quinta-feira, 13 de agosto de 2015

As poéticas e a convergência


Relato da apresentação do projeto de curadoria de Nelly Richards para o pavilhão chileno da 56ª Bienal de Veneza, realizado no Museo de Bellas Artes no dia 13 de agosto de 2015


Hoje, no Museo de Bellas Artes de Santiago, a curadora Nelly Richards apresentou ao público o projeto curatorial Poéticas de la Disidencia. O projeto foi aprovado para representar o Chile na 56ª Bienal de Veneza, através de um concurso público realizado pela primeira vez pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile (CNCA). A proposta vencedora de Nelly Richards se baseou na obra das artistas Paz Erázurriz e Lotty Rosenfeld, ambas chilenas.

Em comum entre as artistas e a curadora está um fator geracional. Tanto Lotty Rosenfeld quanto Paz Erázurriz iniciaram suas carreiras durante um dos períodos mais terríveis da história chilena, o golpe de estado militar que levou à ditadura de Pinochet e à abertura do país ao neoliberalismo mais selvagem da América Latina (só não perde para a atual situação brasileira de radicalização da direita). E Richards, nascida na França, veio viver no país nos anos 1970, justamente o período da instituição desse processo político. Esse dado biográfico, longe de ser apenas um detalhe curioso, me pareceu importante na construção do discurso curatorial e da escolha das obras. Existe uma espécie de reconhecimento e cumplicidade entre essas mulheres, no sentido de indicar um olhar crítico e político ao entorno comum. Nesse caso, ao contexto chileno.

E durante sua apresentação, Richards destacou por vários momentos que o ponto central do seu projeto de curadoria tinha a ver com a questão da história e memória locais. A relação do contexto com o global pareceu ser bastante importante para sua construção discursiva. E ela encontra nas obras de Erázurriz e de Rosenfeld essa ligação com o local, uma noção de vizinhança e pertença que, ao mesmo tempo, extrapola os limites do lugar. É uma reinvindicação de identidade, uma tentativa de assumir o sul como lugar simbólico, não para deixá-lo intocado, mas para questionar uma hegemonia mundial que o deixa esquecido.

Para ela, se faz importante esse questionamento do local e do contexto no seio de um evento como a Bienal de Veneza, super internacionalizado e espetacularizado. Ao falar do fenômeno da bienalização da arte contemporânea, parece ecoar Simon Sheik, sem citá-lo diretamente. Para Sheik, por conta da sua ampla proliferação pelo mundo, especialmente nos últimos 20 anos, as bienais se tornaram um ramo da economia em crescimento. Contudo, para este autor, elas raramente são discutidas como um ramo da economia, mas principalmente como um modelo de exposições e como produtoras de discursos.

Esse papel econômico das bienais, diz a pesquisadora francesa Raymonde Moulin, tem a ver com a capacidade de legitimação, validação, exibição e troca de informações que esses eventos proporcionam. Nesse sentido, para Moulin, os grandes eventos internacionais, como a Bienal de Veneza ou a Documenta de Kassel, além de constituírem esse momento de encontros periódicos para o mundo cosmopolita da arte internacional, são também lugares privilegiados para a troca de informação. Além disso, estes eventos exercem também a função de qualificação dos criadores, tal como sucedia no Salão de Paris do século XIX. Enquanto atuam como academias informais, participam na elaboração de uma hierarquia dos valores estéticos e se constituem em uma etapa obrigatória de uma carreira artística, tanto do ponto de vista da reputação do artista como do preço das obras.

Tendo claro que a Bienal de Veneza é uma das mais prestigiadas do mundo (e também a mais antiga, em funcionamento desde 1896), seria ingênuo da parte de Richards não reconhecer o poder globalizante deste evento. A reivindicação de uma conexão com o contextual e o histórico, especialmente da história política recente do país, através de Rosenfeld, ou do “refugo” humano do neolibralismo, através de Erázurriz, dá a impressão de uma tentativa de enfrentamento a essa condição mundializante que pode ser neutralizante. Em sua apresentação, Richards afirmou que se fez a pergunta “como fazer para que no cenário globalizante o contexto das obras não fossem subsumidos ou neutralizados?”. Se o capitalismo consegue tornar tudo intercambiável, negociável, falar desde um lugar se torna importante, um ato de resistência. E ao falar em borramento das fronteiras causada pela bienalização, Richards parece temer a diluição.

Ao indicar a preferência pelos trabalhos de Erárzurriz e Rosenfeld para a construção do seu projeto, além da questão da história e da memória, que encontra presente em ambos os trabalhos (resolvidos de maneiras distintas), também relaciona uma noção de corpo maltratado pelo capitalismo. Em Erázurriz, esses corpos aparecem de forma evidente, chapados em fotografias preto e branca, mostrando de maneira mais ou menos crua seus estigmas marcados em gestos, formas, rostos e olhares. São pessoas comuns, mas ao mesmo tempo extraordinárias. São os sujeitos que vivem em condições de extrema pobreza, ou de marginalização constante que os torna construções corporais e identitárias que causa estranheza para a “maioria normalizada”: são loucos e suas miradas delirantes, são travestis e suas maquiagens e trajes exuberantes, são trabalhadores rurais empobrecidos e sua face jovem estranhamente envelhecida. E toda essa estranheza é perturbadora por apresentar, ao mesmo tempo, uma sensação de familiaridade. Para Richards, esse ruído entre as noções de normalidade e anormalidade que a obra de Erázurriz provoca é um importante vetor político: o da desconstrução de noções hegemônicas sobre os corpos e as identidades, além da evidência das consequência da violência da desigualdade social.

Já em Rosenfeld, Richards se identifica com a economia política do signo que seus vídeos põem em evidência. Assemelhando-se um pouco da estética visual de Juan Downey (precursor da video-arte no Chile) o trabalho de Rosenfeld apresenta uma obsessão pela imagem midiática e sua desconstrução. Os vídeos reúnem performances realizadas no final dos anos 1970 pela artista e outros trabalhos que se desenvolvem a partir das imagens televisivas. A remodulação das imagens midiáticas é um dos métodos principais dos vídeos que, segundo Richards, intentam provocar uma espécie de “choque” dadaísta. A sequência nervosa, irritante até, de imagens entrecortadas e ruídos, de fato produzem um incômodo grande no espectador, que se vê obrigado a observar, a ver, o que a artista apresenta. É uma tentativa de tirar o espectador da “dormência” midiática, diz Richards sobre o trabalho. Eu, apesar desse discurso mais óbvio do afã político da desalienação do espectador, também vi um esquema de montagem de imagens e sons bastante elaborado e impactante. O nervoso causado pela sequência sim, de fato, é bastante deslocador.

E apesar de possuírem poéticas bastante distintas (o vídeo que se relaciona mais com o questionamento do capitalismo de maneira mais evidente, através da mídia e da publicidade, de um lado, e do outro, fotografias quase intimistas de pessoas em ambientes distanciados no tempo e no espaço), Richards encontra nas duas artistas convergências críticas. Para a curadora, ambas questionam esquemas de poder, apresentam corpos fragmentados pelo capitalismo, apresentam uma crítica ao masculino, relacionando-o ao poder e ao dinheiro, falam de enfrentamento e resistência. Erázurriz fala de enfrentamento e resistência ao convocar o feminino (muitas vezes através das imagens de travestis e das mulheres que fotografa), de buscar uma comunidade com esses corpos invisibilizados. Já Rosenfeld, traz a resistência no enfrentamento revolucionário que apresenta em seus vídeos. A não aceitação das regras do jogo. A subversão dos signos do capitalismo, como o sinal de +, o qual a artista ressignifica para que deixe de ter apenas uma ideia de somar para simbolizar a repressão e a violência através do lucro.

Poéticas da dissidência, então, passa a ter um sentido quase literal: a escolha da curadora por duas poéticas distintas em que a questão do dissenso, como diria Rancière, são fortes e presentes. São duas artistas que, surgidas no momento mais duro da história do Chile, o da sua ditadura, têm a trajetória marcada, de distintas maneiras, pela consciência crítica do momento político. Coincidem na consciência de um ser latino-americano, um ser outro que, por isso, se torna desejo de reconhecimento e voz. Mas as coincidências param só aí?

O não dito pela curadora a respeito da coincidência, que levou a escolha dessas duas artistas, aparece dito em outros lugares, como no release da mostra, por exemplo. Em algum momento do documento, aparece a informação de que “a principal exibição da 56ª Bienal de Veneza, Todos os Futuros do Mundo, curada por Okwui Enwezor, também estará, em parte, inspirada na história do Chile. Depois do violento golpe de Estado em que o general Augusto Pinochet derrotou o governo de Salvador Allende, em 1973, parte da Bienal de Veneza de 1974 esteve dedicada ao Chile, num gesto de solidariedade com o país e contra o fascismo. Em vista da atual agitação ao redor do mundo, Enwezor faz referência à Bienal de 1974 como uma inspiração curatorial de sua exibição”. Parece que entre Enwezor e Richards houve uma coincidência de inspiração.

Coincidência ou não, aos que se interessam minimamente em observar as dinâmicas do mercado de arte, verá que é melhor usar outro termo para isso: alinhamento de discursos ou agenda. Enquanto Enwezor fala, este ano, em Todos os Futuros do Mundo e toca na temática dos conflitos mundiais, no ano passado, Charles Esche (e outros cinco curadores) foram falar sobre coisas que não existem (sujeitos e lutas sociais invisibilizadas, conflitos, desigualdades e tentativas de saída desse cenário seja via imaginação ou reintegração da comunidade) na 31ª Bienal de São Paulo. Não que a Bienal de São Paulo tenha o poder de pautar a de Veneza (muito mais antiga e importante), mas que sim é possivel a existência de uma convergência entre interesses curatoriais e discursivos no interior de um mundo da arte contemporânea internacionalizado, onde esses agentes acabam participando de uma esfera cosmopolita, fazendo surgir uma espécie de economia do discurso artístico: falar sobre o o outro e o invisibilizado, o conflito, o caos social e ambiental, e as possíveis saídas para tudo isso, está na agenda do mundo da arte. E esta edição da Bienal de Veneza parece mostrar isso.

Chama a atenção, inclusive o fato de que, nesta edição, a Bienal tenha escolhido a Enwezor. Parece que ter um curador nigeriano é  importante para ajudar a reforçar uma imagem de que a Bienal de Veneza está plural, aberta, democrática e abraçando outros espaços e países do mundo. Nas notícias sobre esta edição do evento, quase sempre, ao se falar do curador, há uma referência ao seu país de origem. Inclusive, em uma delas, me chamou a atenção o fato de que na coletiva de imprensa feita com o presidente da Bienal, Paolo Baratta, e o curador, alguém perguntou o que ele “sentia” ao ser o primeiro curador africano da Bienal. Na matéria, a resposta dada por Enwezor foi a de que ele “disse que o importante é sua trajetória marcada por um profundo interesse nas artes africana, europeia, asiática, sul e norte-americana, dos séculos XX e XXI, e, fundamentalmente, sua visão de um mundo sem fronteiras.” Alguém pergunta a um curador inglês, espanhol, francês o que ele sente em ser um curador francês em uma bienal? 

Esse fato fala muito ainda sobre um mundo da arte ainda extremamente hegemônico e ocidental, o qual, ao tentar absorver o dissidente, parece sempre tentar capitalizá-lo: Enwezor aqui aparece como o símbolo do discurso da quebra de fronteira, do cosmopolitismo democrático e miscigenado o qual, na prática, ainda segue sendo exatamente o contrário. Existe uma pequena parcela, que participa da elite legitimada do mundo da arte, que é cosmopolita e que pauta o mercado, as instituições e os eventos do mundo da arte. Para uma grande maioria, ainda está muito distante participar desse universo. Além disso, poucos países dominam o cenário econômico e discursivo do mundo da arte. Por exemplo, a recente ganhadora do Leão de Ouro de melhor artista da Bienal de Veneza foi uma estadunidense, Adrian Piper. O mundo da arte e o seu mercado, seguem sendo majoritariamente dominados pelos Estados Unidos e alguns países europeus, como Inglaterra, Alemanha e França. O resto do mundo participa em menor medida, pois aparece como fornecedores interessantes de novidades para o mercado (daí o importante movimento de proliferação das bienais por todos os lados a partir dos anos 2000).

Nesse sentido, Nelly Richards tem razão ao tentar descobrir o lugar do contexto, o lugar da fala e do outro, num cenário que tenta neutralizar as diferenças para encobrir a desigualdade. Mas confrontando o seu discurso com o contexto mais amplo, tem-se que ele mesmo é uma replicação, está operando na convergência. A própria bienal está falando sobre a crítica e o confronto. Está, inclusive, lembrando do Chile e do seu terrível momento político. Aí nos perguntamos: onde é que fica a dissidência aí? Para mim, permaneceu com as poéticas e seguirá com elas, independente de Nelly Richards e da representação no pavilhão da Bienal de Veneza.

Para mais informações sobre a curadora e as artistas, segue link da página da Bienal de Veneza: 
http://universes-in-universe.org/esp/bien/bienal_venecia/2015/tour/chile/nelly_richard


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