Na mesa
inaugural do 1º Congreso On Line de Gestión Cultural, cuja
videoconferência com a participação dos cinco projetos
selecionados ocorreu na última quinta (15.09), o debate girou em
torno de processos de gestão de inciativas de cultura livre. Nessa
discussão, ficou exposto na fala dos palestrantes um incômodo que
sinto desde que comecei a ver as palavras gestão e cultura livre
juntas: como aliar o conceito de gestão, diretamente relacionado ao
vocabulário capitalista e empresarial, com a ideia de cultura livre?
Essa foi uma questão que surgiu em quase todas as falas e, em muitos
casos, se destacavam também as dificuldades e contradições que se
sentia em torno à gestão da cultura livre.
A
aparente dificuldade prática dessa relação começa, pra mim, na
relação contraditória que essas duas ideias, que vêm de
estruturas discursivas distintas, estabelecem. Segundos os sociólogos
franceses Eve Chiapello e Luc Boltanski, a reestruturação do
capitalismo durante os anos 1980 e 1990 ocorreu em torno dos mercados
financeiros e da apropriação do âmbito da cultura, gerando o que
eles chamam de novo espírito do capitalismo. O importante dessa definição
é compreender que essa reestruturação do capitalismo, para ser
efetiva, necessitou recorrer de maneira forte à elaboração de um
novo vocabulário, criando termos que se referiam à gestão
empresarial e financeira, mas que acabaram alcançando o nível
cultural mais amplo, sendo usados inclusive para se referir ao
universo artístico e da produção cultural. E como processo
ideológico que é, tanto quem era a favor como quem era contra passou a usar os mesmos termos para nomear processos similares. Segundo os
autores:
O espírito do capitalismo é
justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que
contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os
modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas
justificações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais,
expressas em termos de virtude ou em termos de justiça, dão
respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo
mais geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à
ordem capitalista. Nesse caso, pode-se falar de ideologia dominante,
contanto que se renuncie a ver nela apenas um subterfúgio dos
dominadores para garantir o consentimento dos dominados e que se
reconheça que a maioria dos participantes no processo, tanto os
fortes como os fracos, apoia-se nos mesmos esquemas para representar
o funcionamento, as vantagens e as servidões da ordem na qual estão
mergulhados. (BOLTANSKY & CHIAPELLO, 2009, p.42)
Com o perdão da citação, meu
interesse aqui é entender porquê processos de cultura livre, que se
contrapõem diretamente às formas de produzir, distribuir e consumir
cultura que se consolidaram (ou se radicalizaram) nesse período da
década de 1980 também utilizam esse vocabulário
técnico-empresarial. Como a ideia de gestão, que se relaciona com a
maximização dos lucros ou dos resultados, pode ser utilizada no
seio de um pensamento que pretender, mais do que lucro, pensar a
viabilidade de projetos que não pretendem ser comercializados ou
fechados?
Comecei a
ver a conferência tendo essa inquietação em mente e achei
interessante como o debate foi iniciado. A pergunta que inaugurou a
mesa, “qual a chave da sustentabilidade de projetos de cultura
livre?” levou a várias reflexões sobre como não só pensar
formas de tornar viáveis projetos de cultura livre, mas pensar a
própria existência desse tipo de proposta dentro de um sistema
econômico cultural baseado na noção de lucro e investimento.
O
representante de Panorama 180 Andreu Mixidie, grupo organizador do
festival BccN, foi o primeiro a debater a questão e o que mais
demonstrou incômodo e incerteza em torno da questão da
sustentabilidade de projetos culturais. Levando a questão a um
debate mais filosófico, pensava sustentabilidade em termos mais
amplos e tentava não reduzir o tema a uma única resposta possível.
Já a
representante de Ediciones La Terraza, Barbi Couto, colocou a
questão da sustentabilidade em um terreno mais prático. Sendo uma
editora que propõe publicar livros ilustrados usando licenças
creative commons e financiamentos alternativos (croudfunding, entre
outros), Barbi Couto situou a questão da sustentabilidade no seio do
mercado editorial. Considerando dificuldades como distribuição e
comercialização de livros dentro desse mercado amplo e disputado e,
também, tendo em conta o tamanho da editora, Barbi Couto considera
que o fato de terem optado por focar na cultura livre foi positivo
para possibilitar o projeto. Ou seja, disponibilizar os livros para
download grátis foi um veículo que facilitou a divulgação e
circulação dos livros, dos autores e, obviamente, do nome da
editora. A própria Barbi Couto usa o termo “carta de apresentação”
quando se refere ao site da editora e à possibilidade de fazer
download grátis dos livros no mesmo. Ao citar um exemplo em que uma
das campanhas de croudfunding que a editora realizou recebeu a
colaboração de pessoas de nove países distintos, graças à
difusão via web dos livros anteriores e da circulação do nome da
editora entre ativistas da cultura livre e creative commons, deixa
claro como a criação de redes foi importante para viabilizar
economicamente o projeto da editora. Ao falar sobre como realiza a
comercialização dos livros impressos em um mercado tradicional,
afirma que o faz a partir de determinados critérios, selecionando
apenas algumas livrarias que se interessam por comercializar
livros-objeto e ilustrados (e provenientes de editoras pequenas).
Também comercializam os livros em feiras. Mas o processo de vendas
dos livros, segundo Barbi Couto, é mais lento e gradual, podendo
gerar recursos para publicar outros livros, mas sem ser o que
sustenta o projeto da editora. O projeto, segundo Barbi Couto, se
amplia e revigora na construção de redes que vai gerando. Nesse
ponto, a fala de Couto começou a me provocar uma suspeita de que a
ideia de redes, a noção de colaboração e compartilhamento, nesse caso, estão
apenas servindo à sustentação de um projeto editorial, mais do que
pensando essas próprias ferramentas em si. Mas vejamos mais adiante.
Uma
contribuição, que para mim gerou um contraponto interessante a essa
fala de Couto, foi a de Rodrigo Savazoni , do Instituto
Pró-comum (Santos, São Paulo). O projeto Laboratório Cidadão,
realizado pelo Instituto Pró-Comum em Santos, é uma proposta de
ação que pretende, a partir da cultura livre, estabelecer um “marco
de possibilidades de interferência nas culturas políticas e
econômicas que marcam as nossas cidades”, segundo palavras de
Savazoni. Desde essa proposta de cultura livre voltada para a questão
da participação cidadã, Savazoni reflexiona sobre a
sustentabilidade pensando, primeiro, em que marcos teóricos essa
palavra deve ser pensada. Propõe, portanto, pensar em
sustentabilidade como “instrumento de afirmação de novas culturas
econômicas”. Ao enfatizar, junto a ideia de sustentabilidade, as
noções de economia colaborativa e economia solidária, Savazoni
abre um importante espaço para o debate sobre como os termos do
capitalismo financeiro e empresarial precisam ser problematizados no
interior da cultura livre. Se sim, é verdade que os projetos de
cultura livre para existir necessitam de algum tipo de financiamento,
e Savazoni recorda as diversas fontes possíveis (seja via pública,
via empresarial ou inciativa dos próprios usuários), também é
importante considerar que se a ideia de economia e cultura não são
refletidas e ressignificadas, facilmente a ideia de cultura livre
pode se perder. Para Rodrigo Savazoni, o importante é pensar a
cultura livre como instrumento de modificação da ideia de economia.
Outra
pergunta que me chamou a atenção foi “como, desde a cultura
livre, se pode gerar novos modos de gestão cultural”. Aqui,
novamente, vi que a relação da cultura com o vocabulário
empresarial, que como dissemos acima foi enfatizada especialmente a
partir dos anos 1980, ainda é fortemente presente, mesmo quando se
trata da reflexão sobre cultura livre.
Durante
as reflexões sobre este tema, novamente achei que a fala de Barbi
Couto acabou voltando-se para um lado mais prático da gestão de um
projeto editorial que, para realizar-se, necessita de apoio coletivo
e a ideia de colaboração que emerge aqui é a de: é necessário um
apoio coletivo para a realização de um projeto cultural o qual, ao
ser produzido, é disponibilizado coletivamente para todas e todos
que contribuíram. É uma ideia interessante desde o ponto de vista
da viabilização de projetos culturais sem a obrigação de
participação em um mercado desigual e extremamente competitivo, por
um lado, e sem o financiamento estatal, por outro. Mas sinto na fala
de Barbi Couto que sua noção de colaboração e compartilhamento,
centrada na produção e no acesso ao produto cultural e na
visibilidade dos autores e da editora, torna possível um processo de
posterior captura por um mercado editorial. Porque, em
sua fala, ela deixa transparecer uma noção de rede e de comunidade
muito restrita, baseada naqueles que colaboram para a criação de um
livro, aqueles que o compartilham e/ou que se interessam pelo projeto
e querem colaborar.
Claro que
as comunidades não necessitam ser necessariamente amplas e
universais e eu acho que um ponto importante destacado pela cultura
livre é a possibilidade de formação de pequenas comunidades que
passem a ter a possibilidade de existir e compartilhar cultura e
informação fora de circuitos oficiais. Mas o que me causa incômodo
na reflexão de Couto é a falta de ênfase nas questões mais de fundo dessa
relação colaborativa e aberta em sua fala, deixando a sensação de
uma compreensão de colaboração que se limita à viabilidade de um
projeto que, de outra maneira, seria inviável. Ou seja, sua fala me
deixou com a sensação de que o projeto, ao não realizar uma
crítica mais profunda ao mercado editoral, seus sistemas de
circulação e comercialização, apenas corre à margem deste,
podendo passar a participar do mesmo caso tenha a possibilidade.
Pensar sobre redes e criação de comunidade é algo que, a meu ver,
deveria ser um fim em si mesmo não uma via para conquistar algum
outro objetivo e digo isso sem querer fazer julgamento moral do
projeto Ediciones de La Terraza. Está bem que alguém
necessite viabilizar um projeto que é interessante sem ter que
recorrer às mesmas vias de financiamento de sempre, podendo fazê-lo
desde uma comunidade de pessoas que acreditam nele o suportam. Porém,
creio que o fato de usar licenças creative commons, apesar de
interessante e contra-sistêmico, nem sempre significa pretender construir novas comunidades ou propor modos de existir e fruir
diferentes dos estabelecidos. Podem estar apenas viabilizando-se de
formas alternativas (e colaborando para o que os palestrantes na mesa chamaram de capitalismo 2.0). Creative commons como estratégia de marketing é
uma possibilidade a se considerar dentro do que se chama cultura
livre. É bom ficar atento.
Nesse
aspecto, Mixidie, quando deixa em evidência sua sensação de
incerteza sobre o que significa gestionar um projeto, me deixa a
impressão de estar entendendo a cultura livre de maneira mais ampla
que apenas um projeto cultural aberto ao compartilhamento. Em sua
fala, deixa clara uma noção de comunidade que, a meu ver, se pode
colocar em contraste à anterior, no sentido de que pensa a
comunidade não só como um grupo de pessoas que pode apoiar (ou se apropriar ou até compartilhar) um
projeto.
Na fala
de Mixidie, parece que a própria noção de coletividade está posta em
questão, assim como a condição de trabalhadores da cultura dele e
de seus companheiros organizadores dos festivais. Esse lugar
indecidível, para usar termos derridianos, em que ele coloca sua
condição de trabalhador da cultura - uma condição precária e
pouco definida que não o garante sequer a sobrevivência -, a
necessidade de pensar as contradições entre necessitar defender uma
sobrevivência mínima e, também, defender a total abertura dos
projetos que produz, evidencia, para mim, o real desconforto que a
cultura livre e sua ideologia de abertura, acessibilidade,
colaboração, horizontalidade, etc., vivenciam no seio da estrutura
ideológica neoliberal. Pensar nesses termos significa pensar mais
profundamente nas estruturas culturais e ideológicas em que se está
produzindo a cultura livre, independente das tecnologias que utiliza
e meios que ocupa para se distribuir. Não estar confortável e
demorar muito para conseguir se estabelecer e produzir algo, segundo
Mixidie, significa que a possibilidade de captura pelo mesmo sistema
capitalista de que se pretende escapar pode estar mais improvável.
Sua defesa de gestionar a contradição de ter que participar dessa
estrutura neoliberal e, ao mesmo tempo, enfrentá-la e contradizê-la
parece vir junto com o desconforto de não encontrar respostas para
como se soluciona essas contradições. E essa demonstração de
incômodo e desconforto é bastante valiosa, no meu entender, para
compreender projetos que verdadeiramente estão buscando uma outra
forma de pensar economia e sua relação com a cultura, ou novas
culturas econômicas, novas economias, etc.
Nesse
ponto, o debate tomou um rumo interessante para começar a pensar a
institucionalidade atual e possibilidades institucionais novas, ou
novas imaginações institucionais. A partir da provocação de um
dos participantes sobre a questão da autonomia e a relação da
política anarquista com a cultura livre, o debate começa a girar em
torno de como se manter autônomo frente às atuais instituições
modernas que produzem e reproduzem a ideologia neoliberal. Ou então,
de que maneira construir novas institucionalidades que permitam a
possibilidade de experimentar a cultura livre de maneira mais ampla.
Nesse ponto da discussão, Rodrigo Savazoni se refere ao tropicalismo
e à antropofagia - manifestos culturais que embasaram os modernismos
e vanguardas artísticas do Brasil -, para se referir a estratégias
de entrar e sair das estruturas. Segundo ele, esse tipo de
procedimento se referiria a um processo de estabelecer conexões com
distintos pontos de forma a caminhar a um ponto democrático de
relação entre as instituições. Excetuando que talvez a noção de
antropofagia não esteja sendo empregada tão adequadamente - ou que
esteja sendo estendida de uma noção de produção criativa que se
utiliza do canibalismo do outro para incluir uma noção de
democracia -, o que Savazoni propõe, me parece, é pensar em
institucionalidades futuras, uma criação institucional baseada em
redes e interconexão e em uma possível nova lógica de construção
mais horizontal e aberta. Levando em consideração o atual contexto
brasileiro e a flagrante falência institucional que vivenciamos, me
parece lúcida a consideração, mesmo que esta proposta esteja dada
em termos gerais, sem pouca consideração efetiva de como se
construiriam essas novas instituições.
De uma
maneira geral, o debate provocado nesta primeira mesa foi
interessante para demonstrar os ainda muitos desafios da cultura
livre. Pensar os projetos e sua realização, no interior da cultura
econômica neoliberal, propõe uma série de questionamentos que se
referem desde “qual é o limite do pagamento justo e do lucro?”
até questões que se relacionam com questionar "o que é realmente um coletivo?”, e, como, de fato,” realizar propostas horizontais e
comunitárias?”. A necessidade de financiamento para os projetos
esbarram as vezes em questões éticas sobre quem são os
financiadores e quais são suas intenções em relação a estes. A
possibilidade de captura dos projetos é algo que paira como uma
sombra e o desafio é lidar com ela, discutir e elaborar criticamente
cada projeto e proposta constantemente. O caminho para uma nova
institucionalidade é largo e difícil de caminhar. Não será fácil
sair da instituição econômica neoliberal e isso se torna aparente
quando a cultura livre usa os mesmos termos dessa matriz ideológica,
mesmo que de maneira ressignificada. Hackear esse sistema desde
dentro, como muitos da cultura livre gostam de afirmar, é um caminho
– e um bastante importante. Mas o desafio posto é pensar um para
além, um futuro: o que fazer para além dessa matriz neoliberal?
Como criar novas instituições? Como pensar novas economias e
culturas? O incômodo parece estar longe de resolver-se.
Para
assistir à conferência, clica no canal do Ártica no youtube:
https://goo.gl/iO4kFk
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