas e trabalhos. A crítica política e econômica que acontece se dá desde a própria instituição e incidindo nesta.

Um exemplo deste tipo de ação é o trabalho do artista Hans Haacke, Momma Poll4 (1970). Durante a mostra Information, uma das maiores exposições de Arte Conceitual realizadas nos anos 1970 no MoMa, Haacke colocou duas urnas de acrílico de votação no espaço expositivo convidando o público a opinar sobre a seguinte questão: “O fato do governador Rockefeller não haver denunciado a política do presidente Nixon na Indochina será uma razão para você não votar nele em novembro?”. Havia um local para o sim e outro para o não e o primeiro foi o que acabou mais cheio. 

Haacke só revelou o conteúdo da pergunta no dia da abertura da exposição. O fato de inquirir sobre a participação do governador Rockefeller em eventos relacionados à guerra do Vietnam era especialmente polêmico, visto a recusa da população ao envolvimento do país no conflito. E a polêmica aumentava ao se recordar que a família Rockefeller foi uma das fundadoras do MoMa, tendo o próprio Nelson sido presidente da instituição por anos.
O irmão de Nelson, David Rockefeller, que era o presidente do Moma na época de Information, pediu que a obra de Haacke fosse retirada da mostra. Porém John Hightower, diretor naquele período, não seguiu as ordens da presidência, mantendo Momma Poll na exposição (e acabou demitido depois).

O trabalho de Haacke, então, foi exibido tempo suficiente para provocar desestabilizações institucionais importantes (e também para se tornar uma referência de ações nomeadas como Crítica Institucional). É conhecida a relação do MoMa com os interesses políticos do Estado Estadunidense, atuando como forte via de propaganda ideológica deste, especialmente nos países latino-americanos. Geralmente mascaradas sob a forma de “apoios” culturais, incentivo à produção artística latino-americana, o MoMa, através do seu principal financiador, Rockefeller, realizou uma forte campanha, principalmente no período dos anos 1950, de inserção cultural em países como o Brasil, por exemplo. Incentivava artistas à realizar bolsas e residências nos Estados Unidos, além de financiar a criação de instituições nacionais e eventos como a Bienal de São Paulo. Dessa forma, o impacto da obra de Haacke é tornar evidente e público o envolvimento do MoMa com toda a estrutura política estadunidense, revelando o quão pouco “neutro”, distanciado e imaculado era aquele espaço. As paredes brancas do espaço expositivo diziam muita coisa sobre relações políticas, interesses econômicos e a geopolítica do país. Era preciso fazê-las falar.

Crítica Institucional – a formação do cânone

Se até o momento se disse que Buchloh, por uma necessidade metodológica de situar artistas identificados com a prática da Arte Conceitual em suas diferentes estratégias, cunhou o termo Crítica Institucional, a emergência desse termo como um cânone, ou seja, um conceito definidor de práticas artísticas, se deu nos anos 1980, a partir de artistas identificados com essas práticas realizadas nos anos 1960/1970, como reconhece a própria Andrea Fraser5. Nesse momento de retomada, a questão da definição do que é Crítica Institucional se tornou mais evidente (e, creio eu, também necessária). A necessidade vinha da própria prática que pedia novos questionamentos sobre o que é instituição – algo já iniciado pelos próprios artistas da primeira geração – e sobre a inserção em um outro contexto, agora de abertura para o neoliberalismo, financeirização da arte e processos de estabilização dos novos sujeitos emergidos nas lutas dos anos 1960 na arena política (feministas, movimentos negros e queers).
E foi a partir daí que a reflexão sobre a Crítica Institucional tomou corpo e começou a alargar seu campo para além da instituição como museu, galerias ou colecionadores. Se a primeira geração já se havia dado conta de que os artistas, eles mesmos, são também instituição, participam para sua existência, reprodução ou ruptura, a segunda geração desenvolve de maneira ainda mais ampla essa consciência, tornando o sujeito-artista e sua prática o fundamento da Crítica Institucional. A instituição agora é reconhecida como um conjunto de discursos e práticas que, se por um lado são autônomos (no sentido de que conformam seu próprio mundo), por outro estão em estreita conexão com outras instituições sociais que o modelam e conformam também.

Daí que foi possível para os artistas da segunda geração, como Andrea Fraser, Fred Wilson, Reneé Green - tidos como os mais citados -, iniciarem uma prática de questionamento que incluíam as discussões feministas, o pós-colonialismo, além da própria crítica ao apoio que as artes prestavam à ideologia neoliberal, através dos museus-empresas. Não somente o museu, ou o sistema de arte estão em jogo nas práticas críticas desses artistas, mas posições e definições de sujeitos, uma episteme que subjaz não apenas as relações museológicas que se estabelecem, mas também relações sociais que determinam lugares, seguindo uma hierarquização quase sempre desvantajosa para negros, mulheres, homossexuais. O museu é o lugar de explicitação dessas relações sob determinadas práticas. A visão do outro (especialmente o negro) como exótico ou selvagem, a posição da mulher como objeto passivo da representação (especialmente de seu corpo) e quase nunca como agente no fazer representativo; enfim, o questionamento do outro como objeto, do museu como lugar do espetáculo e ambiente privilegiado da crescente financeirização da arte (e do artista). A revelação e questionamento de uma episteme colonialista e instrumentalizadora são os marcos críticos dessa nova fase da Crítica Institucional (e que continuam até hoje no trabalho de alguns dos artistas citados, especialmente Andrea Fraser).

Porém, a aceitação dos trabalhos dessa nova geração não foi pacífica. Vários críticos veem nesse momento, uma tentativa de ampliação da Crítica Institucional que acabou por reificá-la mais. E uma dificuldade de aceitação que me parece central nesses críticos é o fato de que essa nova geração modificou o entendimento do que é instituição, tornando-a generalizada. Entender essa noção ampliada, essa noção sociológica da instituição, parece tarefa difícil pra muitos críticos, que acabam, por conta disso, sem conseguir enxergar um outro lado da crítica dessa segunda geração em suas práticas e escritos.

Essa ampliação crítica realizada pela Crítica Institucional nos anos 1980 já era identificável no trabalho dos artistas latino-americanos. Retomando as considerações feitas por Ramírez anteriormente, esta autora destaca o papel do questionamento político e ideológico das ações de crítica à instituição existente em vários trabalhos realizados na América Latina. Os contextos de ditadura em vários países, a repressão, o envolvimento do poder econômico com essa situação política e a condição de colonizados eram temas que surgiam em vários trabalhos nesse período. Ou seja, o conceitualismo, aqui, além de assumir um percurso diferente de surgimento, assumiu formas críticas que, mesmo presente em alguns trabalhos nos anos 1960 nos Estados Unidos e Europa, só vieram aparecer mais fortemente nos anos 1980.

Há que se dizer que a Crítica Institucional, em seu momento inicial, já levava em consideração as relações políticas e econômicas que se esquadrinham sob os museus e galerias. Mas, nos anos 1980, essa crítica se amplia para não só desvendar estruturas subjacentes nos museus, mas entendê-los como espaços produtores (e reprodutores) de formas de conhecimento e discursos (ideológicos) que são excludentes, desiguais ou economicamente determinados. Em sua segunda fase, a Crítica Institucional operava não apenas no desvelamento (e também), mas na interferência nos modos de produzir conhecimento existente nos museus. Pensando no caso particular da América Latina, os artistas antes de desvelar, pretendiam inserir a crítica dentro das instituições. Realizavam ações similares às dos artistas da segunda geração, inserindo a crítica ao contexto mais amplo nas instituições, considerando-as nessa operação. Uma tática de produção da crítica social a partir da instituição e em seu interior.



3 Benjamin Buchloh, Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions.. In: October, Vol. 55 (Winter, 1990), pp. 105-143, 1990.
4Hans Haacke, Momma Poll, 1970, duas urnas de acrílico, células foto-elétricas, dispositivo de contagem, gráfico de registro dos resultados, cartaz com pergunta sobre alguma questão política da época, Museum of Modern Art, Nova York.

5Andrea Fraser, Da Crítica das Instituições a uma Instituição da Crítica. In: Revista Concinnitas ano 9, volume 2, número 13, dezembro 2008, p. 179-187,.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Daniel Santiago: a ficção da ciência


Texto originalmente publicado na Revista Café com Sociologia V.2 n. 3 (2013)
Link para acessar texto original: 
http://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/103


1. Vanguarda artística no Recife

Antes de iniciar a análise teórica propriamente dita, se faz interessante situar um pouco o artista Daniel Santiago no interior de um contexto artístico mais amplo que dominava o cenário dos anos 1960/1970 no Brasil. Nesse período, a tendência à experimentação artística e à abertura das fronteiras de linguagens, fazia com que os artistas desse momento vivenciassem práticas em que artes visuais, teatro, discurso, e, principalmente, poesia se mesclavam em trabalhos subversivos, seja do estatuto político do período (marcado pela ditadura), seja do estatuto da arte (do que era considerado objeto artístico legítimo). Essa foi a época da emergência, no cenário brasileiro, de práticas identificadas com o que ficou conhecido como arte conceitual, pop art, concretismo, neoconcretismo e seu desdobramento na arte ambiental, através de Hélio Oiticica.

Tendo iniciado sua carreira em fins dos anos 1950, Daniel Santiago é um artista pernambucano que experimentou em diversas áreas das artes visuais. Começou como designer gráfico de cartazes (nessa época, feitos à mão) para grandes magazines. Em seguida, ingressou em um curso, via correio, de desenho, no qual começou a aperfeiçoar a técnica. A partir de meados da década de 1960, entrou para Escola de Belas Artes do Recife (EBA), onde passou a ter uma formação mais formal na área da pintura e do desenho.

Porém, nesse período de formação na EBA, começou uma parceria com Paulo Bruscky, artista com forte tendência vanguardista e, juntos, eles se tornaram uma das principais referências para a arte contemporânea do Estado, junto com outros nomes como Montez Magno, Sílvio Hansen, Ypiranga Filho, Jomard Muniz de Brito, Leonardo Duch, Unhandeijara Lisboa, entre outros. Durante os anos 1970, trabalhando como a dupla Bruscky e Santiago, iniciaram uma produção que dialogava com tendências nacionais e internacionais de ampliação da criação para materiais e suportes inusitados, porém produzindo trabalhos em estreita conexão com o contexto social e político local.

Os trabalhos de Bruscky e Santiago produzidos nessa época, primam pela mistura de linguagens artísticas e pela passagem da noção de experiência artística ao primeiro plano da preocupação estética. Produzindo trabalhos em suportes os mais variados, a dupla iniciou, na cidade, a realização de performances, ações urbanas, intervenções poéticas em jornais de grande circulação, além de uma forte produção de poesia visual, que influenciou bastante na emergência da arte correio no Recife. Mesmo após o fim da dupla, ficou marcada na poética de ambos os artistas a tendência a trabalhar a partir de variados suportes: seja fotografia, vídeo, performance e, no caso de Daniel Santiago, desenho, produção de cartazes e pintura.

E no meio de toda essa vasta produção, a poesia é algo que está sempre presente nos trabalhos de Daniel Santiago. A relação próxima com o poético em sua obra, interfere no fascínio que esse artista possui pelas novas tecnologias. Para além da experimentação com vídeos, fotografia, ou demais outras ferramentas tecnológicas, Santiago se sente atraído pelo discurso científico, pela ideia de que a ciência torna tudo e qualquer coisa possível. E ele representa esse fascínio em vídeos e em projetos nos quais a ciência parece ser convocada à servir ao seu projeto poético, ficcionalizando-a ao destacar o caráter fantástico que está presente no interior dela mesma.

Esse caráter ficcional-científico presente na sua obra se destaca em uma atual discussão a respeito de arte e tecnologia: é possível ao artista ser fascinado pela tecnologia e não render-se a ela? Será a obra artística sempre passível de ser capturada pela lógica de arquivamento da tecnologia atual (voltada para o entretenimento e para a redução da capacidade sensível)? Será a obra de Daniel Santiago capturada pela tecnologia e transformada em produto da Indústria Cultural (como diria Adorno); ou abrirá ela espaços de subversão e ruptura no interior do arquivo da tecnologia?

2. A ficcionalização da ciência como operação artística

Para responder a essas questões, o primeiro passo é atentar para essa filiação altamente experimental do artista, a qual provoca vários pontos de deslocamento possíveis de serem descobertos na obra de Daniel Santiago. E um dos que mais chama a atenção, reside na dimensão da recontextualização do discurso racional, científico que é deslocado para a esfera da ficção, da poesia e da imaginação em trabalhos onde a ciência aparece como algo fantástico e fascinante para o artista.

Pensando a partir de Jacques Rancière (2005) e sua ideia de partilha do sensível, é possível visualizar a operação estética de Daniel Santiago. Este conceito trata da dimensão da reorganização política do sensível em uma comunidade a partir da entrada do que estava fora (esquecido ou invisibilizado) nesta comunidade. E esse algo que está fora podem ser tanto sujeitos políticos, como também ideias, sentidos e experiências.

Sendo assim, percebo a ação de Santiago como operando uma inserção de sentidos e experiências sensíveis na dimensão do discurso científico, no interior do qual permanecem esquecidos, apagados ou, simplesmente, calados. O sensível, o fantástico e o onírico parecem não ter lugar na dimensão racional, calculável e neutralizante do discurso da ciência. São anulados e excluídos por ele.

Voltando para dimensão da esfera pública (ou, como diz Rancière, do comum), vê-se que esse discurso da ciência é o “totalizante”, é o que tem maior visibilidade, é o dotado de voz e da capacidade de falar “a verdade” e de proferir “as certezas”. O discurso científico é a voz da autoridade na modernidade. É, repetindo Derrida, uma espécie de princípio arquiviolítico da mesma. Subverter essa autoridade arquivística, a partir da inserção de dimensões imaginativas, é quase uma afronta. E é isso que faz Daniel ao reinserir a fantasia como complementaridade da ciência, reordenando a dimensão sensível e operando uma nova forma de viver essa ciência e de se aproximar dela. Isso possibilita que outras vozes (além da dos cientistas) falem sobre ela. E com essa operação, realiza o que Benjamin define sobre a experiência em O Narrador – recoloca no nível do coletivo e do compartilhado o que antes estava individualizado e afastado.

Essa reaproximação do “conhecimento puro” com a imaginação, a fantasia, é algo que realiza o caminho inverso do da ciência moderna, como já foi dito. Porém a importância dessa operação para a subjetividade moderna pode ser percebida quando se observa o ponto de vista de autores como Giorgio Agamben (2008) que, ecoando Walter Benjamin, também fala sobre a pobreza de experiência na modernidade. Para este autor, este período histórico é marcado pela sacralização da experiência pela ciência, que a colonizou e submeteu aos métodos exteriores e calculáveis de produção do conhecimento.

A ciência moderna operou, segundo este autor, a fundição, em um único sujeito (o sujeito do cogito), do sujeito da experiência com o do conhecimento, antes considerados separadamente no pensamento antigo e medieval. Essa cisão acabou por submeter a experiência ao ego cogito, capaz de manipulá-la. Em outras palavras, a ciência moderna retirou do homem a experiência, tornando-a exterior e manipulável, a fim de fazê-la exata e calculável.

Da mesma maneira que diagnosticaram Adorno e Horkheimer ao falar da mímesis perversa que conformou o sujeito autônomo ocidental ao fazê-lo reprimir uma mímesis originária prazerosa, Agamben percebe que o preço pago pela razão foi alto. Foi a saída do eu da experiência que garantiu a entrada em uma dimensão do autocontrole e da reflexividade. Para isso, era necessário controlar a experiência, retirá-la do seu lugar contingente e cotidiano para transferi-la para a esfera sagrada da razão.

Desse modo, Agamben constata que, em sua busca pela certeza, a ciência moderna fez da experiência o lugar, ou melhor, o método do conhecimento. Essa ciência é baseada, entre outras coisas, na desconfiança fundamental de Descartes em relação à experiência, considerando-a como um demônio ilusionista que aliena os sentidos e distrai do alcance da certeza. Esse é o mesmo medo platônico da mímesis. Para superar esse medo, é preciso operar aí o controle. Nesse processo, a ciência moderna opera a cisão entre os sujeitos da experiência e o da inteligência, fundindo-os em um ponto comum que é o ego cogito cartesiano, a consciência humana. É a consciência agora o agente do conhecimento, a fonte da inteligência (antes considerada como separada do homem e residente na esfera do divino) capaz de manipular a experiência (2008:29). Esse ego cogito cartesiano foi muito bem representado por Adorno e Horckheimer, como dito acima, pela imagem de Ulisses (representante mitológico da ratio ocidental) atado ao mastro para não sucumbir ao canto das sereias (ao prazer indistinto, ao mito, ao primitivo e irracional).

Nesse processo de controle e repressão, algo fundamental foi retirado de cena pela ciência moderna: a dimensão da fantasia e da imaginação. Se na antiguidade, ela era o meio, por excelência, de acesso ao conhecimento, na ciência moderna foi eliminada por seu caráter irreal e ilusório. Tanto na antiguidade como em outras culturas consideradas “primitivas” a fantasia (através do sonho) é um importante mediador entre a dimensão sensível e a inteligível. Sonhar era algo considerado importante na realidade da experiência, seja como previsão, seja como ensinamento, seja como acesso ao divino. Mas, a partir de Descartes, o ego cogito, ou seja, o sujeito da ciência e do saber, não precisa mais da mediação com o mundo real e, de sujeito da experiência, a fantasia passa a sujeito da alienação mental: das visões, dos fenômenos mágicos, tudo aquilo que não participa da experiência “autêntica”.

E é essa fantasia, que Daniel Santiago traz de volta ao seio da ciência. Dessacraliza esta que é a mais alta representação da racionalidade, do progresso, da evolução, ou seja, do espírito da modernidade, trazendo-a de volta ao convívio comum dos homens. Como diria Agamben, ele profana a ciência para trazê-la de volta ao nível da experiência coletiva e comum. A tecnologia científica e toda a sua calculabilidade e desejo de controle exterior, exercem nele um fascínio quase infantil. O que antes era técnico, controlado, passa a ser quase uma brincadeira de criança, algo possível para qualquer pessoa e não mais tão amedrontador assim.

Fascinado por uma matéria que viu em um artigo científico, que falava sobre canhões de íons aceleradores de partículas, Daniel Santiago teve uma brilhante ideia em um trabalho produzido nos anos 1970: pedir esse canhão emprestado para fabricar uma aurora boreal artificial. Nesta ação, Santiago divulga em um jornal do Recife que quer fabricar uma aurora boreal artificial na cidade e pede ajuda a físicos para ter acesso ao tal canhão acelerador de partículas. Qual é a utilidade desse acelerador de partículas para a física? Ele não sabe. O que isso promove no meio-ambiente? O que estão querendo provar e testar com esse equipamento? Nada disso ele é capaz de responder. Para o artista, basta entender um princípio simples: o de que essa tecnologia pode ser capaz de servir para tornar o céu mais colorido, para fabricar uma espécie de poesia celeste, chamada de aurora boreal, e que todos conhecem.

Essa simples operação promove uma quebra no interior desse arquivo científico. O canhão, aí, é algo sério: tem um real objetivo científico e exato de realizar testes em partículas para descobrir novas verdades sobre o universo. E toda essa operação científica permanece afastada de todos. Só os iniciados – os arcontes desse arquivo – são capaz de entender e acessá-lo. O resto das pessoas precisa manter-se afastada, como norma para que o arquivo siga sendo eficiente em sua função de reprodução, não sendo questionado. Santiago, ao querer tornar esse canhão uma ferramenta artística, de produção de uma pintura ou poesia celeste, dessacraliza e, de algum modo, ridiculariza esse discurso científico. Põe em evidência a questão: mas, afinal, pra que serve isto mesmo? Pra que tem que ser útil e científico se pode ser, simplesmente, bonito?

Em outro trabalho, esse de 2009, Daniel Santiago produz um vídeo utilizando tecnologias muito simples: uma webcam e materiais que encontra em casa. Sua intenção, aqui, é colocar uma molécula de carbono para dançar. Chamado de Coreografia da Molécula de Carbono, o vídeo possui uma parte em que o artista faz um jogo poético falando sobre a partícula, dizendo: “Durante séculos, teve-se como verdade absoluta que a molécula de carbono estava somente no diamante e na grafite. Agora ela aparece deslumbrante na poesia eletrônica também”. E em seguida, aparece uma luz vibrante, em formato circular, bailando ao som de Tchaikovsky.

Através da poesia e da exploração do imaginativo, Daniel Santiago desconstrói, aqui de novo, o que é a verdade científica. Essa verdade diz que a molécula de carbono só existe no diamante e na grafite. Mas ele, artista, encontrou-a bailando em sua poesia eletrônica (como denomina os vídeos que produz). A molécula que, aparentemente, não tem forma nem cor, aparece linda, como um jogo de luzes vibrantes que se modificam ao som da música de fundo. E quem pode dizer que não é assim que parece uma molécula de carbono? No jogo de Daniel Santiago, ela não está mais sujeita a experimentos e comprovações. Ela é apenas luz dançante, partícula de luz e cor que flutua pelo espaço negro, como que a celebrar sua libertação da função de compor a grafite e o diamante.

Santiago libertou a molécula da ciência e a deixou às nossas vistas para que pudéssemos, de verdade, vê-la, experimentá-la e entendê-la. Se não sabemos quantas partículas como essas são necessárias para fazer o diamante e a grafite, nem tampouco como elas se ordenam para que um seja mais duro e o outro menos, não importa. Qualquer um é capaz de vê-la dançar, de emocionar-se com sua libertação. Todos temos acesso à molécula de carbono dessacralizada, profanada de seu caráter cientifico e exato.

Em um outro vídeo, também de 2009, Daniel Santiago mostra O Plasma no Interior da Magnetosfera. Utilizando-se de termos científicos inventados, faz uma extensa explicação do que seria o plasma e a magnetosfera, para ao final dizer: “o que parece mentira, é poesia”. Nesse imenso jogo de termos inventados, coloca em evidência uma dimensão de construção do discurso científico, cujos termos, quanto mais de difícil acesso pareçam, mais legítimos se tornam. Sua arbitrariedade poética é perdoada ao dizer que, o que não é verdade, o que não é comprovado por esse discurso, é poesia. A ciência que fala sobre a atmosfera e a mesosfera pode ser tão fascinante e poética como o discurso mentiroso de Daniel Santiago sobre a magnetosfera. E pode ser tão mentirosa quanto. De uma maneira aparentemente simples, Santiago deixa uma inquietação imensa em quem assiste ao vídeo: “afinal, o que é mesmo verdade?”.

Nestes e em vários outros trabalhos, é importante ressaltar o uso da tecnologia de massa que Daniel Santiago realiza. A partir de uma simples webcam, máquina criada com o intuito de promover a interação, via internet, entre pessoas distantes, realiza vídeos cuja força poética e deslocadora são notáveis. E ao fazer uso dessa tecnologia de massa, criada para o entretenimento e a comunicação, promove uma quebra na estrutura do arquivo ocidental: ficcionalizar a ciência, trazer de volta ao seu interior o fantasioso e o poético, anular a utilidade da tecnologia, opondo a esta uma outra lógica que não a instrumental.

É preciso dizer que há vários vídeos realizados, várias coisas feitas via webcam por muitos outros artistas e, também, por usuários comuns. Ou seja, a questão da subversão da tecnologia, em Santiago, não é exatamente o seu uso para promover um vídeo. Isso a tecnologia admite em seu interior, é capaz de fazê-lo. A prática artística deslocadora operada por ele, não é tanto a fabricação de um vídeo, mas o que os trabalhos dele dizem, operam e promovem em termos estéticos e poéticos.

Pensando, de maneira geral, no que se tem produzido na arte contemporânea com novas tecnologias, essa é uma importante questão a ser colocada: até que ponto o uso artístico da tecnologia apresenta uma dimensão mais fetichizante do que crítica? Ao observar algumas exposições de arte e tecnologia, pergunto-me, ao deparar-me com alguns trabalhos, quem está com a razão: Adorno ou Benjamin? Num cenário em que a arte já aceita, reproduz e, inclusive, incentiva a experimentação tecnológica, é possível manter a dimensão deslocadora e crítica? Acredito que trabalhos como os de Daniel Santiago, apresentam uma possibilidade terceira, que não é a da adesão acrítica à ciência e à tecnologia, tampouco a de seu rechaço temeroso, mas um envolvimento com essas técnicas que as deslocam do seu objetivo funcional primordial, permitindo a entrada de novos pensamentos e experiências a partir desse deslocamento. Porém, creio que há uma gama enorme de trabalhos feitos com Iphones, Ipads, Tablets, nanotecnologia os quais ainda me fazem perguntar o que, de fato, se está produzindo e questionando artisticamente. Infelizmente, essa é uma questão cujo debate não caberá no espaço desse artigo, mas que precisa sempre ser colocada ao se falar nessa relação entre arte e tecnologia.

3. Algumas considerações finais

Nesse trabalho, tentei de maneira resumida, fazer uma análise de como as relações entre arte e tecnologia podem conter a dimensão do deslocamento e da ruptura, mesmo em sua condição contemporânea (na qual, todo trabalho, feito em qualquer suporte, passa a ser aceito como arte). Se antes, para as vanguardas artísticas do início do século, aproximar-se das tecnologias de massa era um extremo ato subversivo e de questionamento da instituição-arte; hoje, essa mesma instituição, passou a abrigar e, até mesmo, a exigir esse tipo de relação com a técnica. Os trabalhos em vídeo, com internet e robótica, por exemplo, compõem atualmente parte grande da poética de muitos artistas hoje chamados contemporâneos.

Porém, se se pensa a técnica como uma espécie de arquivo, que possui um determinado poder consignador para reproduzir-se (ou seja, determina práticas em seu interior e tenta eliminar a dissonância), pode-se perceber que tipo de modus operandi se impõe a partir dela. Será que os artistas atuais, simplesmente porque produzem vídeos ou robôs que realizam performances, estão de fato subvertendo esse modus operandi? Que tipo de relação artística se pode ter com a técnica para subverter esse tal modus operandi, em um momento atual de imensa ampliação, seja das possibilidades dessa técnica, seja da capacidade de absorção do mercado artístico?

A escolha de Daniel Santiago para essa análise não foi à toa. Ele é um artista que, sim, opera a partir de técnicas como webcam, assim como vários outros o fazem atualmente. Porém, esse artista possui uma capacidade poética e de deslocamento estético que inserta um ruído nesse modus operandi a que me referi. Ele não fetichiza a webcam, por mais que se mostre através de seus vídeos a capacidade tecnológica que essa câmera possui. Sua ação vai além de uma experimentação pura com a tecnologia, ou uma demonstração de como se pode ampliar suas capacidades, mas, desde dentro, opera uma desfuncionalização da mesma.

Ou seja, se ela serve para comunicação e para fazer filmes, passa a não ter nenhuma função quando realiza a operação poética de desconstrução da ciência que aparecem nos filmes de Santiago. Ou sua função é deslocada e retirada do nível da utilidade. Sim, a câmera foi útil para a produção do vídeo, mas se ele não revela como o fez, ninguém é capaz de saber como aquilo foi feito e com que suporte técnico. A tecnologia aparece como a coisa menos importante para a produção daquela poesia eletrônica que toma e impacta poeticamente a quem a assiste. Da mesma forma que usou uma webcam, poderia ter usado qualquer outra tecnologia. Pouco importaria para o trabalho. A relação que se estabelece aqui é de uma independência do poético em relação ao técnico. Este é um meio, uma via de operação, é necessário como construção do trabalho artístico que opera práticas que não estão dadas na configuração original do aparato tecnológico.

Para mim, essa prática operada por Daniel é uma via possível de ação diante dos aparatos tecnológicos dos quais a arte já não pode fugir. Retomar a dimensão da experiência, retirar a técnica desse lugar sagrado e distanciado do qual se encontra, sem fetichizá-la, fazendo o poético adentrar a ação de operação da técnica. Essa é a maior subversão que se pode realizar. Colocar o estético e o poético no lugar do funcional, do exato ou do entretido.