A
questão da arte autônoma no seio da sociedade burguesa já foi, por
muitos autores, referenciada como um giro fundamental na história da
arte e o marco da passagem desta para sua modernidade. Autonomizar-se
significava, para o artístico, liberar-se de funções sociais, de
obrigações representacionais, seja teológicas, sejam políticas,
para permitir-se pensar a si mesma. O ganho dessa consciência de si,
pela arte, implicou em sua secularização, em sua racionalização
e, segundo Weber, em sua constituição como esfera autônoma (como
campo, diria Bourdieu).
Essa constituição
da arte como esfera autônoma implicou, por outro lado, em um cada
dia maior afastamento da arte da práxis vital. Esse diagnóstico, já
encontrado pelos autores da Teoria Crítica, é visto como o sintoma
de uma outra dominação da arte: se esta já não está mais sujeita
à religião e a funções sociais de integração, agora serve como
via de escape de uma ideologia burguesa de originalidade e
distanciamento do social. Para Benjamin, isso é representado pela
aura dada à obra de arte, por exemplo.
Peter
Bürguer (2008), um dos autores mais importantes para se compreender
a arte de vanguarda e seus processos de ruptura no início do século
XX, parte deste diagnóstico também. Para ele,
considerar a autonomia do campo artístico como uma categoria da
sociedade burguesa é o caminho para a reflexão que permite
compreender o processo através do qual a arte se desligou do
contexto da práxis vital. Sendo assim, ele enxerga o modo como essa
autonomia se apresenta, como erguida sobre fortes ideais estéticos –
filiados ao pensamento humanista, de orientação filosófica
essencialista –, retirando, por essa operação, todo o caráter de
construção histórica do processo de autonomização do campo
artístico.
Igualmente
aos teóricos de Frankfurt, Bürguer identifica que a sociedade
burguesa operou a cisão entre o conjunto de elementos que envolvem e
compõem a atividade artística e a práxis de vida. Isso gerou uma
espécie de “falsa representação da total independência da obra
de arte em relação à sociedade” (BÜRGUER, 2008:101), ou seja,
sua autonomia. Em outras palavras, o status de autonomia que a esfera
da arte adquiriu no contexto da sociedade burguesa, passando, assim,
a se configurar como um campo
propriamente dito, traduziu a completa separação entre o mundo da
arte e o mundo da vida comum.
E é a partir do
questionamento que a arte de vanguarda fará a essa ruptura e
distanciamento da instituição-arte burguesa em relação à praxis
vital que Bürguer baseia a sua análise. Partindo de sua própria
constatação de um cenário pessimista, Bürguer vê, exatamente no
contexto em que o esteticismo chegou à sua exacerbação, a
possibilidade de crítica contra a arte burguesa emergir. Para ele, o
movimento de autocrítica só pode ser articulado porque a arte
deixou de apresentar uma função e se tornou um fim em si mesma.
Dessa maneira, a perda de função da arte como um elemento basilar
da arte burguesa foi a condição de possibilidade do momento de
autocrítica empreendido pelos movimentos históricos de vanguarda.
Nessa empreitada,
aproxima-se de Benjamin por, da mesma maneira que este autor,
pretender buscar nos movimentos de vanguarda elementos emancipatórios
diante de sua atual configuração – seja como instituição-arte,
seja como mercadoria. E, igual a este, verá nos movimentos de
vanguarda a operação de um questionamento que não era somente
estético, visto que as manifestações da vanguarda tinham como
proposta questionar e romper os valores estéticos do sistema de arte
enquanto valores da sociedade burguesa de maneira geral. A crítica
ao esteticismo, não era somente um questionamento da
instituição-arte burguesa e seu afastamento da vida. Era um
questionamento dos seus valores, do sistema social burguês que
representava. Ou seja, enquanto o esteticismo transformava o
distanciamento entre a arte e a práxis vital em conteúdo das obras,
os vanguardistas almejavam, a partir da arte, constituir uma nova
práxis vital, radicalmente diferente da práxis de vida burguesa,
basicamente orientada por uma racionalidade voltada para os fins.
Em outras palavras,
as vanguardas operaram não só um movimento estético, mas também
social de questionamento da racionalidade instrumental dominante no
mundo da vida. E, operando um movimento de autocrítica – uma
espécie de desconstrução no interior da instituição-arte –
inciaram um processo artístico de aproximação da arte com a vida
e, também, de destruição do que era a arte dentro da instituição
burguesa.
A arte de
vanguarda, portanto, precisava abandonar o caráter de objeto
aurático, cuja origem atestava sua autenticidade e, portanto valor
de culto, para ser jogada de volta à cidade, à vida. Foi aí que
Duchamp fazia um mictório de escultura, ao assiná-lo com um nome
falso, operando uma ridicularização do sistema legitimador da
instituição-arte (para a qual a origem era um importante sinal de
valor da obra). Com essas e outras ações ruptoras, a vanguarda
pretendia uma não-arte. Mas com isso não pregava o fim da arte em
si mesma, mas a desarticulação do que era essa arte burguesa.
E esse
desmantelamento se dava nos níveis da produção e, também, da
recepção artística. Ou seja, a tendência vanguardista recusou,
ao mesmo tempo, o tipo de produção artística da arte burguesa, de
caráter individual, e, também, o tipo de recepção da obra de arte
verificado no contexto de desenvolvimento da arte na sociedade
burguesa, também individual: aquela recepção que demonstra uma
nítida e profunda separação entre quem produz o trabalho de arte e
quem o recebe. Desse modo, quebram não somente com o tipo de
produção aurática, seguindo benjamin, mas com uma espécie de
recepção aurática também, que reforçaria esse caráter sagrado
que se impingia às obras. Ou seja, passa-se de um tipo de recepção
individual, sagrada, ritualística, inacessível, para um de tipo
mais coletivo e acessível, no sentido de que a arte poderia ocupar,
inclusive, o espaço de convivência das pessoas – a cidade.
Tornar a arte
acessível, dessacralizada, devolvê-la ao nível da experiência,
desmantelá-la em seu modo de produção/recepção burguesa, impor
uma nova forma de produzir arte, tudo isso fazia parte do projeto das
vanguardas históricas. Porém, diz Bürguer, a história as condenou
e elas fracassaram em seu projeto ao tornarem-se, anos depois,
musealizadas. Isso porque as neo-vanguardas dos anos 1960 retomam
todas essas práticas inciadas no início do século XX, mas agora,
sem uma pretensão tão violentamente desconstrutiva, dentro da
instituição-arte.
Para Bürguer o
fracasso começa a se der a partir de uma absorção dos processos
ruptores das vanguardas. Por exemplo, por se configurar numa
experiência única e de caráter impactante, a estética do choque
não apresenta um efeito duradouro, na medida em que sua repetição
transforma o sentimento de estranheza que ela suscita em algo já
conhecido, familiar. O choque, defende Bürger (2008), passou a ser
esperado pelo público que, ao tomar conhecimento das nada
convencionais manifestações dos dadaístas e das escandalosas
reações que elas provocavam, passou a ir a esses eventos com a
expectativa de ver o que tanto estava sendo repercutido nos grandes
veículos de comunicação de massa. Tal situação produziu, então,
a institucionalização da estética do choque e, com isso, o projeto
das vanguardas de destruição da instituição arte e do retorno da
arte à práxis vital parecia estar fracassando. A instituição-arte
parece ter vencido a vanguarda, reabsorvendo-a em seu interior e
reproduzindo-a, tornando-a arte aí dentro.
É aí que Bürguer,
que vinha muito próximo de Benjamin em sua análises das
vanguardas (caráter de aberto e fragmentário das obras
vanguardistas, a noção de alegoria em contraposição à de aura)
se aproxima de Adorno em seu diagnóstico final. As vanguardas
morreram porque foram absorvidas de volta pelo mercado. Segundo ele,
ao invés de se alcançar efetivamente a recondução da arte em
direção a uma nova práxis vital (que não a do burguês), o que se
conseguiu foi, com a indústria cultural, o desenvolvimento da falsa
superação da distância entre arte e vida. E será esse o
diagnóstico inspirador para vários autores que se debruçarão
posteriormente sobre a arte pós-moderna (ou arte contemporânea):
esta não passa de um pastiche do que foi o modernismo, o resultado
de um fracasso altamente mercadorizável e acrítico.
E
desde esse ponto, é importante observar quais caminhos distintos
a tipo de análise se pode tomar, através da leitura que faz Hall
Foster (1999) das neo-vanguardas, por exemplo. A análise de Foster
sobre as neo-vanguardas é sempre muito intrigante. O fato de ele se
utilizar
de teorias psicanalíticas para entender o processo criativo
realizado pelos artistas que retomavam ações inicialmente
realizadas por vanguardas como o Dadaísmo e o Surrealismo já
demonstra o quanto este teórico quer desbravar este fenômeno, ao
invés de rechaçá-lo. A partir de Freud, Foster pensará as
neo-vanguardas como retornos que tentam resolver um trauma: as
vanguardas foram eventos culturalmente traumáticos, não digeridos
nem entendidos na época de seu primeiro acontecimento, que
precisaram ser retomados para, de fato, se realizarem em sua
plenitude de potência.
Dessa maneira,
Foster acredita existir dois momentos de retorno neo-vanguardista. Um
primeiro aconteceu no início dos anos 1950 e, para ele, foi um
momento de retorno acrítico, de mera repetição das ações de
vanguardas anteriores. O segundo, ocorrido nos anos 1960, representa
um retorno mais lúcido e crítico, no qual as neo-vanguardas
finalmente conseguem realizar a crítica à instituição-arte
preconizada pelas vanguardas. A ampliação da consciência
histórica, da formação acadêmica dos artistas são fatores
apontados por Foster para essa realização mais crítica do segundo
retorno neo-vanguardista. Mas a explicação freudiana é ainda mais
interessante para entender o fenômeno por ele apontado.
A partir dessa
visão psicanalítica, Foster acredita que na primeira neo-vanguarda
ocorre um processo de repetição que parece necessário ao processo
de reconhecimento, visto que este conteúdo (a ação da vanguarda)
havia sido reprimido no momento de sua primeira manifestação. A
segunda retomada acontece num momento posterior. Dessa maneira, já
realizada a repetição, esse conteúdo anteriormente reprimido pôde
ser elaborado e, dessa forma, criticado. Sendo assim, para Foster, o
chamado fracasso da vanguarda histórica e da primeira neo-vanguarda
em destruir a instituição-arte capacitou a segunda neo-vanguarda à
submeter a um exame desconstrutivo esta instituição. Um exame que,
uma vez mais, se amplia até abarcar outras instituições e
discursos no que ele chama de “arte ambiciosa” do presente
(1999:26,27).
Ao assumir esse
ponto de vista sobre as neo-vanguardas, ele bate de frente com Peter
Bürguer. O principal erro deste autor, em sua visão, é o de não
perceber a dimensão performática das vanguardas e, por isso,
tomá-las como um projeto “real” de mudança social e artística
ampla que fracassou. E ao assumir essa visão romântica da
vanguarda, Bürguer cega para a possibilidade de uma segunda retomada
dessas ações performáticas como possibilidades reais de crítica
para a arte no período pós-guerra. Sem desconhecer a importância
deste autor para a descoberta da dimensão histórica da arte que as
vanguardas revelam, Foster também reconhece que a insistência de
Bürguer no fracasso da vanguarda e da impossibilidade de um novo
projeto artístico o faz cegar à sua própria descoberta de que a
vanguarda revela a historicidade de toda arte. Dessa maneira, ele
cega para a possibilidade da existência do que Foster chama de arte
ambiciosa (ampliação da crítica pré-guerra da instituição-arte,
produzindo novas experiências estéticas e intervenções políticas)
(1999:16).
Para Foster,
Bürguer deixa de perceber as dimensões miméticas e utópicas das
vanguardas ao tomar ao pé da letra a retórica romântica de ruptura
e revolução destas. A dimensão mimética da vanguarda seria a
capacidade de mimetizar o mundo capitalista moderno degradado a fim
de não aderir a ele, mas burlá-lo. A dimensão utópica, por sua
vez, está no fato de que a vanguarda propõe o que pode ser, quanto
o que pode não ser como crítica do que é. Para Foster, a ação
vanguardista de ruptura e revolução é retórica no sentido de que
é contextual e performativa, não podendo ser tomada como ampla e
profunda, como projeto a ser empreendido (à maneira que Bürguer
entende) (1999:17).
E a partir da sua
crítica à Bürguer e de sua vontade de recorrer à Freud para
compreender a ação das neo-vanguardas, é possível perceber como
Foster está lidando como elas: como ações performativas,
contextualizadas, que operam rupturas na instituição-arte a partir
do seu interior. Para ele, o fato de as neo-vanguardas serem
“institucionalizadas” não é um problema, ou um índice claro de
fracasso ou negação da crítica. Ao contrário, para ele são as
neo-vanguardas que estão institucionalizadas as que parecem possuir
a capacidade crítica mais acentuada.
Porém, ao mesmo
tempo, são essas as neo-vanguardas responsáveis por constituir o
mercado de arte contemporânea altamente volátil e incorporador de
novas ações, sejam elas precárias, efêmeras ou críticas. E essa
dupla face das neo-vanguardas, que depois se revelará a dupla face
da arte ambiciosa do presente, como o autor revela, estará sempre
presente na obra de Foster, como uma sombra. A análise
pós-estruturalista e desconstrutiva derridiana que este autor parece
se empenhar em desenvolver, o deixa alerta para a possibilidade da
adesão disfarçada de crítica como um modus
operandi da
arte, inaugurado pelas ações das neo-vanguardas.
Sem negar sua base
Teórica Crítica, Foster reconhece também a dimensão de captura
que ronda a produção artística. Sem querer se entregar ao
totalitarismo do pensamento pessimista, por conta de sua inspiração
derridiana, ele vê essa captura operando, não como algo obsedante e
sem saída, mas através de uma espécie de jogo, no interior do qual
a prática do artista é algo fundamental.
Há, em sua visão,
uma espécie de fronteira entre a desconstrução (a prática
crítica) e a cumplicidade (inserção nas regras do mercado). O jogo
desconstrutivo da arte abriga a possibilidade de promover críticas
profundas no interior da instituição mas, ao mesmo tempo, também
tende a promover uma espécie de “cinismo” adesista, como diz
Foster. Em outras palavras, a arte contemporânea pode tornar-se uma
ação no interior da instituição-arte que, em discurso, tenta
desconstrui-la, mas que, em prática, apenas a reforça,
compartilhando de seus princípios de mercado.
E é nesse momento
que a performatividade artística entra em questão na “luta”
contra o mercado e a neutralização da crítica que realiza. O
artista como agente, mesmo que Foster não o defina dessa maneira,
parece ser dotado do poder de jogar com essas regras, de fazer o jogo
desconstrutivo ou o jogo cúmplice na arte, mesmo que posteriormente
sua obra escape de seu alcance. E essa dimensão performática da
ação política na arte é vista de melhor maneira nas ideias de
agente duplo e artista cúmplice que ele desenvolve.
O artista
cúmplice e
sua potencial versão cooptada de agente
duplo, abarcam,
portanto,
essa
dimensão sutil e performática da passagem para um lado ou outro
desse limite entre a adesão e a subversão, acima referida.
Pensada por Hal Foster (1996), essa ideia permite visualizar, por um
lado, a operação artística que “se faz” de cúmplice do
mercado para operar críticas a partir de seu interior e, por outro,
a ação que “se faz” de subversiva (ou que anula uma anterior
dimensão ruptora) para se tornar melhor cotada no mercado. Através
dessas construções analíticas, Foster parece visualizar uma
espécie de passagem secreta, tênue e precária que, uma vez
encontrada pelo artista, o dota da possibilidade de operar a crítica,
mesmo estando completamente inserido no jogo mercadológico (apesar
de reconhecer que, por outro lado, pode operar a reprodução desse
mercado passando pela mesma passagem secreta).